Helena Isabel Alzamora Centro de Lingüística da Universidade Nova de Lisboa A perífrase verbal estar a Vinf no portugués europeu contemporáneo: contribuyes para uma análise transcategorial1 Palavras-chave: perífrases verbais; classes aspetuais dos predicados verbais; transcategorialidade; valores temporais, aspetuais e modais; teleonomia. Introdujo 0 objetivo central deste trabalho é a análise e descrigao dos valores marcados pela perífrase verbal estar a Vinf no Portugués Europeu contemporáneo. Tendo como suporte os trabalhos de, entre outros, Squartini (1998) e Torre-do (1999), considero perífrase verbal a combinagao sintático-semántica em que um verbo flexionado se relaciona com uma forma verbal nao flexionada (infinitivo [com ou sem intercalagao de preposigao] ou gerúndio) de um outro verbo (principal)2. A partir das propostas da Teoria Formal Enunciativa, por prever possibili-dades de análise centrada numa abordagem transcategorial, permitindo ex-plicitar as relagoes das categorias gramaticais Tempo, Aspeto e Modalidade que participam na construgao da significagao, propoe-se uma descrigao dos 1 Este artigo resulta de uma comunicagao apresentada na 1.a Edigao do Congresso Doutoral da FCSH - NOVA - Graduate Conference in Social Sciences and Humanities, FCSH, 27 de novembro de 2012. 2 Sobre algumas propostas de análise de perífrases em portugués, ver, entre outros, Markic (2011), Correia & Brocardo (2010) e Brocardo & Correia (2012). enunciados que pressupoe que as ocorréncias lingüísticas sao interdependen-tes e é da sua articulado que resulta a significado. Este trabalho baseia-se, assim, em pressupostos teórico-concetuais que assu-mem a enunciagao como a construgao de significagao, nao perspetivando a possibilidade de observar os objetos linguísticos (e metalinguísticos) como objetos isolados3. Visa-se, entao, identificar os valores que resultam da inter-dependéncia e deformabilidade das formas linguísticas que integram esta pe-rífrase verbal e explicar, ao nível da representagao metalinguística, fenómenos particulares desta configuragao, que resultam da plasticidade das formas4. A opgao por uma análise desta natureza teórica e metodológica para o estudo das perífrases verbais justifica-se atendendo ao facto de se tratar de estruturas complexas. O objeto desta análise inscreve-se, essencialmente, no domínio das construgoes, assumindo-se que uma perífrase é uma estrutura complexa que compreende uma relagao predicativa em que < r > é um predicado complexo. Nestas estruturas, a identidade de uma das formas nao pode ser considerada isoladamente, mas na sua relagao com as formas que a acompanham, no enunciado. 1 A perífrase estar a Vinf - um caso em estudo A análise da perífrase verbal estar a Vinf, dando conta da diferenciagao de valores construídos nos enunciados em que ocorre, será suportada por exem-plos atestados do portugués europeu5, como os que sao apresentados no se-guinte paradigma: (1) A ventoinha está a trabalhar, posso ouvir os sons do equipamento. (2) O atleta está a cortar a meta. (3) O contágio está a chegar essencialmente por via indireta, através da Alemanha. (4) Na opiniao dos operadores, o mercado está a chegar a um período de consolidagao. (5) O executivo de Sampaio quis mudar tudo o que o de Abecassis tinha apro-vado para o local e as decisoes finais devem estar a cair. (6) Assim, defendeu, "nao podem ser assacadas culpas a Cámara por o edifício estar a cair". 3 Cf. Culioli ([1987] 1990:116). 4 Cf., entre outros, Culioli ([1986] 1990) e Franckel (2002). 5 Este corpus foi retirado (com adaptagoes) de: http://www.linguateca.pt/cetempublico/. Neste texto, recorro também a alguns exemplos já discutidos em Alzamora (2002). Assumindo que as formas lingüísticas sao marcadores de operagoes cognitivas diferenciadas, este trabalho incidirá, essencialmente, na discussao de algumas características, nomeadamente das restrigoes que a configuragao estar a Vinf no Presente do Indicativo apresenta no dominio da construgao temporal e aspetual. As formas linguísticas desta configuragao apresentam uma heterogeneidade de valores gragas as relagoes que estabelecem com as diferentes classes aspetuais dos predicados verbais. 