Blažka Müller Pograjc Doi: io.43i2/vh.22.i.59-69 Universidade de Ljubljana Cantare e cantarfa / cantarei e cantaria: usos retos e deslocados Palavras chave: referenciagao futura, sistema vetorial, relagoes temporais, usos retos, usos deslocados, valores modais. 1 Introdugäo Este artigo visa contribuir para a descrigao do conceito da futuridade e uma re-flexao aprofundada sobre o funcionamento das formas de marcagao de valores de tempo futuro em portugues europeu contemporaneo (PE) e em espanhol europeu contemporaneo (ES). Nela pretendemos discernir como funcionam as formas portuguesas cantarei e cantaria nos seus usos deslocados em contraste com as formas espanholas cantare e cantaria com o objetivo de contribuir para a descrigao contrastiva dos valores temporais e modais que as respetivas formas das duas li'nguas evidenciam. O ponto de partida para este artigo e a hipotese inicial se a proposta do sistema vetorial de Rojo e Veiga, explicando e simbolizando com as formulas vetoriais o panorama temporal de espanhol, poderia ser adequado para descrever os processos de deslocagao que ocorrem no sistema temporal de portugues. Esta hipotese de analise contrastiva assenta nas seguintes consideragoes: (i) tanto em PE como em ES, os recursos de que os falantes dispoem para expressar o tempo ou processar a informagao temporal sao de natureza diversa: para alem da flexao verbal, que permite distinguir morfologica-mente diferentes tempos gramaticais, ha ainda considerar as expressoes adverbiais temporais e os conectores frasicos que introduzem oragoes su-bordinadas temporais; (ii) todas as li'nguas naturais dispoem de varias estrategias para construir a re-ferencia a um estado de coisas que e posterior ao momento da enunciagao1; (iii) em termos dos tempos gramaticais tanto em PE como em ES o valor de posterioridade pode estar construi'do a partir dos tempos gramaticais que possuem marcas especi'ficas de tempo gramatical de futuro2; (iv) as formas lingui'sticas interpretaveis como marcadoras de posterioridade em PE e em ES sao sobretudo marcas modais. Quanto a esta ultima consi-deragao, recorde-se que a evolugao diacronica das formas de futuro passa por fases precisas, caracterizadas por valores de diferente natureza (Bybee et al., 1994). Assim, as diferengas no uso das varias formas sao explicadas justamente em termos do seu grau de retengao de antigos usos modais ou aspectuais e de especializagao no uso de "simple future or prediction" e da existencia de usos modais que derivam de um desenvolvimento semantico tardio deste valor temporal. Deste este ponto de vista, a propriedade mais saliente do futuro romanico e a sua disponibilidade para expressar valores modais que coexistem com a fungao temporal. Um destes usos, denotador do valor modal, e o uso epistemico que expressa uma predigao sobre uma si-tuagao presente, que e interpretada como uma expressao de probabilidade. A analise dos matizes temporais e modais basear-se-a nas formas cantarei e cantaria (PT), cantare e cantaria (ES) que nos seus usos retos implicam uma re-ferenciagao temporal de posterioridade. Realizar-se-a dentro dos pressupostos teoricos de Rojo e Veiga (2000) que se baseiam na perspetiva de Bello (1841). 2 De Bello a Rojo e Veiga Andres Bello foi o primeiro a dar uma visao geral dos valores temporais do verbo espanhol em sua Analisis ideologico de los tiempos de conjugacion castellana (1841). Este trabalho foi publicado pela primeira vez em 1841, mas segundo o mesmo Bello, foi escrito mais de trinta anos antes. Mais tarde, a Analisis foi integrada sem grandes modificagoes em sua Gramatica de la lengua castellana destinada al uso de los americanos (1847). Imediatamente depois da publicagao da Gramatica se criticaram alguns aspetos do trabalho juvenil de Bello, par-ticularmente a simetria excessiva do seu sistema. O seu tratamento do verbo, que se inscreve dentro da tradigao racionalista francesa, contrasta, de alguma forma, com o espi'rito geral da sua Gramatica. Mas o seu sistema nao deve ser considerado como uma criagao apriori'stica, nem tem a intengao de ter a 1 Cf. Markič & Correia (2013) 2 Cf. Oliveira (2003) validade universal. Baseia-se nas nogöes fundamentals de anterioridade, simultaneidade e posterioridade, por um lado e, por outro, na