VERBA HISPANICA XXXI • BEATRIZ OLIVEIRA 57 Beatriz Oliveira DOI: 10.4312/vh.31.1.57-80 Universidade de Aveiro Samuel Figueira-Cardoso Uniwersytet Warszawski Expressões dêiticas em textos jornalísticos sobre a Covid-19 em português europeu e português do Brasil Palavras-chave: dêixis, linguística textual, português europeu, português do Brasil, Covid-19 A dêixis constitui um processo central na interação entre falantes, ao tratar-se de um conjunto de referências a elementos do contexto comunicativo materializados em diferentes categorias gramaticais (pronomes, demonstrativos, advérbios, locuções adverbiais etc.). Nos estudos linguísticos tradicionais, estas categorias codificam ou gramaticalizam aspetos pessoais, espaciais e temporais do contexto numa dada situação comunicativa - o eu, tu, aqui e agora – e a sua interpretação depende do momento específico da enunciação. Mediante uma análise quantitativa ancorada por uma reflexão qualitativa, o presente estudo descreve e analisa, paralelamente, o uso, frequência e função textual-discursiva de expressões dêiticas em português europeu e português do Brasil em textos jornalísticos sobre a pandemia de Covid-19. Para isso, foi recolhido um corpus constituído por textos escritos, em particular, textos jornalísticos, retirados de jornais online de grande circulação em Portugal e no Brasil, o Expresso e a plataforma G1, respetivamente. A escolha deste género textual prende-se com a sua brevidade, clareza e linguagem com marcas de oralidade, para além da sua função social e informativa. Espera-se, com este estudo exploratório, evidenciar uma compreensão do fenómeno dêitico como estratégia textual-discursiva fundamental para a construção do texto, enquanto contribui para alcançar o projeto de dizer por parte do autor do texto. Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 57 Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 57 16. 01. 2024 14:39:22 16. 01. 2024 14:39:22 VERBA HISPANICA XXXI • O MUNDO LUSÓFONO NAS LÍNGUAS E LITERATURAS ROMÂNICAS 58 1 Introdução Este artigo examina o fenómeno da dêixis em textos jornalísticos que versam sobre a pandemia de Covid-19, escritos em português europeu e português do Brasil (doravante PE e PB, respetivamente). Destacamos que a dêixis se refere ao fenómeno de como a linguagem se associa com o contexto comunicativo em que é utilizada. Pode manifestar-se em várias categorias gramaticais, como pronomes, demonstrativos, advérbios ou locuções adverbiais, que, por sua vez, desempenham um papel fundamental na codificação de aspetos pessoais, sociais, espaciais, temporais, textuais, entre outros, no contexto de comunicação – o eu, tu, aqui e agora. Estas referências são fundamentais para a coerência e coesão textual, bem como para a construção de sentido do texto. Etimologicamente, o termo dêixis deriva do verbo em grego clássico, deíknymi, com o significado de apontar ou indicar. Concomitantemente, este termo pode referir-se à função de unidades gramaticais na frase, sob a forma de dêixis, tendo em conta as coordenadas constitutivas (espácio-temporais e pessoais) do momento de enunciação, i.e., o momento em que o locutor transforma a língua em discurso. Karl Bühler (1934) foi um dos primeiros a sistematizar a dêixis, associando-a à noção de campo mostrativo da linguagem, com a origem no enunciador, no local e no tempo da enunciação. Esta preocupação com o traço ostensivo da linguagem fica marcada nos tipos de dêiticos propostos pelo autor: a dêixis ad oculos refere-se a um objeto presente no campo de visão do falante e a dêixis am phantasma remete para algo na memória dos participantes sem que esteja presente no campo de visão do interlocutor. Nesta abordagem do fenómeno mais tradicional-gramatical, os sentidos são dados e conhecidos; o conceito de dêixis relaciona determinados constituintes linguísticos com o processamento da comunicação. Este campo inclui elementos que supõem uma indicação da situação comunicativa, como pronomes e advérbios que, pelos seus aspetos de ostensão, posteriormente revestem-se de deiticidade e estabelecem uma ligação com a