2 Para uma análise da perífrase verbal estar a Vinf Na tradigao gramatical, a perífrase verbal estar a Vinf surge normalmente as-sociada a ideia de duragao ou continuidade de uma agao, ou seja, a marcagao do valor aspetual cursivo ou progressivo6. Numa perspetiva diferente, Oliveira ([2003] 2006:146) defende que o progressivo se obtém em portugués europeu com esta perífrase e que uma das características «mais relevantes» destas cons-trugoes é «serem perspetivadas como estando a decorrer. A esta característica podemos ainda associar a de duragao e a de incompletude, pois se uma even-tualidade está no seu decurso, é natural que tenha duragao e que também nao esteja completa, ou nao tenha atingido o seu ponto terminal». Contudo, a análise e descrigao dos valores marcados por esta perífrase verbal, em alguns enunciados, permite-me dizer que esta configuragao nao é apenas um marcador de valor aspetual e que, dependendo da natureza aspetual do verbo no Infinitivo com que coocorre, nao é sempre um marcador do valor temporal de simultaneidade em relagao ao tempo localizador (situagoes pers-petivadas como estando a decorrer). Apresentarei, entao, uma descrigao formal de alguns enunciados com o em-prego da perífrase verbal estar a Vinf, descrevendo os mecanismos que possibi-litam que, pela sua coocorréncia com determinados predicados verbais, sejam construídos outros valores temporais-aspetuais. 2.1 A perífrase verbal estar a + Vinf e o valor de processo em curso Em Portugués, o valor de 'presente atual', isto é, o valor temporal de simultaneidade entre T2 e T0, é marcado, geralmente, pelo emprego da perífrase verbal estar a Vinf: 6 Cf., entre outros, Cuesta & Luz (1971); Cunha & Cintra ([1984] 1986); Longo & Campos (2002). (1) A ventoinha está a trabalhar, posso ouvir os sons do equipamento. (2) O atleta está a cortar a meta. Esta perífrase ocorre, sem restrigoes, com predicados verbais pertencentes a classe aspetual dos Processos, como em (1), e dos Processos Culminados7, como em (2). Os Processos descritos por esta perífrase sao, regra geral, predicados atélicos e gozam da propriedade de subintervalo8; por isso combinam-se sempre com esta perífrase verbal. Os predicados que gozam da propriedade de subintervalo representam situagoes homogéneas, em que todos os pontos do intervalo sao qualitativamente iguais. Assim, uma relagao predicativa que é validada para um intervalo I só é validada para qualquer subintervalo de I quando a situagao representada é homogénea. O subintervalo I' está, entao, incluido em I ( I'C I ). Com Processos Culminados, a construgao de uma situagao como simultanea do momento da enunciagao-origem (T0) é marcada pela perífrase verbal estar a Vinf, que atribui ao acontecimento linguístico uma duragao. Este é construí-do como estando em curso em T0. A classe de instantes em que esse aconteci-mento é validado é representada por um intervalo aberto. No entanto, alguns exemplos mostram que, quando o verbo flexionado estar se encontra no Presente do Indicativo, esta perífrase nem sempre marca o valor temporal de simultaneidade em relagao ao tempo localizador T0, podendo ocorrer, também, com o valor temporal de posterioridade. Esta possibilidade resulta da coocorréncia com predicados verbais de natureza aspetual perfetiva, em particular, com Pontos, predicados télicos como chegar ou cair, como se pode observar nos enunciados (4) e (5): (4) Na opiniao dos operadores, o mercado está a chegar a um período de consolidagao. (5) O executivo de Sampaio quis mudar tudo o que o de Abecassis tinha apro-vado para o local e as decisoes finais devem estar a cair. 2.2 A perífrase verbal estar a + Vinf e as (in)compatibilidades com as diferentes classes aspetuais de predicados verbais Em trabalho anterior (Alzamora 2002), propus a descrigao do funcionamen-to de perífrases verbais em portugués, visando, nessa descrigao, sobretudo, a marcagao do valor temporal de posterioridade. 