VERBA HISPANICA XXXI • CLÁUDIA MARIA DE SOUZA AMORIM 119 Cláudia Maria de Souza Amorim DOI: 10.4312/vh.31.1.119-129 Universidade do Estado do Rio de Janeiro Descolonizar a terra, o corpo, a palavra: uma leitura de Caderno de memórias coloniais, de Isabela Figueiredo Os modos principais ou mais difundidos da dominação mo- derna são o capitalismo, o colonialismo e o patriarcado. Os dois últimos existiam antes do capitalismo, mas este reconfigu- rou-os de maneira profunda, a fim de garantir uma exploração sustentável do trabalho humano e da natureza. A exploração da mão de obra livre não se sustenta sem uma mão de obra extremamente desvalorizada, ou uma mão de obra não paga, provida por corpos racializados (colonialismo) e sexualizados (patriarcado). Boaventura de Sousa Santos Palavras-chave: Pós-colonialismo, narrativa portuguesa contemporânea, Isabela Figueiredo O artigo analisa a narrativa Caderno de memórias coloniais, de Isabela Figueiredo, observando a corporeidade como eixo central da narrativa. A chave de leitura que dá relevo ao corpo está explícita na narração da jovem Isabela que passa em revista os anos vividos em Moçambique e de como o pai exercia o poder colonial, sendo a representação metonímica do domínio português sobre os nativos. Observando o seu próprio corpo, o corpo dos pais e o corpo aparentemente submisso dos negros e negras, a jovem contesta o colonialismo, desenvolvendo com o pai uma relação ambígua em que entram em cena o afeto por ele e a recusa ao que ele representava. Nesse domínio do corpo se associam o colonialismo e o patriarcalismo, como sistemas de opressão. Através Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 119 Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 119 16. 01. 2024 14:39:24 16. 01. 2024 14:39:24 VERBA HISPANICA XXXI • O MUNDO LUSÓFONO NAS LÍNGUAS E LITERATURAS ROMÂNICAS 120 da ironia, a personagem-narradora expõe o caráter brutal do colonialismo português em África ao mesmo tempo em que toma consciência de seu corpo e de sua singularidade que passa ainda pelo exercício da escrita. 1 Introdução “No princípio eu era de carne e estava na terra. Começou assim. Não pensei em mim como rapariga nem como branca nem como rica ou pobre. Não pensei porque não era preciso. Eu era de carne e estava na terra.” (Figueiredo, 2015: 7). Com essa observação após um poema de Manuel António Pina, Isabela Figueiredo inicia o prefácio “Palavras Prévias”, apenso ao livro Caderno de memórias coloniais, cuja primeira edição vem a lume em 2009, pela Editorial Caminho, em Portugal. Nesse prefácio, encontram-se expostas as razões pelas quais Isabela Figueiredo escreveu o Caderno. Ele surge muitos anos depois de sua partida de Moçambique e expõe algumas das tensões que marcaram o passado colonial nesse país, onde a autora viveu até os 13 anos, a sua relação ambígua com o pai – um homem colonialista e racista, cujos valores serão contestados pela filha adolescente durante o período mais difícil da vida de sua família na capital Lourenço Marques (atual Maputo), e a sua crítica a um sistema opressor em cadeia, no qual os homens brancos oprimiam as mulheres brancas, ambos oprimiam os homens e mulheres negros, e homens negros oprimiam as mulheres negras. Nesse sistema opressor, sem desprezar os outros componentes da sociedade colonialista e patriarcal, é nítido que a violência do branco europeu sobre o negro africano constitui a face mais cruel da colonização. Tal violência é o fio condutor da denúncia que o Caderno nos traz. Ao aludir, nesse prefácio, a uma espécie de autorretrato essencial – “eu era de carne e estava na terra” – a autora associa a vida (a carne) à terra (o chão onde se pisa), ratificando a ideia de que o corpo não se separa da terra, àquela altura a terra africana, terra onde nascera filha de pais brancos portugueses e colonos. Nessa declaração, uma espécie de Gênesis de sua origem, já se nota o aspecto da corporeidade que singulariza a narrativa. A menina Isabela cresce observando dos corpos as marcantes diferenças, que, na infância, com os pés na terra, lhe eram irrelevantes. À medida que cresce, as diferenças se tornam evidentes e são muitas: as que separam um corpo negro de um branco; o corpo masculino do feminino, o corpo das crianças do dos adultos. Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 120 Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 120 16. 01. 2024 14:39:24 16. 01. 2024 14:39:24 VERBA HISPANICA XXXI • CLÁUDIA MARIA DE SOUZA AMORIM 121 2 O corpo que atravessa a obra Como uma chave de leitura, o corpo como espaço próprio e espaço de dominação atravessa toda a obra de Isabela Figueiredo. Não se trata apenas do seu corpo e do corpo do outro, mas de um corpo territorial (Moçambique) dominado pelo regime colonialista decadente, um corpo doente do Império que os colonos insistiam em defender. Como observou Madalena Vaz Pinto (2022: 34), no artigo “Caderno de memórias coloniais: corpo, linguagem, inacabamento”, O lugar central que o corpo ocupa nesta narrativa também contri- bui para lhe conferir um lugar particular na literatura portuguesa. [...]. Ainda sem linguagem, Isabela sente, observa. O corpo dela e dos outros. As diferenças. As liberdades e os interditos. O corpo como lugar do desejo, o corpo como espaço de poder. O corpo dos portugueses, o corpo dos africanos; os corpos dos homens, os corpos das mulheres. O corpo do pai, o corpo da mãe [...]. Interessa-nos observar a ideia central do corpo na narrativa, focalizando, primeiramente, o conflituoso processo de descolonização 1 de Moçambique englobando o tempo anterior à Revolução dos Cravos e à independência do país, bem como os anos subsequentes a esses acontecimentos históricos, que acentuam a crise e propiciam a saída em massa de colonos portugueses da África. Nesse sentido, a terra africana é o corpo dominado pelo Império, ainda que imaginário 2 , que persiste na insustentabilidade da política imperialista nos moldes como Portugal a desenvolvia àquela altura. Em seguida, como um círculo concêntrico, que parte do social ao particular, focalizam-se os corpos tensionados no contexto colonial pelo racismo e pelo patriarcalismo, quase sempre conjuntos em suas ações violentas, pela perspectiva de uma jovem branca, que contesta os valores sociais comungados pela sua família e fortemente defendidos por seu pai. Por fim, objetiva-se pensar a escrita como um corpo, uma escrita que ganha forma a partir da elaboração subjetiva de Isabela, a personagem-narradora, 1 Embora se use continuamente o sintagma “processo de descolonização”, Eduardo Lourenço observa se é correto assim nomeá-lo, uma vez que não existiu um projeto de conversão do antigo estatuto colonial para outro tipo de organização social. (Laranjeiro, 2015). 2 Ribeiro (2004: 27) observa que “Todos os impérios são, em grande parte, imaginários ou ficções políticas de nações que se excedem a si mesmas. Um império é, por definição, uma nação que se espalhou por terras longínquas do seu berço inicial e, nessa medida é um território em processo simultâneo de desterritorialização e de reterritorialização”. Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 121 Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 121 16. 01. 2024 14:39:24 16. 01. 2024 14:39:24 VERBA HISPANICA XXXI • O MUNDO LUSÓFONO NAS LÍNGUAS E LITERATURAS ROMÂNICAS 122 como uma vivência do luto (luto pelo pai, apesar de sua representação metonímica do colonialismo), luto também por um tempo em que Isabela “era de carne e estava na terra.”