situação de enunciação. Seguindo a perspetiva buhleriana, Fillmore (1997) afirma que os marcadores dêiticos servem como um sistema de coordenadas que ajuda o falante a posicionar a sua perspetiva no momento da enunciação. Estes marcadores ativam um sistema de orientação que permite aos participantes da comunicação interligarem referências pessoais, temporais e espaciais criadas no evento comunicativo. Dos Santos e Morais (2017: 42) acrescentam que, nesta perspetiva, um elemento linguístico só pode ser considerado dêitico se for possível tomar o locutor como a origo e determinar a sua localização no tempo e no espaço do contexto discursivo. Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 58 Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 58 16. 01. 2024 14:39:22 16. 01. 2024 14:39:22 VERBA HISPANICA XXXI • BEATRIZ OLIVEIRA 59 Os estudos de Benveniste (1966; 1976; 2014), fundamentados na sua teoria da enunciação, definem a dêixis como propriedades formais de enunciados que são interpretadas no momento específico da enunciação (vertente na qual a perspetiva adotada neste estudo se apoia para responder às perguntas de pesquisa). Desde o ponto de vista da pragmática (cujo objeto de estudo é o uso da linguagem em contexto), a dêixis envolve a relação entre a estrutura da linguagem e o contexto no qual é usada. Esses elementos incluem a identidade dos interlocutores numa situação de comunicação, designada por dêixis de pessoa, o(s) lugar(es) onde se encontram esses indivíduos, denominada dêixis de lugar e o tempo em que o evento comunicativo acontece (Fillmore, 1997), ou dêixis temporal. Nesta lógica, o papel da dêixis «não é o de fazer referência à realidade objetiva, mas fornecer o instrumento de uma conversão: a da língua em discurso (Ciulla, 2020: 207). Ciulla e Martins (2017) enfatizam que, embora a questão formal seja importante para identificar e definir a dêixis, não é suficiente reconhecer o uso do pronome eu. É necessário compreender o papel desempenhado pelo sujeito da enunciação e todos os aspetos complexos que isso implica. Assim, a subjetividade é um fenómeno de grande complexidade e não se limita a uma questão formal de se referir às pessoas envolvidas no discurso. Ancorados na perspetiva enunciativa do estudo da dêixis, o nosso principal objetivo é ampliar a compreensão da dêixis em géneros pouco explorados na literatura. Ao mesmo tempo, analisamos linguístico-discursivamente os usos e as escolhas lexicais engendradas pelos autores dos textos jornalísticos selecionados e as implicações pragmáticas da dêixis na (co)construção de sentidos, para alcançar um projeto de dizer. Por outras palavras, iremos observar de que forma no texto se pode estabelecer uma relação entre o universo dos signos linguísticos e a realidade do falante. 2 Método de pesquisa Partimos de uma revisão do estado da arte sobre a noção de dêixis e sua tipologia nos estudos de Levinson (1983: 2004), Fonseca (1989), Cavalcante, Custódio Filho e Brito (2014), bem como de Oliveira e Figueira-Cardoso (2023). A principal questão investigativa que guia o nosso estudo é a seguinte: como se dá o fenómeno da dêixis em notícias em PB e PE, considerando a sua tipologia, frequência e função textual-discursiva? E o que esses usos podem revelar sobre as estratégias textuais-discursivas e argumentativas do autor do texto? Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 59 Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 59 16. 01. 2024 14:39:22 16. 01. 