VERBA HISPANICA XXIV • CARLOS FOLGAR 17 Carlos Folgar DOI: 10.4312/vh.24.1.17-36 Universidade de Santiago de Compostela Comentários sobre política e língua(s) em Afonso X o Sábio Palavras-chave: Afonso X o Sábio, nacionalismo, reinos hispânicos, apócope, castelhano, galego-português, poesia. Num artigo publicado há muitos anos mas ainda hoje recordado e citado, La- pesa (1951: § 9) afirmou que na eliminação definitiva da apócope extrema do castelhano medieval (em formas como noch, nief, sab, muert, orient, adelant, dixist, fezist…)1 participou de um modo decisivo o rei Afonso X o Sábio. O monarca castelhano gostava mais das formas plenas, com a vogal final, tal como se percebe nos prólogos das suas obras, escritos por ele próprio, e, segundo Lapesa, decidiu em 1276, ao reelaborar o Libro de la ochava espera, impor a sua preferência linguística pessoal, contrária às formas apocopadas2. Na opinião de Lapesa, nesta decisão real influem não só as suas preferências linguísticas, mas também circunstâncias políticas, como as crescentes tensões entre o rei sábio e o monarca francês Filipe III o Ousado. Este episódio de conflito entre Castela e a França situa-nos na crise sucessó- ria acontecida no reino castelhano, que encontramos explicada a traços lar- gos por González Jiménez (2004: 369-371). O rei de França visava colocar algum de seus sobrinhos no trono castelhano, para o qual não lhe faltavam bons argumentos, pois uma irmã de Filipe III, chamada dona Branca, tinha 1 A apócope extrema é a perda —facultativa, não obrigatória— do /–e/ em posição final absoluta de palavra após uma consoante ou um grupo consonântico que não são aceites pela fonotática regular do castelhano. Neste fenómeno fonológico o castelhano medieval mostrava similitude com os resultados evolutivos próprios de outras línguas românicas, como o francês e o provençal. 2 Sobre o emprego das formas com apócope extrema nos textos em prosa castelhana compostos no scriptorium afonsino, podem consultar-se Harris-Northall (1991) e Moreno Bernal (1999). Verba_hispanica_XXIV_FINAL.indd 17 13.1.2017 14:42:45 VERBA HISPANICA XXIV 18 contraído casamento com o primogénito de Afonso X, dom Fernando de la Cerda. Além disso, dava-se uma circunstância muito favorável aos interesses do soberano de França: as capitulações assinadas por ocasião do casamento de Branca e Fernando manifestavam que os filhos que o casal pudesse ter ocu- pariam a primeira posicão na linha sucessória do reino de Castela. A morte prematura, no ano de 1275, de Fernando tinha posto Afonso X numa situação embaraçosa, num beco sem saída: por um lado, o rei sabia muito bem aquilo que estipulavam as mencionadas capitulações, e ele próprio estava provavel- mente de acordo com a candidatura de seus netos, mas por outro lado era para ele muito difícil fazer frente à pressão da opinião pública castelhana, oposta à execução do acordo contido naqueles compromissos, e, embora fosse de mau grado, Afonso acabou nomeando o seu segundo filho, dom Sancho, como herdeiro do trono castelhano. O monarca francês não recuava, insistindo nos direitos que assistiam a seus sobrinhos, quer dizer, aos filhos do falecido Fer- nando. Por se isto tudo fosse pouca coisa, Filipe III empecia decididamente os planos de Afonso X de intervir no conflito entre os nativos e os Francos no reino de Navarra, visto que a presença militar castelhana no território navar- ro, na ajuda da populacão autóctone, poderia significar o fim da dominação francesa naquele reino. Para avaliarmos na sua justa medida a importância estratégica que Afonso X outorgava ao assunto navarro, cumpre-nos dizer respeito à conjuntura política desse reino. Consoante os dados que fornecem Salrach Marés (1989: 396-401) e Martínez (2003: 277-278, 402-407), naquela altura Navarra, que no início do século XIII já tinha cedido a Castela os territórios das atuais províncias bascas, era um país que, embora sendo formalmente autónomo, se situava todavia na órbita política do reino da França. Esta situação de dependência a respeito da França provém do ano 1234, no que faleceu Sancho VII o Forte, monarca navarro que tinha tomado parte na vitoriosa batalha das Navas de Tolosa. Ao morrer o rei Sancho, o trono passou para a dinastia francesa de Champanha, de modo que a França podia já intervir de uma forma direta na administração interna de Navarra. Esta situação ganha intensidade quando, em 1275, fica concertado o matrimónio da princesa navarra Joana com o filho do rei francês Filipe III o Ousado, ou seja, com o futuro Filipe IV o Belo, rei de França e de Navarra. Este casamento supunha, de facto, a união das duas coroas. Nada disso convinha às aspirações políticas e territoriais de Afonso X, quem, segun- do veremos com mais detalhes daqui a pouco, tinha o expansionismo como um dos alicerces do seu ideário político. Se, como supomos, Afonso X visava incorporar o reino navarro na órbita política castelhana, é evidente que as Verba_hispanica_XXIV_FINAL.indd 18 13.1.2017 14:42:45 VERBA HISPANICA XXIV • CARLOS FOLGAR 19 atuações de Filipe III lhe produziam sérios quebra-cabeças. A inimizade entre os monarcas estava, pois, justificada. Se não se tivesse produzido a mediação papal, com toda a probabilidade o conflito entre a França e Castela ter-se-ia tornado numa guerra aberta. Lapesa opina que esta amarga inimizade política entre os dois monarcas provocou que Afonso X visse com maus olhos tudo aquilo que apresentasse feição francesa, e neste contexto o soberano castelhano decidiu a proscrição da apócope extrema por ela ser «molesto signo de afrancesamiento» (Lapesa 1951: 192). Neste tema é visível que Lapesa incorreu numa sobrevalorização. A sua afir- mação de que «Alfonso X vertía sobre la apócope extrema su irritación contra la política intervencionista de Felipe III el Atrevido» (1951: 192) dá claramen- te