VERBA HISPANICA XXVI • MOJCA MEDVEDŠEK, BLAŽKA MÜLLER POGRAJC 233 Mojca Medvedšek, Blažka Müller Pograjc DOI: 10.4312/vh.26.1.233-246 Universidade de Ljubljana Análise semântico-pragmática do futuro na tragédia A Castro Palavras chave: A Castro , futuro simples do indicativo, valor modal ‘assertivo’, interpretações pragmáticas 1 Introdução Neste artigo, tendo como base o texto da tragédia A Castro (1553-1556, im - pressa em 1587) 1 de António Ferreira (1528-1569), mais precisamente o mo - nólogo final do ato V (Ferreira, [1587] 2006: 319), visa-se apresentar as ca - racterísticas e o funcionamento dos atos ilocutórios, marcadores de uma série das decisões, expressas como predições do locutor (o protagonista principal, Pedro, Infante) pertencendo à esfera do futuro – futuro esse que para o rece - tor do texto é conhecido, historicamente comprovado e que representa um dos capítulos da história mais representados em textos literários tanto em Portugal como fora da península ibérica (Sousa, 1997: 39). As autoras partem da constatação de que o monólogo final do ato V da tragédia apresenta um forte potencial dramático. Tendo em conta esta observação, as autoras analisam duas sequências do monólogo final do ato V da tragédia A Castro (Ferreira, [1587] 2006: 319) e procuram evidenciar os diferentes tipos dos atos ilocutórios (Searle, 1975; Gouveia, 1996; Luján Atienza, 2005) do locutor (Pedro, Infante) que ocorrem nestas sequências; observam igualmente a relação do locutor com o conteúdo proposicional do enunciado proferido por ele e as características dos recursos linguísticos empregados para persuadir o recetor das suas intenções que são firmes, certas, projetadas para um tempo futuro não realizado dentro do tempo dramático da tragédia. 1 cf. Roig, 1983: 85. Verba_hispanica_XXVI_FINAL.indd 233 18.1.2019 9:51:29 VERBA HISPANICA XXVI • MOJCA MEDVEDŠEK, BLAŽKA MÜLLER POGRAJC 234 2 Alguns aspetos teóricos Se o diálogo literário, especialmente nos textos dramáticos, se caracteriza por ser estrutura comunicativa secundária e derivada (Albaladejo, 1986: 225), o monólogo literário tem uma dimensão de diálogo implícita quando estabele - ce uma relação entre duas ou mais personagens em comunicação (Vološinov, 1976: 92), na qual os interlocutores podem ser produtores e recetores de modo alternativo ou de modo simultâneo. O reprodutor (o locutor) do monólogo final do ato V da tragédia A Castro , é, sob o ponto de vista do processo comunicativo, a personagem principal, o protagonista da obra (Pedro, Infante). A comunicação que se realiza no mo - nólogo produzido por ele é dirigida seja a ele próprio seja a uma personagem inexistente, nomeadamente, à rainha morta. Para alguns autores e de acordo com Gouveia (1996: 39), a pragmática dos tex - tos literários, ou seja, de ficção, incluindo nestes, também os textos dramáti - cos, estuda as relações entre os interlocutores, partindo das noções de objetivo ilocutório e de força ilocutória. Assim, na realização dos atos ilocutórios, o lo - cutor exprime uma atitude, um estado psicológico, relativamente ao conteúdo proposicional do seu enunciado. Segundo Searle (1979), pode assumir-se que o locutor do ato expressa uma ati - tude, interesse ou estado psicológico, relacionado com o seu discurso enunciado com diferentes objetivos ilocutórios, força ilocutória e condição da sinceridade. Deste modo, e tendo como base as diferentes possibilidades de variação dos di - ferentes atos de fala presentes nesta obra, as autoras visam analisar os diferentes tipos dos atos ilocutórios, observar o valor temporal ou modal das formas ver - bais presentes nestes enunciados, caracterizar os atos ilocutórios e verificar de que forma estes atos interferem nas características do locutor dos enunciados. 