7 Esta classificagao dos predicados verbais baseia-se em Moens, Steedman (1988). 8 Se uma relagao predicativa é validada para um intervalo I, entao essa relagao predicativa é validada para qualquer subintervalo de I. Como explicitei nesse trabalho, geralmente há incompatibilidade entre a perí-frase estar a Vinf e situagoes estativas. Assim, a perífrase verbal estar a Vinf marca a construgao de uma classe de instantes de duragao e, desses instantes, nenhum é o primeiro ou o último. Esta forma representa geralmente o valor aspetual imperfetivo combinando-se habitual-mente com situagoes que tém fronteiras implícitas. Por esta razao, normalmente, nao se combina com situagoes estativas em que as fronteiras sao inexistentes9: (7) A Rita é magra. (8) * A Rita está a ser magra. (9) * O aluno está a saber francés. No entanto, podemos encontrar exemplos em que a incompatibilidade com predicados verbais pertencentes a classe dos Estados é anulada: (10) A Rita está a ser simpática. (11) A Rita está a emagrecer. (12) O aluno está agostar do curso. Se compararmos (8), (9) e (10) podemos dizer que o uso de estar a Vinf nao é possível quando a propriedade que está a ser predicada é uma propriedade permanente ou, como refere Oliveira ([2003] 2006:146), quando esta perífrase coocorre com «estados nao faseáveis». Em (8) e (9) a perífrase coocorre com Estados nao faseáveis, enquanto em (10) coocorre com um Estado faseável. Nos enunciados (11) e (12) podemos encontrar duas situagoes de recatego-rizagao. No seguimento de Bach (1981: 69, apud Campos 1998: 211) «quan-do um verbo estativo se combina com a forma progressiva, atribui-se-lhe um significado nao estativo». Assim, nos casos acima referidos, pode falar-se de recategorizagao de Estado em Atividade. Considerando que certos estativos tem um comportamento identico ao das Atividades e ao dos Eventos, Cunha (2004) propoe uma reclassificagao aspe-tual dos Estados que permita distinguir os empregos em que os Estados «su-portam uma tal "transformagao"», apresentando propriedades semelhantes as Atividades ou aos Processos Culminados. Tal como Oliveira ([2003] 2006), este autor classifica estes predicados esta-tivos como Estados faseáveis e aqueles em que nao se verifica alteragao aspe-tual como Estados nao faseáveis, o que justifica as restrigoes de coocorréncia com o progressivo. Mas propoe ainda uma subclassificagao para as predicagoes 9 Cf. Bennett, Partee (1978: 14) e Moens, Steedman (1988: 18). estativas, baseada na oposigao entre Estados «de individuo» e Estados «de es-tádio». Entre outras propriedades, os Estados «de estádio» nao parecem estar sujeitos a restrigoes de coocorrencia com adverbiais de duragao e de locali-zagao temporal, ao contrário do que acontece com os Estados «de individuo». O autor considera que, apesar da interdependencia entre as duas propostas de classificagao, se devem considerar como independentes estes dois tipos de subclassificagao por remeterem para características, em certa medida, diferenciadas. A faseabilidade é, segundo o autor, uma propriedade aspetual e é a temporalidade que permite distinguir os predicados de «individuo» dos predicados de «estádio»10. Na análise do funcionamento desta perífrase com as classes aspetuais de predicados verbais que representam situagoes télicas, verifica-se que, regra geral, também existem restrigoes ao emprego da perífrase estar a Vinf com Eventos, tal como se descreveu para os Estados: (13) A polícia está a interrogar o presumível assassino. (14) * A polícia está a encontrar o presumível assassino. Aos Eventos associa-se uma classe de instantes que é representada por um intervalo fechado, pontual, sem dimensao, em que as fronteiras de abertura e fechamento coincidem, sendo inerente a sua definigao a passagem de um limiar semántico (telos), a passagem de um estado a outro estado - o 'estado resultante' do Evento. Com esta perífrase náo é construída nenhuma fronteira no intervalo nao pontual de validagao, o que desencadeia a incompatibilidade verificada em (14). Se compararmos (14) com (14'), que