. No prefácio acima referido, Isabela Figueiredo define o que é o Caderno, segundo sua percepção: [...] o Caderno transcende as questões de poder colonial, racial, social e de género, transformando-se, também, numa narrati- va de amor filial conturbado e indestrutível. Segue o percurso sensual e iniciático da menina que descobre o seu corpo e os alheios. É uma história de perda, na qual uma rapariga cujo percurso autónomo se adivinha, sente e mostra a necessida- de de desenvolver a resistência máxima, e de crescer depressa, para garantir a sobrevivência, testada ao atravessar a realidade hostil da colonização e da descolonização em Portugal, para onde é enviada sozinha. (Figueiredo, 2015: 9) Se o amor filial se faz presente na obra, também ganha relevo logo nas primeiras páginas da narrativa a imagem do pai como um colono que “gostava de foder” (Figueiredo, 2015: 42). Ele e os demais brancos “iam às pretas” (Figueiredo, 2015: 38), sem qualquer constrangimento, como uma apropriação do corpo alheio que não pudesse ser questionada. Sobre esse aspecto da dominação sexual, observa Paulina Chiziane (2015: 18) no prefácio à obra de Figueiredo: O corpo das mulheres brancas ou negras, o corpo da terra afri- cana, só o homem branco podia usar, tocar abusar e violentar. Aqui o continente africano é também representado no femi- nino, que só o homem branco podia usar, abusar e violentar. Acionando a memória da infância, a narradora vai tecendo, nas entrelinhas dos discursos dos pais e dos colonos brancos com quem convivia, um questionamento a esse discurso, que lhe aparece inicialmente como estranhamento. A repetição das falas dos familiares e colonos, especialmente a do pai, em contraste com a opinião da narradora, compõe o tecido crítico da narrativa, delineado desde os primeiros questionamentos ingênuos da menina Isabela até o discurso da jovem, contestatório e irônico, ao projeto colonialista português. É por meio da observação e da leitura, práticas habituais de Isabela, que essa crítica se consolida como uma tomada de consciência. Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 122 Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 122 16. 01. 2024 14:39:24 16. 01. 2024 14:39:24 VERBA HISPANICA XXXI • CLÁUDIA MARIA DE SOUZA AMORIM 123 Os livros mostravam-me que na terra onde vivia não existia re- denção alguma. Que aquele paraíso de interminável pôr-do-sol salmão e odor a caril e terra vermelha era um enorme campo de concentração de negros sem identidade, sem a propriedade do seu corpo, logo, sem existência. (Figueiredo, 2015: 52). O questionamento de Isabela em relação às posições do pai se acentua de tal modo, ao longo da narrativa, que a jovem, ao deixar Moçambique para morar em Portugal com alguns familiares, recusa-se a ser a portadora da mensagem dos colonos sobre o conflito violento que se passava em Moçambique após a Independência, quando os brancos colonos começam a ser duramente assassinados pelos nativos africanos ligados aos movimentos independentistas. 3 A recepção do Caderno e os confrontos com o passado colonial A sua versão dos fatos, no caminho oposto àquele que os seus pais esperavam que fizesse, se concretiza, anos depois, na escrita do Caderno, no qual desnuda as mazelas do colonialismo em Moçambique, e denuncia, pelo viés da ironia, o discurso que o sustentou. No contexto em que surge o Caderno, é surpreendente, para a própria escritora, que ele tenha causado tanto impacto em um país democrático, que passava em revista crítica os duros anos do salazarismo como também a guerra colonial. Tal impacto acaba por resultar numa espécie de descrédito tanto da autora, quanto da obra: “Desenvolveram- se esforços para descredibilizar o Caderno com argumentos relacionados com a minha tenra idade e desconhecimento, a minha origem social, o facto de ter vivido no Alto-Maé e na Matela, lugares habitados por brancos menos instruídos.” (Figueiredo, 2015: 10). Contudo, a obra foi bem recebida nos círculos acadêmicos e obteve novas edições, o que denota o interesse de uma parcela da sociedade portuguesa