2024 14:39:22 VERBA HISPANICA XXXI • O MUNDO LUSÓFONO NAS LÍNGUAS E LITERATURAS ROMÂNICAS 60 Com estas questões em mente, descreveremos, a seguir, os procedimentos metodológicos implicados, além de apresentarmos o corpus de estudo. Reunimos um corpus em PE e PB que consiste em n=24 textos jornalísticos retirados de jornais de grande circulação em Portugal e no Brasil, o Expresso e a plataforma G1, pertencente à Rede Globo. O jornal semanal Expresso foi criado em 1973 por Francisco Pinto Balsemão com a pretensão de aproximar o jornalismo português ao jornalismo britânico, ao estilo do The Sunday Times e The Observer. O jornal tem cerca de 585.400 leitores. O G1 reúne a produção jornalística de todos os jornais afiliados à empresa, abrangendo todo o território nacional do Brasil, seguindo um padrão editorial. Neste sentido, o jornal e a plataforma foram escolhidos devido ao seu elevado número de leitores, disponibilidade em formato digital e acesso gratuito a grande parte do conteúdo, no caso do Expresso, e na íntegra, no caso das reportagens vinculadas no G1. Para a recolha de dados, foram considerados 24 textos que versam sobre a pandemia de Covid-19, pertencentes ao domínio discursivo 1 jornalístico, publicados entre 1 de fevereiro de 2020 e 28 de fevereiro de 2022. Mediante a ferramenta de pesquisa on-line dos jornais, procurámos as seguintes palavras- chave: Covid-19, corona vírus, pandemia. A preferência pelo texto jornalístico para a análise contrastiva deve-se ao facto de apresentar uma linguagem informativa, clara e, no caso de entrevistas e notícias, com marcas da oralidade, sob a forma de discurso direto. É também detentor de uma função social, na medida em que, para além de informar e difundir o conhecimento, pode ser determinante nas transformações da sociedade ao contribuir para a reflexão, formação de opinião e pensamento crítico da sociedade (Baltar, 2006). Partimos do pressuposto de que a realidade mundana não está segmentada da forma como a concebemos, e as coisas não estão no mundo da maneira como as dizemos aos outros; construímos as coisas discursivamente (Figueira-Cardoso, 2022a; 2022b). Esta perspetiva não pressupõe um mundo objetivo, imutável e estável, mas sim uma intersubjetividade construída, pelo que trata o discurso como um processo dinâmico em vez de um produto estabilizado. 1 No entendimento de Marcuschi (2008: 194), os domínios discursivos «operam como enquadres globais de superordenação comunicativa, subordinando práticas sociodiscursivas orais e escritas que resultam nos géneros». Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 60 Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 60 16. 01. 2024 14:39:22 16. 01. 2024 14:39:22 VERBA HISPANICA XXXI • BEATRIZ OLIVEIRA 61 Para a análise quantitativa, recorremos ao programa Lancsbox 6.0. desenvolvido pela Universidade de Lancaster, no Reino Unido. Trata-se de um software de nova geração gratuito que inclui uma grande variedade de ferramentas relevantes para a análise de dados da linguagem. Para além de estatísticas, oferece a possibilidade de identificar, com precisão, o número de ocorrências de determinados termos, bem como gerar gráficos relacionados com eles. Dessa forma, escolhemos duas ferramentas para auxiliar na análise dos dados: Key Word In Context (KWIC), para a procura de termos contextualizados nos arquivos que constituem o corpus (Brezina, Weill-Tessier & McEnery, 2021), facilitando a identificação dos dêiticos sob análise no texto como um todo e Graphcoll, para a criação de redes de colocações linguísticas. 3 Fenómenos dêiticos em textos jornalísticos Georges Kleiber aponta que a dêixis esteve na «origem de duas importantes evoluções em linguística: a anulação do dogma saussuriano língua-discurso, com ênfase dada à enunciação, e o surgimento da pragmática, pela ampliação da semântica vericondicional às frases que contêm dêiticos» (Kleiber, 2013: 268). Estes deslocamentos são possíveis na medida em que são utilizadas abordagens interdisciplinares no tratamento dos dêiticos. Como explorado de forma mais exaustiva num estudo recente de Oliveira e Figueira-Cardoso (2023) sobre os desdobramentos dos estudos da dêixis, observa-se que existem duas perspetivas na compreensão desse fenómeno: uma mais tradicional, com foco na gramática, e outra fundamentada na análise enunciativa. Nesta última, a dêixis é tratada como uma estratégia textual discursiva de construção de objetos de discurso. Para além disso, em ambas as correntes, são propostas classificações de dêiticos com base em diferentes critérios e que, em alguns casos, se sobrepõem. A classificação mais tradicional e difundida da dêixis – pessoal, espacial e temporal – é atribuída a Lyons (1977) e Fillmore (1997), às quais mais tarde Levinson (1983: 2004) acrescenta a social e textual/discursiva. Nas pesquisas linguísticas mais recentes de base sociocognitiva e interacionista tem-se a seguinte classificação: pessoal, social, espacial, temporal e memorial (Calvalcante et al., 2014; Martins, 2019). A dêixis pessoal refere-se à identidade dos interlocutores numa determinada situação comunicativa, permitindo a distinção entre o falante, o ouvinte e as demais entidades que estão presentes na situação comunicativa, mas que não fazem parte do par emissor/recetor (Trask, 1999). Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 61 Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 61 16. 01. 2024 14:39:22 16. 01. 2024 14:39:22 VERBA HISPANICA XXXI • O MUNDO LUSÓFONO NAS LÍNGUAS E LITERATURAS ROMÂNICAS 62 Em PE expressa-se mediante: - Pronomes pessoais da 1ª pessoa (semântica 2 ) do singular (eu, me, mim, comigo) e plural (nós, a gente, nos, se, connosco); - Pronomes pessoais da 2ª pessoa (semântica) do singular (tu, você, te, o, a, se, lhe, ti, si, contigo, consigo) e plural (vós, vocês, vos, se, vós, convosco); - Pronomes pessoais da 3ª pessoa do singular (ele, ela, o, a, se, lhe) e plural (eles, elas, os, as, se, lhes) quando assinalam um terceiro participante no evento comunicativo ou, de acordo com Benveniste (1966), uma «não pessoa», i.e., aquilo/aquele(s) de que/quem se fala; - Determinantes e pronomes possessivos (meu, minha, teu, tua, seu, sua, nosso, nossa, vosso, vossa); - Morfemas verbais, sendo o português uma língua de sujeito nulo (Queres um café?); - Vocativos (João, vem aqui!). Por motivos de espaço, quanto aos dêiticos pessoais centramo-nos apenas em pronomes pessoais da 1ª e 2ª pessoa semântica (eu, tu, você, nós, a gente, vocês). No corpus de PE, o dêitico eu regista n=63 ocorrências e aparece associado de forma mais próxima ao pronome relativo que (cf. Figura 1). O mesmo acontece em PB que conta com n=23 ocorrências do dêitico de 1ª pessoa, também associado ao pronome relativo que (cf. Figura 2). Figura 1: Dêitico eu em PE. 2 Raposo et al. (2013: 897-900) distingue a pessoa semântica da pessoa gramatical. Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 62 Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 62 16. 01. 2024 14:39:22 16. 01. 2024 14:39:22 VERBA HISPANICA XXXI • BEATRIZ OLIVEIRA 63 Figura 2: Dêitico eu em PB. Em PE, não verificámos o uso dos dêiticos tu e você. Em vez do uso explícito dos pronomes no discurso direto entre o jornalista e o entrevistado, prefere- se empregar a elipse do sujeito, indicando-o no morfema verbal, tal como se transcreve em seguida: (1) «O que recorda do primeiro doente que vos chegou?» (EX01MAR20) 3 (2) «Que ensinamentos retira daqui?» (EX04DEZN20) O corpus em PB não inclui o dêitico tu, nem é usado o morfema verbal de segunda pessoa. Dá-se preferência ao uso explícito do pronome pessoal você, que conta com n=35 ocorrências (cf. Figura 3). Contudo, cabe ressaltar que, em PB, o pronome tu ainda mantém alguma prevalência em determinadas regiões e situações, embora se apresente menos comum quando comparado à utilização de você. Adicionalmente, nas variedades do PB que preservam a conjugação específica para tu, o morfema verbal de segunda pessoa também se encontra presente. É o que evidencia Castilho (2010), ao apontar a crescente substituição do pronome tu por você, ao analisar o corpus do Projeto NURC, que compilou dados de cinco capitais brasileiras (Recife, Salvador, São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre), entre 1970 e 1978. Neste estudo, identificou- se somente 0,25% de ocorrências do pronome tu, especialmente concentradas em falantes de Porto Alegre, contra 99,75% de ocorrências do pronome você. 3 Para a análise quantitativa, codificamos o corpus da seguinte forma: Nome do jornal (EX para Expresso ou PG para plataforma G1) + Número do texto + Mês + Ano de publicação. Por exemplo: EX01MAR20. Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 63 Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 63 16. 01. 2024 14:39:23 16. 01. 