3 O monólogo final na tragédia A Castro e a sua relação com a história Desde que Inês de Castro foi morta em 1355 e que a lenda dela entrou em lite - ratura, cada texto produzido de alguma forma funcionava como um olhar crí - tico em relação a toda produção anterior. Como afirma Marinho (1991: 103): Podemos dizer, sem grande margem de erro, que cada hipertexto é também simultaneamente um hipotexto que se completa, alterando o significado absoluto no confronto com as Verba_hispanica_XXVI_FINAL.indd 234 18.1.2019 9:51:29 VERBA HISPANICA XXVI • MOJCA MEDVEDŠEK, BLAŽKA MÜLLER POGRAJC 235 obras anteriores e posteriores que fazem ressaltar pormenores esquecidos, abandonado outros, primitivamente considerados mais importantes. Segundo Sousa (1997: 39), as figuras dos amantes Inês e D. Pedro, o Infante de Portugal, constituem um tema privilegiado na literatura portuguesa. Com a publicação da obra de Garcia de Resende –Trovas–, publicadas em 1516, Inês e Pedro tornaram-se personagens míticas, ultrapassando a estrita dimensão histórica. A partir desta data, são inúmeros os textos que, em Portugal e no estrangeiro, tratam Pedro e Inês como personagens principais na poesia, em novelas, em peças de teatro e em óperas. É importante notar que no mesmo sé - culo o mito de Pedro e Inês dá azo a que Camões lhe dedique o Canto III, nos Lusíadas e que António Ferreira tome o tema inesiano como tema principal da primeira obra do teatro (1553-56) escrita em língua portuguesa (ibid.: 54). O tema da Castro, apesar de distar da escrita da obra em dois séculos, é uma história verdadeira, vivida no tempo da criação, constituindo-se como um dos grandes temas da literatura portuguesa. O carácter excecional desta his - tória de amor verídica mostra-se superior às histórias mitológicas inventa - das, muito populares no teatro do Renascimento. A tradição, a confrontação entre o amor e a razão de Estado (o amor contra o dever), acentuando o carácter do amor constante de D. Pedro, ao ser condensada numa peça que observa as regras Aristotélicas (Roig, 1986: 108) da unidade de tempo e de espaço resume habilmente os factos precedentes e evoca o futuro (a intenção da vingança do Infante e as suas promessas) só no final da obra 2 . O ato V, apesar de ser o ato mais curto, funciona como uma espécie de epílogo da peça, no qual o Infante exprime o seu amor por Inês, constituindo um dos pontos mais intensos da obra. Segundo alguns especialistas do tema inesiano (Roig, 1986: 106), Ferreira teve o cuidado de não desenvolver o espetáculo da vingança do Pedro O Cru, não tendo, portanto, usado nem os meios teatrais, nem a ação esperada, mas 2 cf. Lopes, 1965: 201. Todos os cancioneiros e todos os poetas do século XVI citam os factos trágicos desta história, contados nas Crónicas por Fernão Lopes. Depois do assassinato de Inês de Castro (a amante do Pedro e a mãe dos seus filhos), autorizado pelo rei de Portugal - Afonso IV - , o Infante D. Pedro, cheio de raiva, promete vingar Inês. Revolta-se contra o pai e persegue os conselheiros, culpados do assassinato. D. Pedro tortura os dois acusados e arrancando-lhes os corações. Três anos depois da morte de seu pai, D. Pedro proclama Inês sua mulher legítima. Manda fazer em Alcobaça dois magníficos túmulos reais e faz transportar o cadáver de Inês para o sarcófago que lhe estava destinado, com grande cerimónia. Antes porém, realiza-se a cerimónia da coroação durante a qual obriga que todos os nobres participem no ato beija-mão, proclamando-a assim Rainha de Portugal. Verba_hispanica_XXVI_FINAL.indd 235 18.1.2019 9:51:29 VERBA HISPANICA XXVI • PRAGMÁTICA INTERCULTURAL, SOCIAL Y COGNITIVA 236 recorrendo ao discurso verbal –na forma de monólogo– para exibir um dos capítulos mais macabros da história de Portugal. Curiosamente deve-se a Jerónimo Bermúdez, na segunda tragédia Nise Lau - reada (publicada em 1577) a inclusão da primeira representação da cena da coroação de Inês sobre o palco, o que desencadeou, posteriormente, uma série de adaptações sobretudo no teatro espanhol 3 . Quando Nicolau Luís, em 1772, adapta e traduz a variante de Guevara Tragedia de Dona Ignez de Castr o, a cena mais macabra –a da coroação da rainha morta– começa a aparecer também nas peças de teatro escritas em Portugal. 