se apresenta seguidamente, verificamos que a incompatibilidade assinalada acima deixa de se verificar: (14') A polícia está quase a encontrar o presumível assassino. Em (14') é a ocorrencia de quase que permite a compatibilidade, uma vez que quase é marcador da construgao da fronteira de localizagao do Evento. Como neste exemplo, encontram-se outras situagoes em que predicados verbais cate-gorizados como Eventos se combinam com a forma progressiva. Recorrendo a descrigao apresentada por Moens, Steedman (1988), podemos explicar algumas dessas ocorrencias. Ao proporem cinco categorias para a clas-sificagao dos predicados verbais, distinguindo as Culminagoes e os Pontos, estes autores consideram já questoes de coocorrencia: «[t]he phenomenon of change in the aspectual type of a proposition under the influence of modifiers 10 Cf. Cunha (2004: 528 e ss). like tenses, temporal adverbials, and aspectual auxiliaries is of central importance to the present account» (Moens, Steedman 1988: 17). Também estes autores referem que «[i]f the input to a progressive is atomic then by definition it cannot be described as ongoing» (Moens, Steedman 1988: 18), mas fornecem explicaçao formal para os casos de coocorrência, de-fendendo que, tal como acontece com os Estados, há recategorizaçao dos predicados verbais. Assim, de acordo com estes autores, quando há coocorrência do progressivo com os Pontos, essa coocorrência leva a que esses Pontos sejam reinterpretados como Atividades com valor de iteratividade11, como acontece nos enunciados que se apresentam abaixo: (15) O Hugo está a saltitar. (15') A Sandra está a soluçar. (16) O outono chegou. As folhas das árvores estao a cair. Em (15) e (15') o valor de iteratividade é inerente aos predicados verbais, enquanto em (16) esse valor é construido pela coocorrência de estar a Vinf com um predicado aspetualmente definido como Ponto e pela quantificaçao do sintagma nominal as folhas das árvores. Em português, além destas situaçoes em que estar a Vinf é marcador do valor de iteratividade, encontramos outras em que esta perífrase verbal, em coo-corrência com Pontos, é marcador do valor temporal de posterioridade. A construçao do valor de posterioridade com esta perífrase nao é possível, no entanto, com todos os verbos que exprimem um Evento. Alguns dos verbos que o tornam possível sao, por exemplo, chegar, partir, entrar, sair, sendo estes verbos, na realidade, Pontos e nao Culminaçoes: (3) O contágio está a chegar essencialmente por via indireta, através da Alemanha. (4) Na opiniao dos operadores, o mercado está a chegar a um período de consolidaçao. (5) O executivo de Sampaio quis mudar tudo o que o de Abecassis tinha aprovado para o local e as decisoes finais devem estar a cair. (6) Assim, defendeu, "nao podem ser assacadas culpas à Cámara por o edificio estar a cair". No enunciado (3) estamos perante a construçao do valor temporal de simultaneidade em relaçao a To e o valor aspetual imperfetivo-durativo, um valor 11 Moens, Steedman (1988:17) apresentam o seguinte enunciado: «Sandra was hiccupping». de 'presente'. Segundo Campos (1998: 213), opera-se «uma dilataçao abstracta da classe de instantes T2 em que se realiza o evento e, dessa nova classe (abstracta), nao fazem parte um primeiro ou um último instante. Essa operaçao permite, assim, que sejam construidos como simultáneos a locuçao e o evento, ao longo da classe de instantes que é associada à locuçao.»12 Nos enunciados (4) e (5) estamos perante um 'futuro iminente' e a perífrase marca o valor temporal de posterioridade. Segundo Campos (1998:213) «o valor de futuro resulta de uma operaçao de presentificaçao, que consiste na anulaçao abstracta do hiato entre T1 e T2, pela construçao de um intervalo aberto subjacente a 'estar a Infinitivo', e que contém T2 e T1». Com o enunciado (6) estamos perante uma situaçao de ambiguidade, pois pode ter duas interpretaçoes: ♦ o edificio estar a cair pode significar que o edificio já começou a desmoronar-se; ♦ o edificio estar a cair pode significar que o edificio está tao