2024 14:39:23 VERBA HISPANICA XXXI • O MUNDO LUSÓFONO NAS LÍNGUAS E LITERATURAS ROMÂNICAS 64 Segundo o autor, esta evidência demonstra que o uso do tu foi praticamente erradicado nas capitais brasileiras (Castilho, 2010). Não obstante, cumpre salientar que a aplicação destas observações de maneira universal para todo o PB é inviável. A adoção do pronome tu e do morfema verbal de segunda pessoa pode oscilar com base em aspetos regionais, contextuais, sociolinguísticos e referenciais. Este último é objeto de discussão em Zilli (2009), para quem tais pronomes podem assumir diferentes referências ou significados. Por outras palavras, podem ser empregados para aludir ao interlocutor, a um conjunto definido, específico ou genérico, conforme o contexto. Em estudos anteriores de Duarte (1993), Rumeu (2013), Othero (2013), entre outros, observou-se que a incorporação do pronome você ao paradigma pronominal do PB surgiu por volta de 1930 e rapidamente se consolidou na função de sujeito, e o seu uso já era uma característica amplamente difundida no Brasil desde o século XVIII. Figura 3: Dêitico você em PB. No corpus em PE, a expressão a gente não tem função de dêitico, mas é usada como um nome (sinónimo de as pessoas), acompanhado do quantificador toda, a saber: Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 64 Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 64 16. 01. 2024 14:39:23 16. 01. 2024 14:39:23 VERBA HISPANICA XXXI • BEATRIZ OLIVEIRA 65 (3) «nem a pensar muito nos outros. Toda a gente parece muito preocupada só com a sua» (EX02AGO20) (4) «de doentes. Equipámo-nos à frente de toda a gen- te. A doente parecia uma relíquia. Ficou internada» (EX03JUN20) (5) «que é a China, de onde toda a gente sai e para onde toda a gente» (EX04DEZ20) Já em PB, a expressão dêitica a gente conta com n=85 ocorrências em 11 dos 12 textos selecionados, o que representa quase a totalidade da amostra. Verificou- se que o uso da expressão a gente é dado a partir do uso de discurso direto do entrevistado, uma característica principalmente das notícias nas quais o jornalista usa a palavra do outro a fim de corroborar o seu relato dos factos. (6) «explicou Mandetta. “Quando a gente confirma o caso, imediatamente isso é comunicado» (PG01FEV20) (7) «uma jornalista disse ao presidente: “A gente ultrapas- sou o número de mortos da China» (PG02ABR20) (8) «jurídica. “A linguagem é muito técnica, e a gente fica sem entender qual é o próximo» (PG04DEZ21) (9) «esse mundo, ele topou a ideia, mas a gente também queria ter um filho biológico”, explica.» (PG04DEZ21) (10) «cerca de 70 pacientes em estado crítico. “A gente fi- cou períodos sem relaxante» (PG05DEZ21) Em PE, prefere-se o uso de nós em vez de a gente, tal como é possível observar nas suas n=27 ocorrências (cf. Figura 4). Em PB, o uso de nós é reduzido em comparação com a expressão a gente, na medida em que conta apenas com n=16 ocorrências. (cf. Figura 5). Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 65 Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 65 16. 01. 2024 14:39:23 16. 01. 2024 14:39:23 VERBA HISPANICA XXXI • O MUNDO LUSÓFONO NAS LÍNGUAS E LITERATURAS ROMÂNICAS 66 Figura 4: Dêitico nós em PE. Figura 5: Dêitico nós em PB. No corpus de PE, de 12 textos, em apenas 2 aparece o pronome pessoal vocês, empregado pelo jornalista ao questionar o interlocutor. De n=4 ocorrências, n=3 são de um único texto. Por conseguinte, não podemos fazer generalizações relativamente a vocês devido ao número baixo de ocorrências. O que acontece de forma semelhante nos textos em PB, aparecendo apenas n=5 vezes, em 4 dos 12 textos. Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 66 Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 66 16. 01. 2024 14:39:23 16. 01. 