a entender que se tratou de uma decisão consciente e deliberada do monarca hispânico, na que agiram de maneira essencial fatores extralinguísticos. Pondo de parte o facto de acharmos extremamente improvável que o vocalismo final tenha a ver com os negócios estrangeiros, o mais razoável é admitir que Afon- so X responde ao gosto linguístico do seu tempo3. O facto de Lapesa dizer que «Alfonso X el Sabio decide la contienda al escoger como tipo de lenguaje literario el «castellano drecho», sin apócope extrema» (1951: 197) é dar a en- tender, mais uma vez, que houve uma atitude propositada do rei contra a perda vocálica extrema. Nos argumentos apresentados por Rafael Lapesa acha-se latente um conceito que, por enquanto, não temos chamado por seu nome e ao qual, não obstante, nos referiremos nas linhas que se seguem, visto que eminentes filólogos trou- xeram à colação esse conceito mais de uma vez. Trata-se do nacionalismo de Afonso X o Sábio. Da argumentação, antes exposta, de Lapesa acerca da intervenção de Afonso X contra a apócope extrema deduz-se, com indiscutível clareza, que teve uma grande influência o nacionalismo político do monarca castelhano e o seu con- flito diplomático com o rei Filipe III. Já mostrámos o nosso ceticismo sobre a alegada ligação entre o vocalismo final átono do castelhano medieval e a políti- ca externa do reino de Castela, de maneira que é desnecessário repetir agora o dito. No entanto, a discussão não se deve concluir neste ponto, pois que outros investigadores têm também lançado mão do nacionalismo de Afonso o Sábio como fator explicativo de certas atuações monárquicas no terreno linguístico. Assim, Deyermond afirmou que a escolha da língua castelhana como veículo 3 Uma explicação melhor sobre o desaparecimento da apócope extrema é a de Catalán (1971: 78-82), que se baseia nas modificações da estrutura silábica do castelhano medieval. Verba_hispanica_XXIV_FINAL.indd 19 13.1.2017 14:42:45 VERBA HISPANICA XXIV 20 de expressão das obras afonsinas se deveu ao «patriotismo castellano» (1971: 155) do monarca, à sua «fuerte conciencia nacional» (1971: 156). Na mesma linha do hispanista britânico, ainda que não o cite, coloca-se a declaração de Matute Martínez de que o emprego do castelhano nos textos afonsinos res- ponde a «un deseo de afirmación nacional castellana» (2001: 75). Neste estado de coisas, estamos na obrigação de comprovar o que possa haver de certo no nacionalismo como ideologia de Afonso X e, caso o rei tenha essa ideologia, temos de comprovar a relação que ela estabelece com as suas atuações nos as- suntos linguísticos. Para este fim separaremos os aspetos propriamente políti- cos e os estritamente linguísticos. 1 O nacionalismo político Nesta secção o nosso objetivo é fazermos a revisão do ideário político —pou- cas vezes levado efetivamente à prática, verdade diga-se— do rei Afonso o Sá- bio, para vermos os princípios teóricos nos que assenta. A nossa análise estará apoiada nas informações gerais que fornecem os historiadores, como González Jiménez (2004: 364-371)4. Em primeiro lugar, temos de dizer respeito às bem-sucedidas intervenções de Afonso X nas tarefas da Reconquista peninsular. Sendo ainda príncipe her- deiro, recebeu uma importante encomenda de seu pai, Fernando III o Santo. Como o monarca se encontrava muito ocupado nos preparativos do sítio da cidade de Sevilha e os seus arredores, pediu a seu filho que se pusesse à frente da campanha destinada à tomada do reino de Múrcia. O príncipe Afonso geriu as operações em 1243 e, com não muitos entraves, alcançou para Castela a ane- xação desse reino, rematada em 1246 com a conquista de Cartagena. Tendo já tomado posse do trono de Castela e Leão, Afonso continuou o seu labor reconquistador na Andaluzia. Em 1261 conseguiu submeter a região do rio Guadalete, cujos núcleos principais eram Xerez da Fronteira e Cádis, en- quanto em 1262 obteve a reconquista do reino onubense de Niebla5. Com estas 4 Como tratados gerais sobre a vida, a obra e o tempo do rei sábio, atrevemo-nos a citar Martínez (2003), Rodríguez Llopis (coord.) (2001) e Valdeón (2003), por só mencionarmos algumas obras publicadas no presente século. 5 Na realidade, Afonso X aproveitou a conquista de Niebla para se apoderar do Algarve, que já tinha sido reconquistado pelos exércitos portugueses. Isto dava ocasião a Afonso X de se intitular «rey dell Algarve». Sobre esse território houve disputas diplomáticas entre Castela e Portugal, solucionadas em favor do segundo país graças ao tratado de Badajoz (1267), pelo qual Afonso X desistiu das suas aspirações territoriais sobre a área ao oeste do Guadiana. Cfr. Saraiva (1978: 54) e Castro (2004: 67). Verba_hispanica_XXIV_FINAL.indd 20 13.1.2017 14:42:45 VERBA HISPANICA XXIV • CARLOS FOLGAR 21 ações militares o novo soberano castelhano transferiu de forma efetiva para o reino de Castela territórios islâmicos que já estavam, nos anos antecedentes, numa situação de vassalagem relativamente a esse reino cristão. À exceção de Niebla, estes sucessos reconquistadores houveram de repetir-se devido à mudança sociopolítica sobrevinda por causa da multitudinária revol- ta dos Mudéjares murcianos e andaluzes do ano 1264, instigada por Muham- mad I de Granada. Nesse mesmo ano as tropas do rei castelhano restauraram a ordem em Xerez com a tomada definitiva da cidade, enquanto no reino de Múrcia o responsável pelas operações bélicas não foi Afonso mas sim seu so- gro, o rei Jaime I de Aragão, que acabou vencendo a resistência muçulmana em 1266 e depois reintegrou o território murciano ao reino de Castela. Todos estes dados atestam que o labor reconquistador de Afonso X teve uma notável importância. Não há dúvida de que para Afonso X a Reconquista era uma tarefa prioritária. Então, porque não se lançou à tomada definitiva do reino de Granada, que era a única