degradado que poderá começar a desmoronar-se a qualquer momento. Relativamente aos casos em que há marcaçao do valor temporal de posterioridade, Moens, Steedman (1988:18-19) mostram que, em situaçoes como as descritas anteriormente, quando uma Culminaçao surge em coocorrência com o progressivo, estamos perante fenómenos de recategorizaçao. Nestas situaçoes é o processo preparatório que está em curso no momento da referencia temporal e é esse processo preparatório que é objeto de asserçao pelo enunciador-locutor e nao o ponto de culminaçao, o limiar semántico ou telos inerente à Culminaçao. Na realidade, é perfeitamente possível haver asserçao do processo preparatório e 'negaçao' da culminaçao, como podemos verificar no enunciado: (17) O comboio estava a chegar à estaçao quando descarrilou. Diferentemente destes autores, Franckel (1989)13 apresenta uma descriçao formal da perífrase francesa être en train de que, com as adaptaçoes neces-sárias ao português14, concorre para uma melhor compreensao das interpre-taçoes que é possível associar ao emprego da perífrase estar a Vinf em coocorrência com Eventos. 12 Nas citaçoes optei por respeitar sempre, sem conversao, a ortografía original. 13 As propostas de Moens, Steedman (1988) e de Campos (1998) nao sao incompatíveis com a descriçao formal apresentada por Franckel (1989). Penso antes que se complementam e enriquecem a análise e descriçao dos enunciados. 14 As perífrases être en train de Vinf e estar a Vinf, apesar de apresentarem algumas diferenças, em alguns empregos sao perfeitamente equivalentes. 2.3 Estar a + Vinf : localizaçâo de p e estruturaçâo de I A proposta de Franckel (1989) está ancorada a conceitos como 'noçao' ou 'dominio nocional', importantes para a sua concetualizaçao. Estes conceitos sao fundacionais na Teoria Formal Enunciativa. De acordo com este modelo, uma das operaçoes que incide sobre a noçao é a construçao de um dominio nocional, ou dominio das ocorrências de uma noçao15. O espaço topológico da noçao permite distinguir o seu Interior (p) e o seu Exterior (p'). Um dominio nocional é representado, entao, por (p,p'), sendo p' (p' é nao-p ou * de p) construido, em cada enunciaçao, como complementar linguístico de p: «désignons par p une occurrence de P, identifiée à la valeur centrée; désignons par p' une occurrence de P, identifiée comme autre-que-p» (Culioli 1990:102). O dominio de validaçao da noçao compreende assim a zona I (zona do validado, constituida pelas ocorrências positivas da noçao) e a zona E (zona do nao validado, constituida pelas ocorrências negativas da noçao). As zonas I e E sao complementares e contêm todas as ocorrências possiveis de uma noçao. As ocorrências de uma noçao, ou sao situadas pelo enunciador numa das duas zonas, ou sao construidas como validáveis, situando-se aquém de I ou E, numa zona IE (Interior/Exterior). Segundo Culioli (1999c: 358), a zona do validável é uma zona «décrochée par rapport aux zones validé/non validé, qui est en dehors de ces deux zones, mais compatible avec elles (elle fournit le validable, c'est-à-dire les possibles)». Para Franckel (1989) être en train de articula, num plano disjunto, a ancoragem de p nocionalmente nao estruturado sobre a classe de instantes e a estrutu-raçao nocional de p é operada fora do plano temporal. O facto de haver localizaçao de p no plano temporal, sem estruturaçao nocional, faz com que p corresponda à posiçao IE, bifurcaçao que encaminha a I ou a E. «Être en train de permet de marquer une forme de temporalisation du hiatus entre la position IE et la position I» (Franckel 1989: 66). Tendo em conta esta explicaçao, este autor divide os empregos desta perifrase em dois grandes grupos. Em certas ocorrências, em primeiro lugar ocorre a construçao de I (o interior do dominio) e só depois a localizaçao de p, sendo que, nestas situaçoes, «I correspond à une valeur qualitativement positive, à 15 Sobre a estruturaçao do dominio nocional ver, entre outros, Culioli (1990: 29, 1990: 50-61, 1991: 7-11; 1996: 16ss); Campos (1998: 39-51); Bouscaren, Chuquet (1987: 