2024 14:39:23 VERBA HISPANICA XXXI • BEATRIZ OLIVEIRA 67 Os dados descritos apontam que a dêixis pessoal aparece numa transposição do discurso do outro/entrevistado/interlocutor para o texto jornalístico, i.e., o autor do texto jornalístico usa fragmentos recolhidos nas entrevistas, transpondo-os sob a forma de discurso direto, o que contribui para alcançar o seu projeto de dizer (Koch, 2021). O que se enquadra na função social da notícia de informar ou descrever um facto de forma imparcial. Nesse sentido, ao falar da dêixis pessoal, Benveniste (1976), transpondo a teoria de Bühler para uma conceção enunciativa da linguagem, argumenta que somente os pronomes pessoais eu e tu/você podem tomar a palavra, pertencendo a uma dimensão subjetiva da linguagem, com a função de remeter para a situação enunciativa. Com efeito, Essa referência constante e necessária à instância de discur- so constitui o traço que une a eu/tu uma série de indicadores que pertencem, pela sua forma e pelas aptidões combinatórias, a classes diferentes – uns pronomes, outros advérbios, outros ainda locuções adverbiais. São, em primeiro lugar, os demons- trativos: este etc. na medida em que se organizam correlati- vamente com os indicadores de pessoa, como no lat. hic/iste (Benveniste, 1976: 279). Benveniste aprofunda as ideias de Bühler, distinguindo dois níveis de significação: o nível semiótico, correspondente ao signo ou palavra e a significação interlinguística dentro do sistema onde a chave é distinguir e o nível semântico, correspondente à frase e à situação dentro do discurso e onde o mais importante é compreender. Na teoria do autor, o enunciador é considerado como ponto de referência, pressupondo que para cada eu há um tu pressuposto, e ambos se opõem à não pessoa, referindo-se ao objeto sobre o qual se fala. Neste sentido, tem-se como princípio definidor da dêixis a remissão à instância de discurso que contém eu. Já os dêiticos são traços que unem o eu/tu a outros indicadores no momento da enunciação, como os pronomes demonstrativos este/esse, por remeter para a instância de discurso que contém o eu. Esta teoria pressupõe que cada enunciado é único e irrepetível e, consequentemente, tem como principal foco de estudo o funcionamento da língua num ato individual de utilização, ou seja, quando um indivíduo em concreto se apropria da língua. Além disso, o autor Benveniste (2014: 143) sublinha que, [a]s an individual realization, the enunciation can be defi- ned in relation to language as a process of appropriation. The Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 67 Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 67 16. 01. 2024 14:39:23 16. 01. 2024 14:39:23 VERBA HISPANICA XXXI • O MUNDO LUSÓFONO NAS LÍNGUAS E LITERATURAS ROMÂNICAS 68 speaker appropriates the formal apparatus of the language and sets out his/ her position as speaker by specific indices on one hand, and by incidental methods on the other. O sistema linguístico e o processo comunicativo são intrinsecamente ligados, visto que certos elementos da língua apenas adquirem significação ao serem utilizados pelo falante no momento da enunciação. De acordo com o autor, a capacidade do locutor para se propor como sujeito está na subjetividade que tem na língua as suas marcas indicadoras como se determina pelo status linguístico de pessoa. Por conseguinte, os interlocutores, o tempo e o lugar do enunciado identificam- se mediante a sua relação (inter)subjetiva com a situação comunicativa e o contexto de enunciação. Assim, Benveniste (1976: 286) enfatiza que é por meio da linguagem e através dela que o ser humano se constitui como sujeito, pois é a linguagem que fundamenta a realidade e o conceito de ego. A partir da teoria de Benveniste, é possível ampliar o conceito de subjetividade para uma noção de intersubjetividade, uma vez que os papéis de eu e tu na enunciação são assumidos pelos sujeitos, que utilizam a linguagem para marcar a si mesmos e ao outro, alternando entre si esses papéis no momento na enunciação. Nessa abordagem, o traço de ostensão não é o que define a dêixis, embora possa estar presente em muitos casos em que há dêixis. A característica distintiva de um elemento dêitico em relação a outros elementos da língua é sua capacidade de se autorreferir, isto é, de refletir a instância de discurso que contém o eu. A dêixis temporal diz respeito à forma como o tempo dos eventos referidos no discurso (tempo de