4 Análise do monólogo Na nossa análise, reproduzimos duas sequências do monólogo final do ato V (Ferreira, [1587] 2006: 319) da tragédia A Castro , marcadas como exemplos (1) e (2). Procede-se à analise destas sequências tanto do ponto de vista se - mântico como do ponto de vista pragmático, pois é o monólogo final do ato V, como já foi observado na secção 3, um dos pontos mais intensos da obra, no qual o Infante exprime o seu amor por Inês e o seu estado psicológico transformado pela notícia da morte dela, a perturbação da alma, a dor, a raiva do espírito, os seus planos de vingança, orientados para a esfera temporal do futuro etc., recorrendo, no seu discurso e como mostram as sequências anali - sadas, às formas verbais do futuro que, realizando os atos ilocutórios, permi - tem, como pretendem mostrar as autoras, várias interpretações pragmáticas, supostamente a assertiva, a compromissiva e a expressiva. Assim, do ponto de vista linguístico, as sequências analisadas em (1) e (2) foram escolhidas devido ao facto de existirem nelas ocorrências frequentes de formas verbais que, em geral, segundo Fludernik que considera os textos de ficção, nomeadamente, os textos de narrativa, não ocorrem nos textos de ficção com tanta frequência (Fludernik, 2009). Como sustenta esta autora, os textos de ficção, normalmen - te, narram acontecimentos passados, concretizados e realizados, recorrendo, por isso, mais frequentemente às formas dos tempos gramáticais do passado 4 . 3 Entre 1577 e 1640 Jerónimo Bermúdez, Mejía de la Cerda e Luis Vélez de Guevara nas suas obras inesianas, atribuem às personagens principais mais características psicológicas, representando as ações descritas. Estas ações são interpretadas nas obras teatrais portuguesas estritamente através do discurso verbal. Guevara, dando-se conta da importância da cena da coroação, transmite a apoteose final já pelo titulo: Reynar despues de morir (cf. Botta, 1999: 30-31). 4 Segundo Fludernik (2009: 51-52), regra geral, a narrativa só pode ocorrer quando os eventos relacionados já estiverem acabados. Por isso, a escolha tradicional de tempo de narrativa mais comum é o pretérito . Como defende a autora, estas observações sobre o uso de tempos não são, Verba_hispanica_XXVI_FINAL.indd 236 18.1.2019 9:51:29 VERBA HISPANICA XXVI • MOJCA MEDVEDŠEK, BLAŽKA MÜLLER POGRAJC 237 Desta maneira, as sequências analisadas em (1) e (2) analisam-se com o in - tuito de fazer notar que, como pressupõem as autoras, podem existir várias interpretações pragmáticas, condicionadas por diferentes conteúdos modais das formas do futuro inseridas nelas. Começa-se, na análise, com o exemplo (2). Exemplo (2) INFANTE [...] Eu te matei, senhora, eu te matei. (15)Com morte te paguei o teu amor. Mas eu me matarei mais cruelmente Do que te a ti mataram, se não vingo Com novas crueldades tua morte. Par’isto me da, Deus, somente vida. (20)Abra eu com minhas mãos aqueles peitos, Arranque deles uns corações feros, Que tal crueza ousaram: então acabe. Eu te perseguirei , Rei meu imigo. Lavrará muito cedo bravo fogo (25)Nos teus, na tua terra, destruídos Verão os teus amigos, outros mortos, De cujo sangue encherão os campos, De cujo sangue correrão os rios, Em vingança daquele: ou tu me