145-147). une bonne valeur, à une valeur visée. Il y a téléonomie et, en règle générale, intentionnalité de la part de S» (Franckel 1989: 66-67)16. Noutras ocorrências, a construçao de I opera-se a partir da localizaçao de p, ou seja, em primeiro lugar ocorre a localizaçao de p e só depois a construçao de I. Segundo Franckel (1989: 66-67), «[c]'est à cet ordre de construction que correspondent notamment les cas d'«antitéléonomie». A teleonomia ou intencionalidade pode, de acordo com Deschamps (1997: 63), ser definida pela existência de um hiato entre o valor perspetivado e a própria situaçao, assim como por uma avaliaçao. É, entao, a natureza do hiato que se estabelece entre a construçao de p e a construçao de I que faz variar os valores que aparecem ligados a estar a Vinf. Esses valores dependem de a construçao de I ocorrer primeiro que a localizaçao de p ou, ao contrário, se operar a partir da localizaçao de p. Nos empregos da perífrase com valor de teleonomia, o enunciador-locutor constrói I como validável e só após há construçao de p e localizaçao de p na classe de instantes à qual pertence, ou nao, T0. Segundo Franckel (1989:76), em francés être en train de obriga a que To pertença à subclasse de t que localiza p. Mas, como já referi, em portugués estar a Vinf é compatível com as formas do Pretérito o que implica que nem sempre To esteja incluido na classe de instantes que localiza p. Com o Pretérito Imperfeito do Indicativo17 To nao pertence à classe de instantes em que p é localizado, e o mesmo se verifica em francés. De qualquer forma, a afirmaçao de Franckel resulta, parece-me, do facto de a sua descriçao se basear em enunciados em que é empregue o Presente do Indicativo. O que é, entao, de salientar é que o tempo localizador T. (seja ele To ou T3) pertence à classe de instantes em que há a localizaçao de p. Nestas situaçoes, p é validado e conduz a I, mas fica aquém de I. Estar a Vinf marca o hiato temporal entre p e I, como se pode verificar em (18): (18) A água está a aquecer. Neste enunciado temos o valor de 'processo em curso' e, como defendi em Alzamora (2002: 114), «[n]este caso o hiato entre as duas construçoes (cons-truçao de I e construçao de p) é de ordem temporal. A construçao de I é anterior à localizaçao de p - há um projeto, um objetivo a atingir, uma intencio-nalidade» - [a água estar quente]. A localizaçao de p na classe de instantes que 16 Por ultrapassar o ámbito do objetivo central deste trabalho, nao desenvolvo aqui a questao da intencionalidade, que envolve já questoes de modalidade. 17 Exemplo: A água estava a aquecer quando faltou ogás. compreende To tende para a validagao de I que, no entanto, é apenas validável. Dizer que há a construgao de I como validável, significa que I é visado, é objeto de uma mira. «A localizagao de p em To define o hiato entre p e I pois pode interpretar-se p como marcador de 'aínda nao I'. Esse hiato corresponde a uma quantidade de processo a validar» (Alzamora 2002: 114). Neste sentido, 'estar a aquecer' significa 'aínda nao estar totalmente aquecída'. I corresponde a 'acabar de p': 'acabar de aquecer';'já estar totalmente aquecída'. No seguimento de Culioli (1999^358), verifica-se que o valor de 'processo em curso', pode ser reforgado com o adverbial aínda nao. De acordo com este autor, o adverbial francés pas encore situa-se em IE em relagao a I e o mesmo se passa com aínda nao, em portugués: (18) A água está a aquecer. (19) A água ainda nao está quente. (20) A água já está quente. Os enunciados (18) e (19) situam-se em IE em relagao a I e (20) situa-se em I em relagao a IE. Estar a Vínf corresponde a uma operagao complexa que pode ser representada, tendo por base o enunciado (18), pelos seguintes diagramas: (i) fria [ * de fria p p' (ii) * de quente ] quente p' p (iii) estar fria [ * de fria ] estar a aquecer [ * de quente ] estar quente Neste tipo de enunciados, a perífrase estar a Vínf marca a abertura de uma subclasse de t que localiza p, ou seja, marca a abertura dos dois intervalos fechados: [* de fria] e [* de quente]. Neste