observagao dos fatos lingui'sticos de uma lingua particular. Essencialmente, parece que ainda hoje as concepgoes de Bello seguem validas, e as ideias basicas podem servir como um ponto de partida para uma analise da temporalidade verbal. Entre os estudos modernos dedicados a este problema deve-se ressaltar o tra-balho de Rojo e Veiga (2000). Com base, como Bello, nas tres nogoes temporais basicas e adotando o sistema vetorial de Bull (1968), com algumas modifica-goes, estes autores propoem uma descrigao estrutural dos tempos gramaticais espanhois, onde cada forma esta relacionada, direta ou indiretamente, com o eixo principal de referencia, chamado a origem (o). 3 Rojo e Veiga: relagöes temporais e usos deslocados Para tratar as relagoes temporais e analisar o conceito de usos deslocados abordare-mos aqui, como se disse e embora sem pormenorizar todos os seus fundamentos teoricos, a proposta de Rojo e Veiga (2000). Para estes autores o tempo lingui'stico e bidirecional e, por tanto, um aconte-cimento lingui'stico pode ser considerado anterior, simultaneo ou posterior ao outro. Seguindo a linha de Bull (1960) e Rojo (2000: 2876), podemos contem-plar estas relagoes temporais como vetores (V) e concordar em que o si'mbolo -V simboliza a anterioridade, oV a simultaneidade, e +V a posterioridade. O ponto central de todas as relagoes temporais chama-se O (e significa 'origem'). Assim, as tres relagoes, possi'veis ja desde ini'cio, dum acontecimento lingui'stico com um ponto zero sao simbolizaveis mediante as formulas O - V para o acontecimento anterior a origem (vetor negativo = anterioridade), OoV para o simultaneo a origem (vetor zero = simultaneidade), e O + V para o posterior a origem (vetor positivo = posterioridade). A aparente existencia de relagoes temporais mais complexas nao procede do aumento dessas possibilidades ini-ciais, mas da sua encadeagao numa serie teoricamente ilimitada de conjuntos. Dito de outra forma, qualquer ponto, orientado com respeito a origem, se pode tornar uma referencia em relagao a qual se situa outro acontecimento que e, assim, orientado diretamente para a referencia e apenas indiretamente com respeito a origem. Assim, Rojo e Veiga apresentam as formulas (O-V) -V, (O-V) oV e (O-V) + V, que correspondem a acontecimentos que sao, respeti-vamente, anterior, simultaneo e posterior a outro acontecimento que a sua vez e anterior a origem. Em relagao com o conceito de deslocagäo e u^os deslocados podemos confirmar que a deslocagao pode ser concebida como uma reorganizagao dos conteu-dos temporais que aporta uma reorganizagao paralela dos conteudos modais. Assim, explicam Rojo e Veiga (2000: 2894) que a 'deslocagäo temporal' das formas verbais pode ser vista como um mecanismo mediante o qual as formas adquirem valores adicionais. Defendem estes autores que e necessario dife-renciar, para todas as formas, entre um 'valor reto' e 'valores deslocados' que aparecem sistematicamente como consequencia da expressäo de um valor temporal distinto do reto. 3.1 Realizagäo basica do conteüdo temporal cantare (ES) / cantarei (PT) - valores retos 1. Mi primo estudiara filologi'a clasica3. 2. O meu primo estudara filologi'a classica. Tanto em ES como em PT as expressoes verbais que correspondem a realiza-gäo de um dos conteudos temporais mais simples que se assenta numa orien-tagäo medida diretamente desde o ponto origem (O) säo as formas cantare e cantarei: tendo em vista a orientagäo temporal primaria diretamente enfocada desde o centro de referencias do sistema, estas formas expressam as relagoes de posterioridade. A formula para as duas formas, tanto em ES e em PT, seria (O + V). Säo reconheci'veis em circunstancias de total independencia sintatica e sem necessidade de que exista nenhum tipo de indicador temporal no con-texto, tal como adverbial temporal ou outro elemento lingui'stico que permita localizar cronologicamente o processo verbal. 