mata, Ou fuge da minh’ira, que já agora (5)Te não conhecerá por pai. Imigo Me chamo teu, imigo teu me chama. Não m’és pai, não sou filho, imigo sou. Tu, senhora, estás lá nos Céus, eu fico no entanto, totalmente verdadeiras quando pensamos, por exemplo, nas narrativas literárias do final do século XX «[…] when the past tense which normally fixes a ‘here and now’ pertaining to the speaker in relation to an event situated in the past loses this function of referring to past time pure and simple and adopts the function of signalling fictionality » (ibid.). A ficção pós-moderna caracteriza-se, assim, por apresentar algumas experiências inovadoras no que diz respeito à utilização de flexão verbal e/ou de tempo linguístico. Nesta obra, o uso das formas de futuro pode, em certo sentido, ser visto como um elemento inovador na construção da narrativa. Verba_hispanica_XXVI_FINAL.indd 237 18.1.2019 9:51:29 VERBA HISPANICA XXVI • PRAGMÁTICA INTERCULTURAL, SOCIAL Y COGNITIVA 238 Em quanto te vingar: logo lá voo. (10) Tu serás cá Rainha, como foras. Teus filhos, só por teus serão Infantes. Teu inocente corpo será posto Em estado Real: o teu amor M’acompanhará sempre, te que deixe (15) O meu corpo com teu; e lá vá est’alma Descansar com a tua para sempre. (Fim) (Ferreira, 1º edição [1587] 2016: 325) As formas: « me matarei, te perseguirei, lavrará, verão, encherão, correrão, te não conhecerá, tu serás, serão, será posto, acompanhará », contextualizadas na sequên - cia analisada em (2) e destacadas acima, são as formas do Futuro Simples português. Como uma nota preliminar à análise pragmática destas formas e das suas funções pragmáticas, apresenta-se, a seguir, embora de modo não exaustivo, algumas premissas da proposta da Teoria Formal Enunciativa 5 (cf. Culioli: 1990) com o intuito de sublinhar que as predições realizadas em (2) associam-se ao domí - nio modal de ‘certo’. Segundo esta proposta, as construções que permitem uma interpretação de futuro, em português, implicam uma ‘mira’ e, assim, o futuro como tempo gramatical é um aorístico. Portanto, as formas verbais marcadoras do valor de futuro, podem ter uma leitura modal (domínio do ‘não certo’ e do ‘não assertado’), encontrando-se em rutura em relação ao tempo da enunciação (T 0 ). As formas de futuro podem assim desencadear uma leitura predominan - temente temporal ou predominantemente modal, tal como discutido em, e.o., Campos, 1998. Nesta obra a autora observa que o futuro temporal correspon - de: «[...] à construção de uma relação de posterioridade entre um determinado estado de coisas e um ponto de referência, sendo este, para o futuro simples, o tempo da enunciação, e, para o futuro composto é construído intratextualmen - te» (1998: 240). Está-se, como refere Campos (ibid.), no caso do futuro com valor temporal, face a uma frase declarativa simples que para alguns linguistas exprime uma atitude neutra do locutor em relação ao que está a ser dito e é, por - tanto, não modal. Porém, há autores que a este tipo de frases, ou seja, às frases declarativas simples associam à existência de um valor modal, neste caso, o valor modal ‘ assertivo ’ (ou o valor modal de asserção). 5 Um dos conceitos organizadores desta proposta teórica é o sistema de coordenadas enunciativas Sujeito e Tempo-Espaço da enunciação, designado Situação de Enunciação (Sit 0 ). Sit 0 serve de localizador de uma qualquer relação predicativa (ou proposição). (Ver Campos, 1998: 25-26). Verba_hispanica_XXVI_FINAL.indd 238 18.1.2019 9:51:29 VERBA HISPANICA XXVI • MOJCA MEDVEDŠEK, BLAŽKA MÜLLER POGRAJC 239 No entanto, ao observar-se as formas de futuro que ocorrem em (2), « me matarei, te perseguirei, lavrará, verão, encherão, correrão, te não conhecerá, tu se - rás, serão, será posto, acompanhará », as formas nas frases declarativas simples que se associam à existência de um valor modal ‘ assertivo ’, como mostrado pela Teoria Formal Enunciativa, estas podem ter uma dupla leitura, já que é ativada uma leitura de pendor mais pragmático, por participarem, de acordo com Gouveia (1996: 391), tanto na realização dos atos ilocutórios assertivos como na realização dos atos ilocutórios compromissivos, tal como definidos por Searle (1979). Tomando esta observação como ponto de partida, abordaremos, num primei - ro momento, a possível interpretação da participação das formas verbais em questão nos atos ilocutórios assertivos, sendo estes definidos como sujeitos à dimensão que inclui os parâmetros verdadeiro e falso (Gouveia, 1996: 393). Assim, no caso do locutor/enunciador (Pedro, Infante), ao pronunciar « me matarei, te perseguirei, lavrará, verão, encherão, correrão, te não conhecerá, tu se - rás, serão, será posto, acompanhará », é claramente enunciado que o seu objetivo ilocutório consiste em mostrar a verdade da proposição expressa, em relação à qual manifesta a sua crença. Assim, representa o mundo ao nível de formas do futuro simples, que, em (2), se associam com o valor modal ‘assertivo’ e se situam no domínio modal de ‘certo’, tal como defendido pela Teoria Formal Enunciativa e enfatizado nesta mesma secção. O locutor/enunciador afirma uma forte crença sobre a realização das suas intenções, da satisfação dos seus planos orientados para a esfera temporal do futuro. Pode constatar-se, assim, que as formas do futuro simples em (2) realizam atos ilocutórios assertivos. O objetivo ilocutório deste tipo de atos traduz-se, deste modo, na vontade de o locutor mostrar a firme decisão de realizar uma ação futura (não verbal) e na profunda necessidade para executar tal ação. Assim, na ótica da pragmática, quando o locutor (Pedro, Infante) revela verbalmente a vontade e a neces - sidade de realizar uma intenção, no seu interior, já concretiza as intenções, realizadas verbalmente através das formas verbais em questão. No caso das formas verbais do Futuro Simples que em (2) aparecem na 1º pessoa do singular, interessa-nos, num segundo momento, discutir como poderíamos interpretar, na ótica da pragmática, a possibilidade da existência de uma ou - tra leitura, relacionada com a classe de atos ilocutórios compromissivos (Sear - le, 1979). De acordo com Searle, os atos ilocutórios compromissivos têm como objetivo ilocutório comprometer o locutor relativamente à prática de uma ação futura, determinada pelo conteúdo proposicional do enunciado (Gouveia, 1996: Verba_hispanica_XXVI_FINAL.indd 239 18.1.2019 9:51:29 VERBA HISPANICA XXVI • PRAGMÁTICA INTERCULTURAL, SOCIAL Y COGNITIVA 240 395). Assim, o Infante D. Pedro, ao proferir : «me matarei, te perseguirei », quer dizer as formas do Futuro Simples na 1º pessoa do singular, constrói sucessivos atos ilocutórios compromissivos, já que assume um compromisso que o obriga a realizar uma ação futura. No entanto, este compromisso conta com a condição de sinceridade ter a intenção de , ou seja, como refere Gouveia: «sem a qual o ato resulta infeliz, ou defetivo, na terminologia searleana, pelo que um ato ilocu - tório compromissivo traduz verbalmente a relação de poder do locutor face à determinação de um futuro estado-de-coisas» (Gouveia 1996: 396). Convém sublinhar ainda que os atos ilocutórios compromissivos, tais como os atos na 1º pessoa do singular de Pedro em (2), se reportam à realização de uma ação futura, não por parte do alocutário, mas sim por parte do locutor. É de notar que em (2) estes atos expressam proposições temporalmente marcadas com o Futuro Simples. A seguir, apresenta-se o exemplo (1). Exemplo (1) INFANTE Que direi? que farei? que clamarei? Ó