sentido, esta perífrase instancia o localizado e validado e o validável, pois poe em jogo o complementar linguís-tico de 'estar totalmente fría' num plano temporal e o complementar de 'estar totalmente quente' num plano nao temporal, onde ele se funda como um objetivo a atingir. A abertura do complementar fechado de 'estar totalmente fría' sobrepoe-se a abertura do complementar fechado de 'estar totalmente quente', construído prospetivamente. Nos empregos da perífrase estar a Vínf em que se opera em primeiro lugar a localizagao de p no plano temporal e só depois se opera, a partir da localizagao de p, a construgao de I, podemos encontrar dois tipos de enunciados diferentes: situagoes em que há emprego de estar a Vínf com valor de antiteleonomia e situagoes em que, nao se pode verdadeiramente dizer que há antiteleonomia, mas há apagamento da intencionalidade. É esta última situaçao que encontramos nos enunciados (21) e (22): (21) Olha, os lilases estao aflorescer! (22) A maré está a subir! Logo à tarde está maré cheia. É a partir da localizaçao do processo p na subclasse de instantes que engloba To que se constrói I como um 'estado alvo'. O enunciador-locutor valida p, mas a construçao de I enquanto validável nao resulta da sua intençao prévia, isto é, o enunciador valida um processo que tende para um alvo que nao corresponde a uma intençao previamente construida por ele. I nao é 'causa' de p, mas 'conse-quência' de p. Segundo Franckel (1989) em enunciados com este valor, I (vali-dável) resulta de uma operaçao de mira a partir da localizaçao de p (validado). Nestes casos há, por parte do enunciador, uma consciencializaçao18, ou seja, a constataçao de um determinado estado de coisas (os lilases já começaram a dar flor; a maré já começou a subir) que permite fundar uma mira (a completa florescencia dos lilases; a maré cheia) e, consequentemente, o hiato entre o processo e o seu termo. Quando a construçao de I é posterior à localizaçao de p, operando-se a partir da localizaçao de p, mas com um emprego de estar a Vinf de tipo antiteleono-mia, verifica-se que, tal como se ilustra em (23), o processo é construido como estando 'em curso', mas, efetivamente, o que encontramos nao é um 'processo em curso', mas uma tentativa de impedir que o processo seja validado: (23) Cuidado! Olha que o teu brinco está a cair. Pode dizer-se que, em (23), estar a Vinf tem valor de advertência. Na realidade, quando se enuncia Olha que o teu brinco está a cair, o brinco nao está realmente em queda, mas prevê-se, se todas as condiçoes se mantiverem, que caia. Como referi anteriormente, também nesta situaçao é a partir da localizaçao de p que se opera a construçao de I como validável. Mas, pela frase antecedente (Cuidado!), o enunciador marca que se pode evitar que I venha a ser validado. Esta construçao de I nao é prévia como nos casos em que há intencionalidade. O que há é a uma operaçao de mira, após a localizaçao de p. Uma descriçao como a que se apresentou anteriormente permite perceber melhor os mecanismos em jogo nos enunciados (4) [...o mercado está a che-gar a um periodo de consolidaçao] e (5) [.as decisoes finais devem estar a cair]. Nestes exemplos, predicaçoes eventivas como estar a chegar e estar a cair têm valor temporal de 'futuro iminente'. O valor temporal de posterioridade 18 Cf. Franckel 1989: 73 é construído de forma complexa, pois é a posterioridade enquanto tal que é construída como validável. O enunciador constrói e localiza p na classe de instantes que compreende T0 e a partir da localizagao de p opera a construgao de I. Estar a Vinf marca o hiato entre p e I e, como já referi, o valor de poste-rioridade nestas construgoes resulta da anulagao abstrata desse hiato19. 