3.2 Realizagäo basica do conteüdo temporal cantaria (ES) / cantaria (PT) - valores retos Neste ponto, oferece-se a exame a relagäo temporal de posterioridade dentro do vetor original negativo. As formas cantaria e cantaria expressam relagoes temporais bivetoriais que incluem sempre um vetor originario negativo. O vetor primario das formas cantaria e cantaria em ambas as li'nguas, e o vetor po-sitivo, simbolizando a posterioridade. Assim, em ambas as li'nguas em questäo, podemos observar, como propoem Rojo e Veiga (2000: 2884) o que ocorre en-tre cantare e cantaria e cantarei e cantaria: todas estas formas säo os paradigmas que expressam primariamente posterioridade; a diferenga entre elas consiste 3 Os exemplos säo meus. em que a primeira (cantare, cantarei) o faz em relagao a origem e a segunda (cantaria, cantaria), porem, com respeito a um ponto anterior a origem: 3. Dice que su primo estudiara filologi'a clasica. O + V 4. Dijo que su primo estudiaria filologi'a clasica. (O - V) + V 5. Diz que o seu primo estudara filologi'a classica. O + V 6. Disse o seu primo estudaria filologi'a classica. (O - V) + V Em (3) e (5) trata-se da realizagao basica do conteudo temporal, simboliza-vel pela formula O + V. E obvio, como se disse ja pouco atras, que no caso da forma cantaria, cantaria que se apresentam nos exemplos (4) e (6), o decisivo que estabelece o lugar desta forma verbal no sistema temporal do espanhol, igual que no sistema temporal do portugues, e a expressao duma situagao posterior a uma referencia anterior a origem e nao a orientagao desta situa-gao com relagao a origem. 3.3 Primeiro caso de deslocagäo temporal no indicativo espanhol e portugues O mecanismo do primeiro caso geral de deslocagao abrange a aquisigao de um valor modal de incerteza por parte das formas em cujo valor reto intervem um vetor de posterioridade. Assim, no sentido temporal, em espanhol, ♦ cantare pode expressar a relagao 'presente' e ♦ cantaria pode expressar as relagoes 'preterito' e 'co-preterito'. O valor modal adquirido e o valor de incerteza. Vejamos, a base dos exemplos apresentados, como funciona o mecanismo de deslocagao: 7. Ahora estara estudiando en su cuarto. - incerteza, probabilidade no presente 8. En aquel momento tendria treinta anos. - incerteza ou suposigao no passado 9. Agora estard a estudar no seu quarto. - incerteza, probabilidade no presente 10. Naquela altura teria trinta anos. - incerteza ou suposigao no passado Em (7) e (9) apresenta-se o uso do futuro pelo presente e nestes exemplos observa-se que o vetor de posterioridade e sustitui'do por outro de simultaneidade. Esta deslocagao provoca um desajuste entre o valor central (posterio-ridade) das formas estard (ES) e estard (PT) e a relagao temporal expressada (simultaneidade) pelas mesmas. Como consequencia deste desajuste aparece um valor modal adicional que e o valor de incerteza, probabilidade no presente. Nos exemplos (8) e (10), ou seja, tanto em ES como em PT, encontramos o mesmo fenomeno de deslocagao e detectamos os mesmos efeitos: o vetor de posterioridade e sustitui'do por outro de simultaneidade, acrescenta-se o valor modal de incerteza ou suposigao no passado. Ilustrando o primeiro caso de deslocagao com as formulas vetoriais, propostas por Rojo e Veiga (2000: 2913), vemos que, substituindo nas realizagoes basicas mencionadas o vetor de posterioridade por um de simultaneidade ou, em al-guns casos (pos-preterito - preterito), suprimindo-o, tanto em ES como em PT, obtemos as seguintes correspondencias: O + V -► OoV futuro presente cantare canto cantarei canto (O - V) + V -► O - V pos-preterito preterito cantaria cante cantaria cantei (O - V) + V -► (O -V) oV pos-preterito co-preterito cantaria cantaba cantaria cantava Esquema (1) No caso denominado por Rojo e Veiga o primeiro tipo de deslocacagäo, po-demos observar que em ambas as li'nguas existem empregos do futuro do indicativo que expressam referencia temporal nao-futura: o futuro, tanto quando expressa as relagoes de posterioridade medidas diretamente desde o ponto origem (O) (cantare e cantarei ) como quando expressam a relagao temporal de posterioridade dentro do vetor original negativo e em relagao a um ponto anterior a origem (cantaria, cantaria), pode servir para referir uma inferencia relativa a uma situagao presente ou passada respetivamente. O domi'nio conceptual em causa e entao o do epistemico. Trata-se do mais comum dos usos nao-futurais da forma, sendo a sua frequencia particular-mente alta em variedades coloquiais. 