em rever os difíceis temas da história recente do país. Portanto, o corpo “morto” do sistema colonial, que se quis enterrar, por vezes, após a Revolução dos Cravos, ressurge nos anos subsequentes através da revisão crítica e histórica do colonialismo. A narrativa de Isabela Figueiredo emerge nesse contexto, em que a necessidade de revisar a história parece se impor. Como observa Ribeiro (2020: 128, grifos nossos), na virada do século, o debate sobre o passado colonial começa a se fazer mais presente tanto na literatura, quanto em outras áreas do conhecimento na sociedade portuguesa. Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 123 Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 123 16. 01. 2024 14:39:24 16. 01. 2024 14:39:24 VERBA HISPANICA XXXI • O MUNDO LUSÓFONO NAS LÍNGUAS E LITERATURAS ROMÂNICAS 124 À parte os romances que retratavam a realidade do que tinha sido a Guerra Colonial, o silêncio foi a marca dos anos 80 e 90 do século passado, relativamente a este passado recente português. Hoje, o que vemos na verdade não é o regresso do passado co- lonial, mas o início do debate entre esse tempo marcado pela dominação colonial e as relações sociais contemporâneas em sociedades herdeiras desses passados coloniais na Europa. Se- jam debates sobre a continuidade de um olhar colonial euro- peu, sobre o reconhecimento público da memória da escrava- tura e do colonialismo, [...]. 4 A cisão na África colonial e no corpo do sujeito Voltando ao Caderno, vemos que, ao observar a família, as pessoas de sua convivência, inclusive os empregados do pai, os nativos habitantes de Lourenço Marques, a personagem-narradora, à medida que cresce, percebe-se parte de um mundo cindido. E essa cisão experimenta-a no seu próprio corpo. Como observa José Gil (2015: 24), em um prefácio à obra: O filho de colono nasce em estado de cisão. Múltipla cisão: entre o mundo material e elementar de África, com os seus espaços imensos, o excesso de tudo, no sol, no calor, na chuva, nas cores, nos ruídos, nos perigos – e o mundo cultural de Portugal, recitado na escola, veiculado por uma língua inapta para captar a geografia, a fauna e a flora africanas que as línguas indígenas conheciam tão bem; [...]. A singularidade da vida na África, o aprendizado da terra, despertava na personagem um entrelaçamento com o mundo natural que a rodeava, um mundo em que o corpo é parte da natureza. “A terra era boa, mas era boa porque estava nua. A picada, a machamba, o mato. Todos nus.” (Figueiredo, 2015: 63). Essa vivência com a natureza e as pessoas que a cercavam a levará a dedicar uma certa afeição ao “filho do vizinho preto” (Figueiredo, 2015: 79), um garoto da sua idade. Tinham ambos dez anos. Eu tinha medo do filho mulato que já devia estar a crescer na minha barriga, de certezinha. Agradava-me o rapaz, e já tinha percebido que quando um homem e uma mulher gostavam um do outro, nascia uma criança. Se eu tivesse grávida do preto, o meu pai podia matar-me, se quisesse. (Figueiredo, 2015: 80). Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 124 Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 124 16. 01. 2024 14:39:24 16. 01. 2024 14:39:24 VERBA HISPANICA XXXI • CLÁUDIA MARIA DE SOUZA AMORIM 125 A descoberta da sexualidade, normalmente reprimida na sociedade patriarcal, fazia-se assim entre a curiosidade em relação ao próprio corpo e o campo do interdito para a jovem Isabela. A personagem-narradora, ainda criança, sente medo do castigo do pai, porque imaginava um “filho mulato” crescendo em seu corpo. Como se sabe “a mestiçagem foi por muito tempo uma ameaça às potências coloniais e imperialistas” (Michel, 2012: 658) e a personagem experimenta intuitivamente o temor de subverter a ordem ao imaginar-se miscigenada aos nativos e à história local. Reforçando a ameaça da mestiçagem e o exercício de dominação, a distância dos