3 Conclusao Quando se procede a análise e descrigao da perífrase verbal estar a Vinf, co-loca-se, de imediato, um problema: perceber como se relaciona esta perífrase, habitualmente associada ao valor de 'processo em curso', com a marcagao de valores temporais diferenciados, mesmo quando o verbo de suporte da predi-cagao ocorre sempre no Presente do Indicativo. Da caracterizagao do funcionamento desta perífrase verbal, quando estar ocor-re no Presente do Indicativo, podemos afirmar que os valores por ela marcados variam e dependem, como verificámos, da natureza do hiato que se estabelece entre a construgao de p e a construgao de I. Esses valores dependem do facto de a construgao de I ocorrer primeiro que a localizagao de p ou, ao contrário, se operar a partir da localizagao de p. Como pudemos observar, nas situagoes em que esta perífrase, com estar no Presente do Indicativo, coocorre com predicados télicos, encontramos trés si-tuagoes distintas. Nos empregos do tipo teleonomia, como em (18) [A água está a aquecer.] estar a Vinf marca o hiato temporal entre p e I. O hiato corresponde ao que ainda falta validar de p para atingir I, que foi construído previamente com valor de intencionalidade. O hiato pode interpretar-se da seguinte maneira: com vista a I, p em IE, ainda nao I. Nos empregos do tipo antiteleonomia, vimos trés situagoes diferentes. Em enunciados como (21) [Olha, os lilases estao aflorescer!] e (22) [A maré está a subir! Logo a tarde está maré cheia.] estar a Vinf marca o hiato entre p e I e há apagamento da intencionalidade (nao há teleonomia). Em enunciados como (23) [Cuidado! Olha que o teu brinco está a cair.] estar a Vinf marca o hiato entre p e I, mantém-se o hiato e há apagamento abstrato de I. Nestas situagoes I é validável em T > T0 (T tem valor temporal de posterio-ridade em relagao a T0), mas construído como nao validado em T0. 19 Cf. Campos (1998: 213). Em enunciados como (4) [... o mercado está a chegar a um período de consolidaçao] e (5) [... as decisoes finais devem estar a cair] estar a Vinf marca o hiato entre p e I, mantém-se I e há apagamento abstrato do hiato marcado pela perífrase. I é validável em t. > To (T posterior a To), mas construído como validado em To. A descriçao que aqui apresentei parece apontar para a existência de dois valores relacionados com o funcionamento desta perífrase: um valor de natureza nocional, o valor que é estável, e um valor gramatical, que resulta da coocorrência da configuraçao estar a com diferentes classes aspetuais de predicados verbais. Bibliografía Alzamora, H. I. (2002): Valores e Marcadores de Posterioridade na Língua Portuguesa. Dissertaçao de Mestrado apresentada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. 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It is our proposal to discuss the semantic values of the verbal periphrasis estar a Vinf in contemporary European Portuguese (EP). This approach clarifies the interrelationship between the transcategorial grammatical categories Tense, Aspect and Modality. In this paper it is argued that these categories are involved in the construction of meaning. By identifying, analyzing and describing the different values that result from the deformability and interdependence of the linguistic forms that integrate this configuration, the aim is to explain, at the level of metalinguistic representation, the phenomena that result from the plasticity of linguistic forms and constructions. Helena Isabel Alzamora Centro de Lingüística da Universidade Nova de Lisboa Glagolska perifraza estar a Vinf v sodobni evropski portugalščini: prispevek k transkategorialni analizi Ključne besede: glagolske perifraze; aspektualne vrste glagolov; odnos med transkategorialnimi slovničnimi kategorijami; časovne, naklonske in aspektualne vrednosti; teleonomija. Prispevek obravnava semantično vrednost glagolske perifraze estar a Vinf v sodobni evropski portugalščini (EP). Predstavljeni pristop pojasnjuje odnos med transkategorialnimi slovničnimi kategorijami časa, aspekta in naklona. V prispevku zagovarjamo dejstvo, da preplet omenjenih kategorij sooblikuje pomen. Namen prispevka je na ravni metajezikovne predstavnosti - preko opredelitve, analize in opisa različnih vrednosti, ki nastanejo kot posledica preoblikovanja in soodvisnosti jezikovnih oblik - pojasniti pojave, ki jih vzro-kuje plastičnost jezikovnih oblik in struktur.