referência) interage com o tempo da própria frase (tempo de codificação) e o tempo em que a mensagem é recebida (tempo de descodificação) (Fillmore, 1997). Realiza-se em português mediante advérbios e locuções adverbiais de tempo, tais como: ontem, hoje, amanhã, anteontem, depois de amanhã, na semana passada, (n)esta semana, na próxima semana, na semana que vem, etc. (Lopes, 2018: 47). De acordo com Cavalcante et al. (2014), os dêiticos temporais, assim como os espaciais, são considerados indicadores de ostensão, uma vez que apontam para um local específico e estabelecem limites temporais e espaciais com base na posição do falante no momento da enunciação. Em PE, a expressão ontem conta com apenas n=1 ocorrência. Em PB ontem não ocorre em nenhum dos textos. (11) «e absoluta nos artistas e nos técnicos. Ontem fizeram um ensaio geral que parece ter» (EX11MAR22.docx) Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 68 Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 68 16. 01. 2024 14:39:23 16. 01. 2024 14:39:23 VERBA HISPANICA XXXI • BEATRIZ OLIVEIRA 69 Analisando a expressão temporal hoje em PE, constatou-se n=10 ocorrências que aparecem em 6 textos (cf. Figura 6). Observámos que esses termos aparecem no discurso direto dos entrevistados, ou seja, parte do discurso transcrito pelo autor da reportagem, assim como acontece na dêixis pessoal. Considerando que uma notícia tem uma data de publicação específica, que geralmente aparece no cabeçalho, no momento da construção do texto, o autor faz uso do discurso do outro e não considera as escolhas linguísticas do entrevistado, privilegiando o seu projeto de dizer. Em PB, hoje ocorre n=17 vezes (cf. Figura 7), sendo em alguns dos excertos sinónimo de atualmente. Figura 6: Dêitico hoje em PE. Figura 7: Dêitico hoje em PB. Enquanto em PE o dêitico amanhã não possui ocorrências, em PB apenas é utilizado n=1 vez. (12) «“pessoas idosas”, disse. “Mas é a vida. Amanhã vou eu.» (PG02ABR20) Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 69 Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 69 16. 01. 2024 14:39:23 16. 01. 2024 14:39:23 VERBA HISPANICA XXXI • O MUNDO LUSÓFONO NAS LÍNGUAS E LITERATURAS ROMÂNICAS 70 Expressões temporais que incluem a palavra ano e que constituem dêiticos temporais aparecem 4 vezes em PE: (13) «Mas pode ser importantíssima se para o ano houver um novo surto.» (EX04DEZ2) (14) «da Saúde 24 há mais de um ano, em plena pandemia.» (EX09JAN22) (15) «além disso, afirmou, acrescentaram-se no final do ano passado as dificuldades para encontrar mão de» (EX12MAR22) (16) «Isto é, “quem contratou no ano passado os preços de energia [luz] nomeadamente» (EX12MAR22) Em PB, expressões temporais com a palavra ano consideradas dêiticos. (17) «Rafael Fortuna, de 49, estão há um ano e meio aguar- dando para serem pais.» (PG04DEZ21) (18) «de casos de covid-19 no início deste ano e afirmou que é a primeira vez» (PG08JAN22) (19) «que a gente já desenhou desde o ano passado junto com a Secretaria de Saúde.» (PG09JAN22) Em PE, as expressões temporais com a palavra mês são apenas duas. Curiosamente, no excerto do texto EX12MAR22, o autor recorre a parênteses retos para localizar o leitor temporalmente, o que aponta para uma estratégia textual do autor de explicitar o tempo no qual se dá a enunciação. Isto deve-se ao facto de que uma expressão temporal só será considerada um exemplo de dêixis temporal se fizer referência ao momento em que o locutor se encontra numa dada enunciação. (20) «A Ómicron apareceu na Europa há um mês.» (EX08DEZ21) (21) «postos cá fora até ao final deste mês [março], porque senão a hotelaria tem» (EX12MAR22) Em PB registam-se n=2 ocorrências, sendo que um dos dêiticos vem acompanhado de uma expressão temporal específica separada entre vírgulas. (22) «“vamos aguentar”. O anestesista diz que, nes- te mês, o fluxo finalmente voltou a patamares semelhantes»(PG05DEZ21) Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 70 Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 70 16. 01. 2024 14:39:23 16. 01. 