área que ficava naquela altura nas mãos dos Hispano-Muçulmanos? Simplesmente, porque, logo que foi sufocada a revolta mudéjar, o reino granadino ficou numa situação de clara inferioridade política com respeito a Castela e se viu forçado ao pagamento de quantiosos impostos ao erário público castelhano em troca da promessa de a sua independência ser garantida. Afonso X sentiu-se satisfeito com esta situação, que lhe gerava altos rendimentos, e não viu necessidade de passar à ação bélica. Mas as coisas não ficam por aqui. Tendo confiança na sua ideia de que Grana- da não constituía um perigo para Castela, Afonso o Sábio tencionou deslocar a ação reconquistadora além dos limites geográficos da Península Ibérica. O seu objetivo era chegar a África e restituir à Cristandade hispânica os terri- tórios inseridos na antiga província romana chamada Tingitânia (com capital em Tingis, a atual Tânger), província que era uma das seis nas que o imperador Diocleciano tinha dividido Hispânia no ano 297 da era de Cristo. A dita pro- víncia fez parte do reino visigodo, de modo que o intento do monarca caste- lhano por recuperar a totalidade do antigo território desse reino implicava o prolongamento da Reconquista até a África setentrional. Este objetivo é que se conhece, na terminologia do governo afonsino, como el fecho de allende. Nesta linha de atuação uma esquadra castelhana ataca em 1260 a localidade de Salé, na costa de Marrocos, mas a rápida reação do emir marroquino faz que o epi- sódio não tenha ulteriores consequências. Além de não ser satisfatório do pon- to de vista estritamente reconquistador, este episódio também não produziu as repercussões favoráveis que o rei aguardava. Durante a sua estadia nesse porto, Verba_hispanica_XXIV_FINAL.indd 21 13.1.2017 14:42:45 VERBA HISPANICA XXIV 22 os soldados castelhanos puseram a cidade a saque e cometeram atrocidades contra a população do lugar. Quando esta infeliz atuação foi conhecida pela opinião pública dos reinos cristãos da Espanha e da Europa, a intervenção militar castelhana foi alvo de sérias críticas, que deveram aconselhar Afonso X a desistir da sua política expansionista norte-africana. Apesar desse fracasso, a projeção extrapeninsular do reino de Castela segue a estar presente no ideário político do rei. Esta projeção já tinha sido ensaiada com anterioridade, quando Afonso, em 1253, reclamou para Castela o ducado da Gasconha e encorajou a tentativa de alguns políticos gascões de se libera- rem da dominação que naquela altura a Inglaterra exercia sobre esse ducado. Assim, Afonso X fazia face aos interesses políticos do rei inglês Henrique III. Na sequência das negociações entre ambos os monarcas, Afonso desistiu das suas reclamações em troca de que o rei de Inglaterra se tornasse parceiro dos exércitos castelhanos nas operações militares que Afonso tinha previstas no território norte-africano, operações que, segundo acabamos de ver, não atin- giram o sucesso esperado. De todas as formas, o acontecimento fulcral não é este, mas outro. Para começar, diremos que Afonso X tinha a esperança de ser reconhecido como imperator Hispaniae, isto é, como o «rei de reis» da Espanha cristã me- dieval. Esta pretensão colidia com os interesses de Portugal e Navarra, mas sobretudo colidia com a Coroa de Aragão, governada por Jaime I o Conquis- tador, sogro do rei castelhano. Por múltiplas razões, Jaime I não podia aceitar uma posição de subordinação a respeito de Castela e tentou dissuadir Afonso X das suas intenções imperiais. Embora este se visse constrangido a aceitar o conselho de seu sogro, contudo não renunciou à sua velha aspiração: apenas a reorganizou e a equacionou de um novo jeito. A Afonso pareceu-lhe que uma maneira indireta —mas segura— de atingir o reconhecimento de imperator Hispaniae era ser nomeado imperador do Sacro Império Romano Germâni- co: se uma grande parte da Europa o reconhecesse como imperador legítimo, imediatamente os monarcas navarro, aragonês e português teriam de aceitar ou tolerar a supremacia castelhana no âmbito peninsular. E assim passamos a expor aquilo a que a monarquia afonsina chamava el fecho del imperio. No ano de 1254 a morte de Conrado IV deixou vago o trono alemão. Afonso o Sábio candidata-se e, em 1257, é eleito imperador da Alemanha, mas isso não lhe serve para muito, pois desse momento em diante surge um complicado processo jurídico, político e diplomático, com a intervenção de outros candi- datos e com a obstinada oposição do papado à candidatura afonsina. Apesar de Verba_hispanica_XXIV_FINAL.indd 22 13.1.2017 14:42:45 VERBA HISPANICA XXIV • CARLOS FOLGAR 23 todos os esforços que Afonso pôs neste assunto e apesar das grandes quantida- des de dinheiro que despendeu na procura de suportes para a sua postulação, não teve sucesso. Em 1273 é eleito imperador alemão Rodolfo I de Habsburgo e dois anos depois o pontífice Gregório X, na conversa mantida com o mo- narca castelhano em Beaucaire (França), soterra de vez o sonho imperial de Afonso ao recusar-se a reconhecer os direitos deste ao trono alemão. Até aqui a nossa exposição da atividade política do rei Afonso X. Há sucessos (na Reconquista) e projetos falhados (nos propósitos imperiais). À luz des- tes dados, entendemos que o nacionalismo é um princípio diretor da atuação política afonsina. É patente que este monarca é, mesmo dentro do mundo medieval, um «perfeito nacionalista»: os seus objetivos prioritários são a con- solidação do reino de Castela no cenário político hispânico e a expansão ter- ritorial castelhana, com a intenção de converter Castela na potência política hegemónica da Espanha do século XIII. Tornemos agora, pois, à crise diplomática entre Afonso X de Castela e Fi- lipe III de França. O palco é Navarra. Tanto a França como Castela visam intervir de forma direta na vida política do pequeno reino