3.4 Segundo caso de deslocagäo temporal no indicativo espanhol e portugues O mecanismo do segundo caso geral de deslocagao abrange a aquisigao de um valor modal de irrealidade por parte das formas verbais em cujo valor reto intervem algum vetor de anterioridade unido a algum vetor de posterioridade. Esta combinagao vetorial encontra a sua realizagao na forma cantaria (ES) e, como veremos, em portugues, na forma cantaria (PT). Assim, a forma cantaria pode ser utilizada para expressar a mesma relagao temporal que constitui o uso reto de canto. Tambem em portugues se nota que a forma cantaria expressa a mesma relagao temporal que e a relagao do uso reto de canto (PT). O valor modal adquirido nesse processo de deslocagao e o valor modal de irrealidade que adquirem as formas em ambas as li'nguas. 11. En estos momentos estaria encantado en la playa. - valor modal de irrealidade no presente 12. (Se quisesse passar no exame), nestes momentos estudaria no meu quarto. - valor modal de irrealidade no presente Estaria encantado implica no estoy, estudaria implica que nao estuda. Os exem-plos sao aparentados na medida em que se pode inferir que os eventos des-critos nas oragoes nao se estao a realizar. O essencial, no sentido temporal, e o facto de que a relagao temporal efetivamente expressada nestes casos e 'presente'. Em ambas as formas, tanto em forma de espanhol como em forma de portugues, ficam suprimidos os vetores originarios de anterioridade e os primarios de posterioridade. Mediante o processo de deslocagao se cria o conteudo modal de irrealidade que nos exemplos acima citados marcam as formas em questao. Ilustra-se no esquema (2) o segundo caso de deslocagao com as formulas vetoriais, propostas por Rojo e Veiga (2000: 2914). Acrescentam-se as formas em PT: (O - V) + V -► OoV pos-preterito presente cantaria canto cantaria canto Esquema (2) 4 Notas conclusivas O ponto de partida para este artigo era a hipotese inicial se a proposta do sistema vetorial de Rojo e Veiga, explicando e simbolizando com as formulas vetoriais o panorama temporal de espanhol, poderia ser adequado para descrever os pro-cessos de deslocagao que ocorrem no sistema temporal de portugues. Realizada uma analise, podemos verificar que a resposta a nossa hipotese inicial e positiva. Tanto em ES como em PT encontramos os dois casos de deslocagao com as res-petivas consequencias, como proposto na teoria de Rojo e Veiga. Verificamos com Rojo e Veiga (2000: 2895) que o primeiro caso de desloca-gao, como descrito pelos autores, conducente a matizes modais de incerteza, e exclusivo, tanto em ES como em PT, daquelas formas verbais de indicativo em cujo valor temporal reto intervem obrigatoriamente algum vetor de pos-terioridade. Estas formas sao cantare, cantaria (ES) / cantarei, cantaria (PT). Mediante esta deslocagao fica suprimido o vetor de posterioridade e substitui-se com o vetor de simultaneidade. Em quanto ao segundo caso de deslocagao, conducente a matizes modais de irrealidade, esta pode aparecer em certas formas indicativas em cujo valor temporal reto intervem obrigatoriamente algum vetor originario de anterioridade, em concreto, nas formas indicativas cantaria (ES) / cantaria (PT). Bibliografia Bello, Andres (1847/1988): Gramatica de la lengua castellana destinada al uso de los americanos, I, II con las notas de Rufino Jose Cuervo. Estudio y edicion de Ramon Trujillo. Madrid: Arco Libros. Bull, Wiliam E. (1968): Time, Tense and the Verb. A Study in Theoretical and Applied Linguistics, with Particular Attention to Spanish. Berkeley: University of California Press. Bybee, Joan et. altri (1994): The Evolution of Grammar. Tense, Aspect, and Modality in the Languages of the World. Chicago: University of Chicago Press. Markič, Jasmina & Clara Nunes Correia (ur.) (2013): Descrigoes e Contrastes - Topicos de Gramatica Portuguesa com Exemplos Contrastivos Eslovenos/ Opisi in primerjave. Poglavja iz slovnice portugalskega jezika s kontrastivnimi ponazoritvami v slovenščini. Ljubljana: Znanstvena založba Filozofske fakultete. Oliveira, Fatima (2003): «Tempo e aspecto». Em: Mateus, M. Helena et al. Gramatica da Lingua Portuguesa (5® ed.). Lisboa, Caminho, 129-178. Rojo, Guillermo e Veiga, Alexandre (2000): «El tiempo verbal. Los tiempos simples». Em: Bosque, Ignacio e Demonte, Violeta (eds.) (2000): Gramatica descriptiva de la lengua espanola. Madrid: Espasa, 2867-2934.