fortuna! ó crueza! ó mal tamanho! (10)O Minha Dona Inês, o alma minha, Morta m’és tu? morte houve tão ousada Que contra ti pudesse? ouço-o, e vivo? Eu vivo, e tu és morta? E morte crua! Morte cega, mataste minha vida, (15)E no me vejo morto? Abra-se a terra. Sorva me num momento: rompa-se alma, Aparte-se de um corpo tão pesado, Que não detém por forca. Ah minha Dona Inês, ah, ah minh’alma! (20)Amor meu, meu desejo, meu cuidado, Minha’esperança, minh’alegria, Mataram-te? mataram-te? tua rainha Inocente, fermosa, humilde, e santa [...] (Ferreira, 1º edição [1587] 2016: 323) No entanto, no exemplo (1), as formas do Futuro Simples « que direi? que farei? que clamarei? » são, inseridas numas frases interrogativas, portadoras do Verba_hispanica_XXVI_FINAL.indd 240 18.1.2019 9:51:29 VERBA HISPANICA XXVI • MOJCA MEDVEDŠEK, BLAŽKA MÜLLER POGRAJC 241 conteúdo modal predominante. A interrogação, tal como alguns advérbios de incerteza ou dúvida, reforça o conteúdo modal das formas verbais do futuro, sempre presente e inerente a estas formas, e introduz, na proposição, uma dúvida ou incerteza ainda mais marcada. Parece que as formas de futuro em (1) são esvaziadas do conteúdo temporal, referindo-se ao estado de coisas maioritariamente presente e menos orientadas para o futuro. No âmbito das interpretações pragmáticas, convém propor que as construções em (1) exem - plificam aquilo que Searle (1979) designou como atos ilocutórios expressivos. Como aponta Gouveia (1996: 398), os atos ilocutórios expressivos são atos que permitem agradecer, felicitar, etc., podendo ser realizados usando verbos ou frases exclamativas com verbos afetivos ou expressões exclamativas com adjetivos ou advérbios valorativos. A base destas considerações, parece que as construções interrogativas « que direi? que farei? que clamarei? », as formas do Futuro Simples, presentes em (1) e inseridas no contexto das exclamações: Ó fortuna! ó crueza! ó mal tamanho! permitem a interpretação em termos de atos ilocutórios expressivos. Ao enunciar as construções interrogativas e as exclamações, o locutor (Pedro, Infante) está a realizar um ato expressivo porquanto exprime um estado psicológico (de raiva, de desespero, de dúvi - da), relativo a um estado-de-coisas especificado no conteúdo 6 , não esperando nenhuma resposta. 5 Conclusões Nos fragmentos analisados do ato V de A Castro, de António Ferreira, o lo - cutor define e expressa de várias formas a palavra vingança que aparece no ato precedente (Ferreira, [1587] 2006: 318) depois da catástrofe (a notícia da morte de Inês [ibid.: 316]). O ato V é o exemplo da construção das sequências mais líricas da obra, portanto, um dos pontos mais intensos da obra, no qual o Infante exprime o seu estado psicológico e os seus planos de vingança, orien - tados para a esfera temporal do futuro, recorrendo no seu discurso às formas verbais do futuro que se associam com o valor modal ‘assertivo’ e se situam no domínio modal de ‘certo’, tal como defendido pela Teoria Formal Enunciati - va, e que, realizando os atos ilocutórios, permitem, como pretenderam mostrar as autoras, várias interpretações pragmáticas. Refira-se que entre os tempos de narração excêntricos, talvez o mais marcante seja, segundo Fludernik (2012), o tempo do futuro, já que como esta autora afirma, primeiro vive-se e só mais 6 «Abraçada com os filhos a mataram » (Ferreira, [1587] 2006: 323). É o momento quando Pedro (Infante) recebe a notícia da morte da Inês. Verba_hispanica_XXVI_FINAL.indd 241 18.1.2019 9:51:29 VERBA HISPANICA XXVI • PRAGMÁTICA INTERCULTURAL, SOCIAL Y COGNITIVA 242 tarde se fala sobre o que se viveu; contar algo no futuro, exceto em passagens proféticas, parece mais do que contra intuitivo 7 . O recurso ao monólogo (literário) é