navarro, ou, o que é a mesma coisa, visam transformar Navarra num território satélite das suas próprias monarquias. A Afonso X o assunto interessa-lhe, porque a geografia maioritariamente ibérica do reino navarro6 o torna ainda mais apetecível para uma Castela que tenciona dominar —direta ou indiretamente— todo o espaço ibérico. Neste contexto, e tendo em conta as explicações que ofereceu Lapesa, devemos perguntar-nos se é verdade que o soberano francês praticava uma política de intervenção (quer dizer, de interferência) em Navarra. A resposta é afirmativa, sem dúvida, mas o mesmo exatamente pode ser dito do governante castelhano: cada qual defendia os seus próprios interesses. No caso navarro, Filipe III mostra-se tão intervencionista como Afonso X, pois, no fim de con- tas, no ano de 1275 Navarra era, ao menos a título nominal, um reino indepen- dente, com monarquia própria. Parece-nos, por conseguinte, que o conflito entre Afonso X e Filipe III não tem a relevância que Lapesa lhe conferiu. Nós acreditamos que o dito conflito não é mais do que um simples confronto, dos muitos que o rei castelhano teve de afrontar nos negócios estrangeiros. Situado esse episódio no seu contexto histórico, salientamos que não há qual- quer relação entre a política externa e o vocalismo final átono. Seria pueril, ou até ridículo, supor que, como represália contra aquilo que na perspetiva do governo castelhano se interpreta como intervencionismo do monarca francês, 6 Excetuada a Baixa Navarra, sita ao norte dos Pirenéus. Verba_hispanica_XXIV_FINAL.indd 23 13.1.2017 14:42:46 VERBA HISPANICA XXIV 24 Afonso X decidisse banir a apócope vocálica extrema da norma linguística do castelhano. Em que poderia essa decisão envolver, afetar ou prejudicar a França? Seria, por certo, uma retaliação ineficaz, inócua... A explicação que Lapesa deu é exageradamente idealista, no pior sentido deste termo, e a nossa melhor opção é rejeitá-la. Seja como for, acreditamos que o nacionalismo político de Afonso X fica su- ficientemente estabelecido. Ainda assim, isto não pode condicionar a nossa opinião sobre o nacionalismo linguístico do rei. Referir-nos-emos a esse tema logo a seguir. 2 O nacionalismo linguístico Pomos agora a nossa atenção nalguns dados de caráter linguístico, que nos podem ajudar a apurar em que medida existe uma ideologia nacionalista nas atuações linguísticas do nosso personagem. Em primeiro lugar, consideremos a situação linguística do reino de Castela na altura em que chega ao trono Afonso X. É uma situação bastante heterogé- nea, com convivência de idiomas diferentes. No que diz respeito às variedades linguísticas do tipo neolatino, encontramos, indo do ocidente para o oriente, as três grandes línguas da Coroa de Castela: o galego-português, o leonês e o castelhano. A estas três há que acrescentar outra, não românica, que é o vas- conço, limitado aos territórios bascos, que desde os começos do século XIII se encontravam incluídos no reino castelhano, uma vez que Navarra tinha sido coagida a cedê-los a Castela. Finalmente, temos de mencionar outras línguas também não indo-europeias, que são o árabe e o hebreu. É patente, pois, o cenário de plurilinguismo. Este mesmo plurilinguismo se reproduz, em ponto pequeno, na corte afonsi- na. É sabido que o monarca reuniu, na sua corte, eruditos, humanistas, juris- tas e poetas de procedências muito variadas. Além de indivíduos de religião muçulmana ou judia, as informações que fornece Hilty (2002) confirmam que em torno do rei castelhano convergem galegos, provençais, gascões, italianos e, talvez, algum alemão. Isto quer dizer que o rei Afonso se situa numa atmosfera multicultural e multilingue, na qual ele trabalha para conseguir que cada um desses sábios e escritores colabore na execução coletiva de um projeto cultural comum7. Nesta situação de multilinguismo o castelhano, sendo a língua pró- 7 Neste contexto temos que situar a criação dos Estudios generales de latín et de arávigo. Afonso X funda esta instituição, de nível quase universitário, em Sevilha em 1254 para o estudo Verba_hispanica_XXIV_FINAL.indd 24 13.1.2017 14:42:46 VERBA HISPANICA XXIV • CARLOS FOLGAR 25 pria de Castela e a língua materna do próprio monarca, é o idioma principal, quer dizer, o idioma de uso comum, e é nele que se teria de produzir a con- vergência dos estrangeiros que se juntavam na corte. Se todas essas pessoas de origens diferentes se podiam entender entre si, isso acontecia porque podiam exprimir-se —melhor ou pior— numa língua partilhada por todos, e essa lín- gua era, obviamente, o castelhano. A escolha que o rei sábio fez da língua castelhana para a redação das suas obras em prosa confirma ainda mais claramente a apreciação positiva que o monarca outorga à sua língua materna, assim como o seu desejo de que ela se conver- ta, sem restrições, no veículo de expressão de todo o género de conteúdos científicos e humanísticos. No entanto, não é o castelhano o único sistema linguístico que é favorecido por Afonso X. Há outro, quiçá com menor im- portância em termos relativos, mas que é indissociável da figura deste rei. É, com certeza, o galego-português, no qual estão compostas as Cantigas de Santa Maria8, obra de enorme transcendência e valor literário, qualificada como «a verdadeira Comédia Humana do século XIII» por Lapa (1934: 211). Trataremos isto de seguida. A questão linguística que nos colocam as Cantigas de Santa Maria é um tanto mais complexa do que parece. O livro está escrito na língua galego-portu- guesa9, e isso será surpreendente se considerarmos que a língua materna de das línguas e culturas latina e árabe. Também neste acontecimento é visível o elemento multicultural que caracteriza o rei sábio. Valdeón (2003: 193) supõe que a inclusão do árabe como matéria de estudo nesse estabelecimento de ensino tem relação com o provável conhecimento que desse idioma tinha Afonso X. Não sabemos se Afonso X era fluente em árabe ou não, mas não é necessário aceitarmos a sugestão do mencionado historiador, visto que não é anómalo, de modo nenhum, que os Estudios generales sevilhanos se consagrassem ao conhecimento, tão importante para a monarquia castelhana, das duas grandes línguas da cultura, a ciência e a diplomacia da Idade Média. 