corpos dos negros e dos brancos era abissal, mesmo entre os mainatos (os empregados que viviam nas casas dos colonos). Essa distância traduzia-se por vezes no andar cabisbaixo dos nativos que não deveriam ousar olhar os brancos. O império colonial impunha o domínio dos corpos, que deveriam se tornar dóceis e submissos, como incapazes de qualquer reação. Contudo, essa domesticação do corpo alheio não impedia ações e/ou expressões que denunciavam as tensões existentes, quando a jovem Isabela flagra nos olhos de um dos trabalhadores de seu pai o “frio fervente de ódio e miséria suja, dependência e submissão, sobrevivência e conspurcação” (Figueiredo, 2015: 52), mostrando-lhe que “não havia olhos inocentes”. (Figueiredo, 2015: 52). A Revolução dos Cravos e as ações que se seguem à chegada da notícia do que ocorria em Portugal operam uma reviravolta nas relações de poder nas colônias e os conflitos se tornam intensos. Os pais de Isabela resolvem mandar-lhe para Portugal. Uma semana antes da partida, percebendo que “a vida de um branco em Lourenço Marques tinha-se tornado um jogo de sorte ou azar” (Figueiredo, 2015: 37), a jovem relata o episódio em que jogou esse jogo, “sem perdas de maior” (Figueiredo, 2015: 137) ao ser alvo de uma abordagem violenta por parte de um jovem negro que [...] esmagou o meu corpo contra si, arrebanhando com a mão direita o meu monte de Vénus, apertando-o com força, como espremeria um caju para sumo. Olhou-me nos olhos, muito perto, sem temor, sem culpa. Largou-me sem palavra, e conti- nuou rápido, sem se voltar. (Figueiredo, 2015: 138). A cena descrita, em que a agressão sexual se desenha, inverte o lugar de poder dos corpos, num contexto em que a violência se volta contra o corpo do colonizador, seja a de caráter sexual, seja a do domínio da guerra, quando muitos colonos são brutalmente assassinados e têm seus corpos mutilados pelos guerrilheiros. Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 125 Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 125 16. 01. 2024 14:39:24 16. 01. 2024 14:39:24 VERBA HISPANICA XXXI • O MUNDO LUSÓFONO NAS LÍNGUAS E LITERATURAS ROMÂNICAS 126 5 A ambiguidade na narrativa Caderno de memórias coloniais estampa a “verdade nua e brutal do colonialismo português em Moçambique” (Gil, 2015: 23), não sem trazer em seu tecido narrativo a ambiguidade das relações de Isabela com o pai, que a jovem tenta, a despeito de tudo, “proteger [...] da fácil e tentadora diabolização que sobre ela é possível desenhar” (Figueiredo, 2015: 13). O Caderno, sublinha a autora, “existe por ele e para ele. [...] e esta obra é a carta que quis deixar-lhe” (Figueiredo, 2015: 13). Como observa Anita Moraes (2010: 243), A centralidade da figura paterna é importante para a econo mia do livro, configurando-se numa espécie de protagonista e mes- mo num in terlocutor subentendido (lembremos que o livro é dedicado a sua memória). O trânsito geral/particular/geral na composição dessa personagem-central torna-se decisivo: as ações e características do pai podem ser tomadas como pró- prias de todo o grupo de que faz parte (os colonos brancos). Se as relações entre a filha e seu pai são marcadas pela ambiguidade no campo dos afetos, outra ambiguidade se faz presente também na estrutura da narrativa em que, para além da “verdade nua e brutal do colonialismo”, portanto da verdade testemunhal, encontra-se o trabalho de elaboração poética, que faz dessa narrativa um texto heterogêneo. Isso não quer dizer que o componente testemunhal sem dimensão literária não seja ele mesmo também fonte de trabalho com a linguagem. Como observa Seligman-Silva (2006: 46-47), O testemunho coloca-se desde o início sob o signo da sua si- multânea necessidade e impossibilidade. Testemunha-se um excesso de realidade e o próprio testemunho enquanto na- rração testemunha uma falta: a cisão entre a linguagem e o evento, a impossibilidade de recobrir o vivido (o “real”) com o verbal. O dado inimaginável da experiência concentracio- nária desconstrói o maquinário da linguagem. Essa linguagem entravada, por outro lado, só pode enfrentar o “real” equipada com a própria imaginação: por assim dizer, só com a arte a intraduzibilidade pode ser desafiada – mas nunca totalmente submetida. Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 126 Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 126 16. 01. 2024 14:39:24 16. 01. 2024 14:39:24 VERBA HISPANICA XXXI • CLÁUDIA MARIA DE SOUZA AMORIM 127 6 Conclusão Não há dúvida de que nessa narrativa em primeira pessoa, em que a voz da personagem-narradora é simultaneamente a voz da autora da obra, o caráter testemunhal e autobiográfico são fatores incontestes, o que dificulta a própria definição da obra no campo dos gêneros literários. Como observou Madalena Vaz Pinto (2022: 231), “talvez importe menos situar o texto, arrumá-lo em um gênero definitivo, e antes enfatizar sua indecibilidade radical como potencial abertura a insuspeitadas leituras.”. Como escrita, a narrativa marca-se por um rico hibridismo, ao compor-se de fragmentos, de fotografias em grande parte pessoais 3 , de acontecimentos que evocam a biografia de Isabela Figueiredo. Em contrapartida, também se estendem ao domínio da criação literária, da elaboração poética, da ficção. Disso resulta um corpo de escrita no qual a personagem-narradora reconstitui e revê criticamente o corpo do colonialismo, metonimizado por seu pai, e a tensão dos corpos subjugados em suas relações. Referências Chiziane, P. (2015): “Sobre Caderno de memórias coloniais”. Em: Isabela Figueiredo. Caderno de memórias coloniais. 6ed. Lisboa: Editorial Caminho, 15-22. Figueiredo, I. (2015): Caderno de memórias coloniais. 6ed. Lisboa: Editorial Caminho. Gil, J. (2015): “Sobre Caderno de memórias coloniais”. Em: Isabela Figueiredo. Caderno de memórias coloniais. 6ed. Lisboa: Editorial Caminho, 23-28. Laranjeiro, C. (2015) “Recensão crítica ao livro Do colonialismo como nosso impensado. Prefácio de Margarida Calafate Ribeiro e Roberto Vecchio. Lisboa: Gradiva”. Revista crítica de Ciências Sociais. Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, 182-185. Marzano, M. (org.) (2012). Dicionário do corpo. Tradução: Lúcia Pereira de Souza et al. 1ed. São Paulo: Edições Loyola, Centro Universitário São Camilo. 3 A obra é composta de nove fotografias: duas delas são da paisagem urbana de Alto Maé, onde morava a família de Isadora Figueiredo, a outra de Lourenço Marques. Há uma em que aparecem os nativos em uma espécie de feira, e outra em que Isabela está ao lado de familiares e de uma criança e uma mulher negra. As demais mostram centralmente Isabela criança e já adolescente. Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 127 Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 127 16. 01. 2024 14:39:24 16. 01. 2024 14:39:24 VERBA HISPANICA XXXI • O MUNDO LUSÓFONO NAS LÍNGUAS E LITERATURAS ROMÂNICAS 128 Michel, F. (2012): “Mestiçagem”. Em: Michela Marzano (org.). Dicionário do corpo. Tradução: Lúcia Pereira de Souza et al. 1ed. São Paulo: Edições Loyola, Centro Universitário São Camilo. Moraes, A. M. R. de. (2010): “Caderno de memórias coloniais, de Isabela Figuei- redo”. Via Atlântica 11(1), 241-245. https://doi.org/10.11606/va.v0i17.50564 Ribeiro, M. C. (2004): Uma História de Regressos. Império, Guerra Colonial e Pós- colonialismo. Porto: Edições Afrontamento. Ribeiro, M. C. (2020): “Viagens no contemporâneo. Pós-colonialismo, cosmopolitismo e programação”. Mulemba. 