destinado não ao interlocutor, mas ao locutor próprio. Nas sequências analisadas em (1) e (2) o locutor expressa uma decisão e uma promessa firme que faz a si próprio locutor faz a si pró - prio. O tempo gramatical futuro, presente nas sequências analisadas em (1) e (2), inseridas no discurso realizado pelo locutor, desencadeia uma série de atos ilocutórios que expressam uma forte decisão e crença da personagem em realizá-los. As formas do Futuro Simples do Indicativo constituem o cerne deste monólogo. As diferentes propostas linguísticas (de natureza semântica- pragmática) que nos serviram no artigo ajudam a confirmar uma das princi - pais características do tempo gramatical: a expressão do seu valor temporal e o seu valor modal. Temporalmente, encontrando-se em rotura em relação a T 0, coordenada temporal da situação enunciativa, e não validada a partir do enunciador, associa-se ao domínio modal do ‘não certo’ e do ‘não assertado’. Por outro lado, na análise levada a cabo neste artigo, pudemos constatar que as formas de futuro nos exemplos analisados em (2), são marcadoras de um valor temporal de posterioridade (tendo em conta a relação estabelecida entre um determinado estado-de-coisas e um ponto de referência), mas as predições realizadas não têm um valor ‘não assertivo’, mas associam-se ao domínio mo - dal de ‘certo’. Tendo o valor de ‘certo’ manifestado pelo tempo futuro, propomos duas in - terpretações (ou duas leituras pragmáticas) dos atos ilocutórios realizados na obra que nos serviu de suporte: os atos ilocutórios consistem em mostrar o objetivo de expressar a verdade nas proposições expressas nos enunciados de Pedro, Infante; as formas do Futuro Simples nos atos ilocutórios assertivos manifestam a crença do locutor e a firme decisão de realizar uma ação futura, caracterizando-se como atos ilocutórios assertivos. Numa segunda leitura do exemplo (2), considerando as formas verbais do Fu - turo Simples que em (2) aparecem na 1º pessoa do singular e conhecendo a intertextualidade do monólogo, considerámos que estes enunciados podem ser 7 «Finally, the experimental play with tense in postmodernist fiction is a clear instance of literary creativity and play. However, even such quite artificial uses of tense do not entirely eliminate certain key functions of a specific tense; they may warp and expand or metaphorically surcharge the normal frame of reference for a particular tense, but some reinterpretations are off limits. Thus, the future tense can be used as the main narrative tense but it cannot be made to signify ‘pastness’ » (Fludernik, 2012: 101). Verba_hispanica_XXVI_FINAL.indd 242 18.1.2019 9:51:29 VERBA HISPANICA XXVI • MOJCA MEDVEDŠEK, BLAŽKA MÜLLER POGRAJC 243 considerados, na ótica da pragmática, atos ilocutórios compromissivos – por existir um compromisso de locutor/enunciador que o obriga a realizar uma ação futura. Este compromisso conta com a condição de sinceridade do locu - tor, com um juramento a si próprio e com a sua sincera intenção de realizar o seu objetivo. Resta clarificar que numa análise de natureza pragmática sobre (1), as formas do Futuro Simples, inseridas em frases interrogativas e num contexto de ex - clamações, são ‘esvaziadas’ do conteúdo temporal, realizando-se, deste modo, atos ilocutórios expressivos, exprimindo o locutor um dado estado psicológico (desespero, raiva), presumindo sempre a condição da sinceridade. Com esta análise tentámos ainda dar um enquadramento aos diferentes recur - sos usados para caracterizar o Infante: exclamações, apóstrofes e interrogações que dão aos versos um ritmo ofegante, traduzindo a perturbação da alma, a dor do coração, a raiva do espírito, etc. que a personagem manifesta. Como vimos, o locutor exprime os seus