8 O rei sábio compôs também em galego-português algumas cantigas de amor, às quais há que acrescentar uma que não está redigida nessa língua mas sim em castelhano, contrariamente ao que era comum, e outras cantigas d’escarnho e de maldizer. 9 Não podemos esquecer, no entanto, que a variedade de língua literária que mostram as composições da lírica galaico-portuguesa é uma koiné, fruto de uma forte elaboração artística, que a afasta inevitavelmente, em maior ou menor medida, das variedades orais galego-portuguesas daqueles séculos. A respeito disto, Castro afirma: «Os trovadores — galegos, portugueses e castelhanos— escreviam todos na mesma língua, mas era uma língua artificial e não necessariamente a língua que cada um falava» (2004: 76). Maia acrescenta que os cancioneiros trovadorescos «revelam uma linguagem relativamente unitária e onde as particularidades divergentes entre as duas variedades da área galego-portuguesa, situadas respectivamente a norte e a sul do Minho, assim como outras variantes diatópicas ou diastráticas aparecem quase totalmente neutralizadas» (1986: 888). Estas opiniões, porém, não nos impedem de perceber, no uso oral e quotidiano da língua, «a existência, durante o período Verba_hispanica_XXIV_FINAL.indd 25 13.1.2017 14:42:46 VERBA HISPANICA XXIV 26 Afonso X não era aquela, mas sim o castelhano10. Estamos, porém, perante uma «anomalia» só aparente, pois na poesia trovadoresca galego-portuguesa não se incluem unicamente autores nascidos na Galiza ou em Portugal, mas também castelhanos, aragoneses, provençais, etc. Segundo salienta Rodríguez (1983: 7), todos estes, apesar de o seu idioma materno ser outro, dispu nham da suficiente formação linguística e/ou a adequada assessoria como para se- rem capazes de redigir as suas composições no ibero-românico ocidental me- dieval. Neste aspeto, Afonso X não tem que ser visto como um caso exce- cional pela sua utilização poética do galego-português. Aliás, é sumamente provável —quase seguro— que Afonso tivesse aprendido essa língua durante as suas estadias de criança e moço nas vilas ourensanas de Alhariz e Mace- da, nas quais tinha várias propriedades García Fernández de Villamayor, que exercia o cargo de aio do próprio Afonso. Embora não saibamos com exati- dão o grau de conhecimento ativo da língua galego-portuguesa que o jovem Afonso alcançou, esse dado também não tem muito relevo para os objetivos da nossa exposição. No fim de contas, no reino de Castela do século XIII o romance galego-português era considerado como o veículo de expressão mais apto para a poesia lírica, e nessa tradição se insere o rei sábio. Não há qual- quer irregularidade nisto. Assunto diferente, ainda que tenha ligação com o anterior, é se Afonso X é o autor material das Cantigas de Santa Maria. Eis a pergunta: escrevia ele os poemas pela sua própria mão, quer dizer, são estes poemas da sua lavra? En- carregava-os a outros versificadores? Este problema fica ainda longe de resol- vido. A opinião tradicional, defendida, por exemplo, por Riquer & Valverde (1957-59: I, 326) ou por Hualde, Olarrea & Escobar (2001: 308), é que Afonso X é efetivamente o único autor das Cantigas: ele, graças aos seus excelentes dotes poéticos e à sua capacidade de empregar o galego-português, compunha- as em pessoa. Esta opinião tem vindo a receber objeções e sugestões, devidas sobretudo a duas causas: primeiramente, conhecemos o nome de um trova- dor galego, que é Airas Nunes, que, quase com total segurança, participou na composição das Cantigas11 —ou, pelo menos, de algumas das Cantigas— e, em segundo lugar, é pouco crível que um monarca como Afonso X, tão multifa- cetado e atarefado com numerosas ocupações, dispusesse de tempo suficiente medieval, sobretudo durante os séculos XIII e XIV, de uma comunidade linguística, de uma unidade linguística fundamental, em toda a vasta zona do Noroeste peninsular que se estendia desde o Douro até ao mar Cantábrico» (Maia 1986: 891). Este é justamente o nosso parecer. 10 Cfr. Rodríguez (1983: 8). 11 Torna-nos cientes disso uma anotação no manuscrito, na margem da cantiga 223. Verba_hispanica_XXIV_FINAL.indd 26 13.1.2017 14:42:46 VERBA HISPANICA XXIV • CARLOS FOLGAR 27 como para levar a cabo a composição de uma obra poética de tanta complexi- dade e vastidão. Em todo o caso, é verdade que não são dados concludentes, que ponham impedimentos taxativos à atribuição ao rei da autoria direta das Cantigas, de modo que os filólogos ainda não têm chegado ao consenso. Assim, se Pena (2002: 206-209) se mostra defensor, embora expresse certas hesitações, da autoria pessoal afonsina, Lapa (1934: 211), Vilavedra (1999: 63) e Fidalgo (2002: 59-65) preferem pensar que o livro de poemas marianos não pode ser obra exclusiva do rei de Castela. Estas duas últimas investigadoras consideram mais razoável supor que Afonso X teve ao seu dispor, para a elaboração das Cantigas de Santa Maria, uma equipa de colaboradores, na que se incluíam poe- tas e músicos, de maneira que o monarca exercia simplesmente de supervisor e coordenador, tal qual acontecia no caso dos textos redigidos na prosa caste- lhana: Afonso devia ser responsável pela orientação temática e a estrutura geral do livro de poemas, pela compilação dos materiais necessários para a confeção de algumas composições, pelas indicações acerca do tom e o estilo adequados para cada cantiga, pela emenda do rascunho ou até da versão pré-definitiva de algum