12 (22), 127-147. Santos, Boaventura de Sousa (2022): Descolonizar. Abrindo a história do presente. Belo Horizonte: Autêntica Editora; São Paulo: Boitempo. Seligmann-Silva, M. (org.) (2006): História, memória, literatura. O testemunho na era das catástrofes. Campinas: Editora da Unicamp. Vaz Pinto, M. (2022): “Caderno de memórias coloniais: corpo, linguagem, inacabamento”. Convergência Lusíada, 33 (47), 228-240. https://doi. org/10.37508/rcl.2022.n47a481 Decolonizing the land, the body, the word: a reading of Caderno de memórias coloniais, by Isabela Figueiredo Keywords: Post-colonialism, Contemporary Portuguese narrative, Isabela Figueiredo The article analyses the narrative Caderno de memórias coloniais, by Isabela Figueiredo, observing corporeality as the central axis. The reading key that highlights the body is explicit in the narration of the young Isabela who reviews the years she lived in Mozambique and how her father exercised colonial power, being the metonymic representation of Portuguese rule over the natives. Observing her own body, her parents’ bodies and the apparently submissive bodies of black men and women, the young woman contests colonialism, developing an ambiguous relationship with her father in which her affection for him and her rejection of what he represents come into play. In this domain of the body, colonialism and patriarchalism are associated, as systems of oppression. Through irony, the narrator-character exposes the brutal nature of Portuguese colonialism in Africa at the same time that she becomes aware of her body and its singularity, which also involves the exercise of writing. Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 128 Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 128 16. 01. 2024 14:39:24 16. 01. 2024 14:39:24 VERBA HISPANICA XXXI • CLÁUDIA MARIA DE SOUZA AMORIM 129 Dekolonizacija zemlje, telesa, besede: branje knjige Caderno de memórias coloniais Isabele Figueiredo Ključne besede: postkolonializem, sodobna portugalska pripoved, Isabela Figueiredo Članek analizira pripoved Caderno de memórias coloniais portugalske pisateljice Isabele Figueiredo, opazujoč telesnost – ki tvori osrednjo os njene pripovedi. Ključ za branje, poudarjena vloga telesa, je eksplicitno izražen v pripovedi mlade Isabele, ki pogleduje na leta, ki jih je preživela v Mozambiku, in na načine, kako je njen oče vladal v tej kolonialni državi, saj imamo opraviti z metonimičnim prikazom portugalskega vladanja nad lokalnim prebivalstvom. Ob opazovanju lastnega telesa, teles svojih staršev in navidezno pokorjenih teles temnopoltih moških in žensk mlada ženska oporeka kolonializmu in razvija dvoumen odnos z očetom, v katerem se prepletata njena naklonjenost do njega in zavračanje vsega, kar predstavlja. Telesa so območje, kjer se kolonializem in patriarhalizem povezujeta kot sistema zatiranja. Pripovedovalko zaznamuje ironija – kajti protagonistka razkriva brutalno naravo portugalskega kolonializma v Afriki, hkrati pa se zaveda svojega telesa in njegovih posebnosti, kar vključuje tudi akt pisanja. Cláudia Maria de Souza Amorim Cláudia Maria de Souza Amorim é professora associada de Literatura Portuguesa da UERJ, onde atua na graduação, especialização e pós-graduação do Programa de Pós-Graduação em Letras. Membro do PPG - UERJ desde 2008, orientou dissertações e teses e supervisionou estágios de pós-doutoramento especialmente em Literatura Portuguesa Contemporânea. É autora de ensaios de crítica literária e de artigos científicos publicados em periódicos especializados no Brasil e no exterior. Atualmente, desenvolve pesquisa, com financiamento institucional, sobre a narrativa portuguesa do século XXI, que versa sobre os temas do pós- colonialismo, dos retornados de África e da guerra colonial. Endereço: Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Rua São Francisco Xavier, 524 - Maracanã, Rio de Janeiro – RJ 20550-013 Brasil Correio eletrónico: claudia.amorim@uol.com.br Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 129 Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 129 16. 01. 2024 14:39:24 16. 01. 2024 14:39:24