projetos, os seus desejos e as suas intenções firmes e brutalmente trágicas através de uma série de formas de futuro; o leitor/rece - tor/alocutário do texto, até sem conhecer a lenda, é capaz de perceber, desta forma, que as intenções do Infante vão ter una realização histórica; nessa parte do monólogo trata-se de intrepretação dos factos confirmados nas Crónicas 8 e integrados nas ‘falas’ produzidas pelo Infante. Fonte de exemplos Ferreira, A. (1º edição [1537] 2006): A Castro . Lisboa: Editor Ulisseia e Edi - torial Verbo. Ferreira, A., Soares, N. de Nazaré (1º edição [1537] 1974): A Castro de António Ferreira . Coimbra: Editora Almedina. Bibliografia Albaladejo, T. (1986): Teoría de los mundos posibles y macroestructura narrativa: análisis de las novelas cortas de Clarín . Alicante: Universidad de Alicante. Botta, P. (ed.) (1999): Inês de Castro. Studi. Estudos. Estudios . Ravena: Longo Editore. Campos, M. H. 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Verba_hispanica_XXVI_FINAL.indd 244 18.1.2019 9:51:29 VERBA HISPANICA XXVI • MOJCA MEDVEDŠEK, BLAŽKA MÜLLER POGRAJC 245 Mojca Medvedšek, Blažka Müller Pograjc University of Ljubljana Semantic and Pragmatic Analysis of the Future Tense in the Tragedy A Castro Keywords: A Castro , Future Simple of the Indicative, Assertive Modality, Pragmatic Interpretations This article aims to present the characteristics and functioning of the illocu - tionary acts in the tragedy A Castro by António Ferreira (1528-1569), which are marked as a series of decisions, expressed as predictions of the speaker (the protagonist, Pedro Infante) belonging to the sphere of the future. This future is known, historically proven and represents one of the most astonish - ing chapters of Portuguese history as well as of literary production. The study focuses on the final monologue of the Act V of the tragedy, which presents a strong dramatic potential, analysing the two sequences of the monologue and highlighting different types of illocutionary acts (Searle, 1979; Gouveia, 1996; Atienza, 2005). The authors pay special attention to the relation of the speaker towards the propositional content and the pragmatic features of the linguistic means, used to persuade the receiver that the speaker’s intentions are firm, certain, and orientated to the future, although not realized within the dramatic time of tragedy. Verba_hispanica_XXVI_FINAL.indd 245 18.1.2019 9:51:29 VERBA HISPANICA XXVI • PRAGMÁTICA INTERCULTURAL, SOCIAL Y COGNITIVA 246 Mojca Medvedšek, Blažka Müller Pograjc Univerza v Ljubljani Semantično-pragmatična analiza prihodnjika v tragediji A Castro Ključne besede: A Castro , prihodnjik, gotovostna naklonskost, pragmatična interpretacija Pričujoči članek se osredotoča na dramsko besedilo prve portugalske tragedi - je A Castro in analizira značilnosti ter delovanje ilokucijskih govornih dejanj izjavljalca (glavnega protagonista Pedra, Infanta), ki zaznamujejo serijo njego - vih odločitev v obliki priseg, postavljenih v sfero prihodnosti, ki je za bralca znana, historično izpričana in predstavlja eno najbolj uprizarjanih poglavij v literarnih besedilih, tako na Portugalskem kot izven meja Iberskega poloto - ka. Avtorici za izhodišče vzameta končni monolog petega dejanja tragedije, ki predstavlja najmočnejši dramski potencial, in v diskurzivni analizi dveh sekvenc monologa izpostavita ilokucijske sile govornih dejanj (Searle, 1979; Gouveia, 1996; Atienza, 2005). Ob tem opazujeta odnos izjavljalca do pro - pozicijske vsebine in pragmatične značilnosti jezikovnih sredstev, s katerimi izjavljalec naslovnika prepriča o gotovosti svojih namer, zazrtih v prihodnost, četudi te (še) niso realizirane v dramskem času tragedije. Verba_hispanica_XXVI_FINAL.indd 246 18.1.2019 9:51:29