poema, etc. Apesar disto, tanto Vilavedra como Fidalgo não têm impedimentos para aceitarem que o rei redigiu, ele pessoalmente, sim, um certo número de cantigas, nomeadamente aquelas de teor autobiográfico ou as que recolhem pensamentos e sentimentos íntimos do próprio rei12. Afinal, a ideia maioritária hoje em dia na filologia ibero-românica é que, nas palavras de Correia, Dionísio & Gonçalves: «Parece hoje dificilmente sustentável que as Cantigas de Santa Maria resultem de um engenho e arte de um só indivíduo» (2001: 149). Afonso X será o autor material de algumas das Cantigas de Santa Maria, ainda que não se possa precisar ao certo quantas nem quais são. É importante assinalarmos que para o rei sábio o galego-português não é ape- nas a língua da poesia, mas também a língua da reza, a língua da oração. Sig- nificativo disto é o prólogo das próprias Cantigas, no que se inserem as duas seguintes estrofes: 12 Como contribuição pessoal, nós acrescentaremos que essa última argumentação, que atribui ao monarca a redação de algumas cantigas, não pode ficar separada do facto —previamente comentado numa outra nota de rodapé— de o próprio Afonso ter sido o autor de uma quarentena de cantigas profanas, não vinculadas com a temática religiosa, sobre cuja autoria os filólogos não mostram dúvidas. Portanto, se ninguém põe em causa que, por exemplo, Afonso X é o criador de uma célebre cantiga cujo primeiro verso é Non me posso pagar tanto, «um dos poemas mais belos e pungentes de toda a nossa literatura» na opinião de Lapa (1934: 207), também não encontraremos motivo nenhum para negarmos ao rei castelhano a autoria individual de uma parte, bem que seja pequena, das composições que constituem as Cantigas de Santa Maria. Verba_hispanica_XXIV_FINAL.indd 27 13.1.2017 14:42:46 VERBA HISPANICA XXIV 28 E o que quero é dizer loor da Virgen, Madre de nostro Sennor, Santa Maria, que ést’ a mellor cousa que el fez; e por aquest’ eu quero seer oy mais seu trobador, e rogo-lle que me queira por seu Trobador e que queira meu trobar reçeber, ca per el quer’ eu mostrar dos miragres que ela fez; e ar querrei-me leixar de trobar des i por outra dona, e cuid’ a cobrar per esta quant’ enas outras perdi13. O poeta expressa-se pela primeira pessoa, de maneira que podemos pensar que o autor desse poema-prólogo é o mesmo Afonso. O poeta não se identifica a si próprio como rei, mas como trobador. No entanto, ele não é um trovador como os demais, mas sim um trovador especial. Ele não dedica os seus versos a uma dama, mas à Virgem Maria, cuja autoridade aceita e cuja mercê implora14. Não estamos, pois, perante poesia amorosa; muito pelo contrário, é poesia de conteúdo religioso, o qual não deixa de torná-la numa singularidade no univer- so literário galego-português medieval. Os filólogos costumam afirmar que as Cantigas de Santa Maria —assim como acontece, no âmbito castelhano, com os Milagros de Nuestra Señora, de Gonzalo de Berceo— são poesia de caráter narra- tivo. Nestes textos, portanto, a poesia encontra-se ao serviço da narração. No entanto, nesta narrativa o verdadeiramente importante não é a história contada em si própria, mas a pessoa protagonista dessas histórias. A protagonista é, com certeza, a Virgem Maria. Isto quer dizer que, se a poesia é um instrumento ex- pressivo subordinado à narração, a narração, por sua vez, se coloca ao serviço da fé cristã e, mais em concreto, ao serviço do culto mariano. Diríamos, por conse- guinte, que as Cantigas afonsinas vêm a ser um tratado prático da religiosidade cristã medieval. E para a expressão dos seus afãs religiosos, apresentados como crença e vivência pessoais, Afonso X utiliza o idioma da Galiza e de Portugal. 13 Afonso X, o Sábio, Cantigas de Santa Maria, editadas por Walter Mettmann, Coimbra: Imprensa da Universidade, vol. 1, 1959, p. 2. 14 Acrescenta informações sobre estes versos Fidalgo (2011). Verba_hispanica_XXIV_FINAL.indd 28 13.1.2017 14:42:46 VERBA HISPANICA XXIV • CARLOS FOLGAR 29 Disto tudo, para o nosso propósito atual, inferimos que Afonso X adotou uma atitude positiva, sem qualquer hostilidade nem receio, com respeito à língua galego-portuguesa. Este facto tem de servir para desmentir a ideia de o na- cionalismo castelhano do ideário político afonsino ter a sua equivalência no terreno estritamente linguístico. Podemos apresentar, além disso, três outros dados, em relação com o uso escrito do galego-português, que negam a ideia do alegado nacionalismo linguístico de Afonso X: a) ao reino de Castela pertencia a Galiza, sim, mas não Portugal, o qual significa que o ibero-românico ocidental medieval —ao que costumamos chamar galego-português— era o idioma de um reino independente e fortemente oposto a todas as intenções de anexação le- vadas a cabo pela nova potência castelhana, b) Afonso X não morava na Galiza, ainda que, segundo já temos manifestado, lá tinha residido algumas temporadas nos anos da sua juventude, e c) a corte afonsina também não estava na Galiza, mas em Toledo ou outras cidades castelhanas ou andaluzas. Apesar destes três importantes factos, Afonso X não teve obstáculos para utilizar o galego-portu- guês na sua produção poética. Se o monarca tivesse professado um castelhanis- mo linguístico ativo e combatente, isto último tornar-se-ia inexplicável. O uso que o rei de Castela faz do galego-português não discorda do facto, mencionado por diversos pesquisadores, como Correia, Dionísio & Gonçal- ves (2001: 147) e Martínez (2003: 242-243), de Afonso X ter mais predileção pela poesia trovadoresca provençal do que pela galego-portuguesa. Essa é uma preferência que não sai do âmbito puramente literário e que não implica qual- quer menosprezo do galego-português. Uma boa prova disso é que não consta que Afonso X utilizasse nunca nos seus escritos —ou nas obras dirigidas por ele— a língua provençal. A respeito deste assunto cumpre-nos trazer aqui à colação a supplicatio que em 1274 o trovador provençal Guiraut Riquier, que naquela altura morava na corte castelhana, envia ao próprio Afonso pedindo- lhe que estabeleça com a maior exatidão possível a diferença entre trovadores e jograis15. O texto da supplicatio está em verso provençal. A declaratio, isto é, o poema de resposta, com data de 1275, está também composta em provençal e vem assinada pelo próprio monarca castelhano, mas isso não quer dizer que ele mesmo a escrevesse. Segundo Hilty (2002: 215), é muito mais lógico pensar que o poema de resposta se deve à lavra do mesmo Riquier, quem, com toda a probabilidade, versificou no seu idioma materno as ideias que, sobre o tema que se estava a debater, circulavam pela corte afonsina ou, talvez, passou para o verso um texto prévio que Afonso ou algum secretário seu redigiu em prosa castelhana a modo de resposta à pergunta que se lhe tinha exposto. 15 Cfr. o estudo de Bertolucci Pizzorusso (1966), com a edição do texto. Verba_hispanica_XXIV_FINAL.indd 29 13.1.2017 14:42:46 VERBA HISPANICA XXIV 30 A mesma explicação deve ser válida para o caso de um outro poeta provençal, chamado N’At de Mons, que, numa data anterior a 1275, redige uma com- posição na que expõe o dilema teológico e filosófico entre a predestinação e o livre alvedrio dos seres humanos e pede a Afonso X, enquanto paradigma do «homem sábio» da Idade Média, a sua opinião sobre esse espinhoso assun- to16. A resposta do rei castelhano aparece também em verso provençal, mas é evidente que esses versos não foram compostos senão pelo próprio N’At de Mons, que realizou a tarefa de versificar na sua língua materna um texto prévio que lhe deveu achegar Afonso X com as suas ideias acerca do problema teológico que se lhe tinha colocado. Afonso X não escreveu em provençal, idioma que não pertencia ao espaço lin- guístico e administrativo no que o rei se movia. O galego-português, em com- pensação, sim pertencia a esse espaço, e portanto é lógico que o rei, homem culto e sábio, fizesse uso escrito dessa língua. Pode ver-se que na ideologia linguística de Afonso X não existe qualquer identificação entre o reino e uma língua. Para ele, no mesmo grau são seus o castelhano e o galego-português. Ambas as duas são as suas línguas, mesmo que haja uma especialização funcio- nal entre elas17. Em conclusão, parece-nos indubitável que Afonso X é um nacionalista caste- lhano no terreno político, mas não encontramos evidência alguma de ele ter- se comportado assim no âmbito linguístico. Deste ponto de vista, parece-nos completamente ilógico supor um relacionamento entre a preferência afonsina pelas formas do castelhano sem apócope extrema e as desavenças políticas en- tre a França e Castela. Em nossa opinião, podemos confirmar, por consequên- cia, de um modo definitivo que a explicação que Lapesa (1951: 192) ofereceu é inadequada. Em todo o caso, para terminarmos o artigo vale a pena voltarmos à questão da escolha do castelhano como língua das obras prosísticas dirigidas por Afonso X. A nosso juízo, nessa escolha não interveio a ideologia política nacionalista 16 Cfr. Cigni (2001). A edição do poema encontra-se em Cigni (2012: 37-58). 17 Relativamente a isto, lembraremos aqui umas esclarecedoras palavras de Rodríguez: «durante séculos a única oposição sentida é a de romanço (ou linguagem, ou ‘vulgar’, com adjectivo gentílico secundário ou inexistente) face a latim, numa tensão provocada pela necessidade de elevação do primeiro ao nível do segundo e a consequente ocupação por parte daquele das funções nobres desempenhadas tradicionalmente por este» (1999: 1286). Aliás, o estado de coisas a que nos referimos no texto não pode ser alheio ao facto de os nossos romances medievais terem como característica uma «acentuada variabilidade linguística» (Maia 1997: 158), ainda não submetida à fixação normativa dos gramáticos. Verba_hispanica_XXIV_FINAL.indd 30 13.1.2017 14:42:46 VERBA HISPANICA XXIV • CARLOS FOLGAR 31 do rei castelhano, contra aquilo que afirmaram Deyermond (1971: 155-156) ou Matute (2001: 75). Nós entendemos que, longe de ser uma consequência do nacionalismo, é um processo gradual, já manifestado no reinado de Fernando III, no que a língua romance vai ganhando terrenos de uso e vai deslocando o latim de âmbitos que tradicionalmente eram privativos deste. Este processo produz-se ao abrigo do renascimento cultural do século XIII, graças ao qual, não só na Península Ibérica mas em todo o Ocidente europeu, a sociedade românica desenvolve uma cultura que se expressa na língua vulgar e que visa complementar e, na medida em que for possível, ultrapassar a atividade cultu- ral das escolas episcopais e das universidades, que empregavam apenas o latim como língua do ensino. Em meados do século XIII, os ventos da história eram favoráveis ao romance, de modo que o uso do castelhano na oficina cultural afonsina não é estranho em absoluto. E não é estranho porque o castelhano, naqueles tempos, era a língua comum à maior parte da sociedade do reino18, que era heterogénea do ponto de vista ideológico e religioso, pois estava for- mada por cristãos, mouros e judeus. A esta função aglutinadora da língua cas- telhana fez referência, há muitos anos, Américo Castro quando expressou a sua convicção de que «la cultura viva de Castilla era a la vez cristiana, islámica y judía, y su común denominador tenía que ser el idioma entendido por quie- nes integraban tan extraño conglomerado» (1948: 461)19. O elemento determi- 18 Não seria exato dizermos que era a língua comum a toda a sociedade, porque é extremamente improvável que, por volta de 1250, o castelhano convivesse já, numa situação de bilinguismo mais ou menos extenso, na Galiza com o galego-português e nas Astúrias e em Leão com o asturiano-leonês. Para o caso da Galiza, Mariño Paz afirma que «a lingua de Castela tivo circulación escrita en Galicia desde o mesmo século XIII, porque desde os tempos de Fernando III a corte utilizou esa lingua para se dirixir ós seus súbditos do Reino de Galicia, súbditos que, por outra parte, xa contestaban en castelán desde mediados do dito século XIII» (1998: 156-157), o qual não obsta para ele reconhecer que no nível oral a situação era diferente, visto que «Galicia era entón monolingüe, pois falaban en galego tódalas clases sociais, as ricas e as pobres, as nobres e as plebeas» (1998: 193). 19 Muito menos convincente é a hipótese, também proposta por Castro (1948: 454-462 e 469-475), de a escolha do castelhano como língua da prosa ter-se devido às preferências idiomáticas dos judeus de Castela. Segundo esta teoria, cada religião da Castela medieval tinha um idioma associado: o latim ao cristianismo, o hebreu ao judaísmo e o árabe ao islão. Em virtude das suas crenças, os judeus, que pelo seu conhecimento da cultura árabe ocupavam uma posição cultural estratégica na corte castelhana, não aceitavam o uso do latim nos textos prosísticos, de forma que impuseram o emprego do romance castelhano, que tinha a vantagem de não estar nem direta nem implicitamente associado a um credo determinado. Esta hipótese fica desmentida pelo facto, indicado por Fernández-Ordóñez (2004: 392-393, n. 41), de alguns textos árabes traduzidos para o castelhano terem sido depois vertidos para o latim a partir da própria versão castelhana. Assim sucedeu com o Libro complido en los judizios de las estrellas, traduzido do árabe para o castelhano pelo judeu Yehudá ben Mošé e mais tarde passado para o latim em duas versões diferentes. Uma coisa similar aconteceu com o Libro de Verba_hispanica_XXIV_FINAL.indd 31 13.1.2017 14:42:46 VERBA HISPANICA XXIV 32 nante na conformação linguística da Castela da época afonsina são as pessoas, é o conjunto social, não o nacionalismo político. Bibliografia Bertolucci Pizzorusso, V. (1966): «La supplica di Guiraut Riquier e la risposta di Alfonso X di Castiglia». Em: Studi mediolatini e volgari, 14, 9-135. Castro, A. (1948): España en su historia. Cristianos, moros y judíos. Buenos Aires: Losada; cit. pela reed., Barcelona: Crítica, 1983. Castro, I. (2004): Introdução à história do português. Lisboa: Colibri; cit. pela 2.ª ed. revista e muito ampliada, 2006. Catalán, D. (1971): «En torno a la estructura silábica del español de ayer y del español de mañana». Em: E. Coseriu & W.-D. Stempel (eds.), Sprache und Geschichte. Festschrift für Harri Meier zum 65. Geburtstag. Munique: Wilhelm Fink, 77-110; cit. pela reed. em D. Catalán, El español. Orígenes de su diversidad. 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Londres: University of London, 87-106. la escala de Mahoma, título sob o qual designamos a tradução castelhana, hoje perdida, de um original árabe; partindo dessa tradução para o castelhano fez uma versão latina Boaventura de Siena, erudito italiano que trabalhou na corte afonsina. Cremos conveniente, pois, rejeitar os motivos religiosos na prioridade outorgada ao castelhano por Afonso o Sábio. Verba_hispanica_XXIV_FINAL.indd 32 13.1.2017 14:42:46 VERBA HISPANICA XXIV • CARLOS FOLGAR 33 González Jiménez, M. (2004): «El reino de Castilla durante el siglo XIII». Em: R. Cano (coord.), Historia de la lengua española. Barcelona: Ariel, 357-379. Harris-Northall, R. (1991): «Apocope in Alfonsine texts: a case study». Em: R. Harris-Northall & T. D. Cravens (eds.), Linguistic Studies in Medieval Spanish. Madison: Hispanic Seminary of Medieval Studies, 29-38. Hilty, G. (2002): «El plurilingüismo en la corte de Alfonso X el Sabio». Em: M.ª T. Echenique Elizondo & J. 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But, on the other hand, we find no evidence of political nationalist ideology in the linguistic domain. In order to deny the king’s linguistic nationalism, the best way, in our opinion, is to remember his positive assessment of the Galician-Portuguese language, which he made use of for writing his poetic work, particularly the Cantigas de Santa Maria. In this respect, this text becomes very important and very meaningful, not only in literary history but also from the linguistic point of view, because the king expresses in it —in Galician-Portuguese, not in Castilian— his reli- gious zeal and his devotion to the Blessed Virgin. Verba_hispanica_XXIV_FINAL.indd 35 13.1.2017 14:42:46 VERBA HISPANICA XXIV 36 Carlos Folgar Univerza v Santiagu de Composteli Komentarji o jeziku/-ih in politiki pri Alfonzu X. Modrem Ključne besede: Alfonz X. Modri, nacionalizem, španska srednjeveška kraljestva, apokopa, kastiljščina, galicijskoportugalski jezik, poezija Po mnenju nekaterih uglednih filologov je kralj Alfonz X. v kastiljščino vpel- jal nekatere jezikovne rabe (na primer ukinitev apokope samoglasnika /e/ na koncu besede) zaradi svojega kastiljskega nacionalizma. Avtor prispevka meni drugače. Po eni strani se mu zdi povsem sprejemljiv monarhov politični nacio- nalizem, ki je očiten v njegovih številnih ekspanzionističnih načrtih (Severna Afrika, portugalska pokrajina Algarve, Navara, Sveto rimsko-nemško cesar- stvo …) v korist kraljestva Kastilja in Leon. Toda po drugi strani ni nobenih dokazov, da bi ta politična nacionalistična ideologija odsevala na jezikovnem področju. Po avtorjevem mnenju je mogoče kraljevi jezikovni nacionalizem najlažje ovreči, če izpostavimo, kako pozitivno je vrednotil galicijskoportu- galski jezik, ki ga je uporabljal za pisanje poezije, predvsem marianskih pesmi Cantigas de Santa Maria. Z obravnavanega vidika je to literarno besedilo zelo pomembno in pomenljivo, saj kralj v njem – v galicijskoportugalskem in ne kastiljskem jeziku – izraža svojo versko vnemo in vdanost Devici Mariji. Verba_hispanica_XXIV_FINAL.indd 36 13.1.2017 14:42:46