2024 14:39:23 VERBA HISPANICA XXXI • BEATRIZ OLIVEIRA 71 (23) «No entanto, há pouco menos de 1 mês, em 25 de ja- neiro, a mesma taxa» (PG12FEV22) Em PE o termo semana (há uma semana, daqui a uma semana, na semana passada, esta semana) aparece da seguinte forma: (24) «que hoje está certo, daqui a uma semana pode ter de ser diferente.» (EX04DEZ20) (25) «Organização Mundial da Saúde (OMS) há uma sema- na» (EX04DEZ20) (26) «A OMS ainda há uma semana dizia que não havia prova nenhuma que» (EX04DEZ20) (27) «pode não o ser daqui a uma semana. E não foi erro.» (EX04DEZ20) (28) «Há coisas que estavam certas há uma semana e uma semana depois já não estão.» (EX04DEZ20) (29) «Na semana passada o jornal francês “Libération” convidou vários» (EX04DEZ20) (30) «Ainda assim, esta semana o Governo voltou a autori- zar a interrupção» (EX05NOV20) (31) «23 anos, deixou de vez há uma semana os atendimen- tos.» (EX09JAN22) (32) «Sandrina Pereira. Há uma semana, Pedro abandonou a linha.» (EX09JAN22) Já no PB o termo semana aparece somente n=1: (33) «Nesta semana, pela primeira vez desde a primeira onda» (PG05DEZ21) A característica definidora de um dêitico é a sua capacidade de estabelecer uma relação entre o contexto e o ato comunicativo, envolvendo os participantes da comunicação. Ora, só podemos identificar a entidade a que ele se refere se soubermos, mais ou menos, quem está a enunciar a expressão dêitica e o local ou o tempo em que esse enunciador se encontra, tratando-se, assim, de uma relação eminentemente intersubjetiva (Benveniste, 1976), (co)construída no momento da interação. Esta é uma característica interessante dos textos analisados, já que se afasta dos pressupostos de Benveniste. O uso da dêixis, Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 71 Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 71 16. 01. 2024 14:39:23 16. 01. 2024 14:39:23 VERBA HISPANICA XXXI • O MUNDO LUSÓFONO NAS LÍNGUAS E LITERATURAS ROMÂNICAS 72 no nosso corpus, aparece no discurso do outro e não como parte da enunciação de origem; isto porque, da mesma forma que os dêiticos espaciais indicam uma localização, os dêiticos temporais também funcionam como marcadores de orientação, pois indicam um lugar e estabelecem um limite temporal com base na posição do falante no momento da comunicação, o que não acontece nos textos analisados. A dêixis espacial refere-se à expressão linguística da perceção do falante da sua posição num espaço tridimensional (Fillmore, 1997). Ela denota a relação espacial de elementos em relação ao falante numa dada situação comunicativa, ou como um falante se localiza espacialmente num local físico. Este tipo de dêixis é manifestado por meio de demonstrativos: este(s), esse(s), aquele(s), esta(s), essa(s), aquelas(s), isto, isso, aquilo e advérbios de lugar: aqui, cá, aí, ali, lá (Lopes, 2018: 54). A dêixis espacial diz respeito às coordenadas de lugar da situação enunciativa. Diferentemente da dêixis pessoal e da dêixis social, não se refere aos participantes da situação, mas, sim, a um determinado referente construído, tomando o locutor como ponto de origem. Quanto à dêixis espacial, neste artigo iremos contabilizar apenas a classe dos advérbios de lugar, nomeadamente os termos aqui, cá, aí, ali, lá. Aqui regista o maior número de ocorrências, incluindo n=28 ocorrências em 9 textos do corpus de PE (cf. Figura 8) e n=13 em PB (cf. Figura 9). Figura 8: Dêitico aqui em PE. Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 72 Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 72 16. 01. 2024 14:39:23 16. 01. 2024 14:39:23 VERBA HISPANICA XXXI • BEATRIZ OLIVEIRA 73 Figura 9: Dêitico aqui em PB. O advérbio cá conta com n=8 ocorrências em 3 textos em PE e n=0 em PB. O aí regista n=7 ocorrências em 3 textos de PE e apresenta n=5 ocorrências em 5 textos do PB. No entanto, nem sempre funcionam como dêitico espacial. Já o advérbio ali ocorre n=3 vezes nos textos em PE e n=0 no corpus em PB. O advérbio lá em PE conta com n=17 ocorrências em 6 textos (cf. Fig. 10). Atendendo aos objetivos do nosso estudo, centraremos a nossa análise no advérbio lá com função deítica e não de marcador discursivo. Figura 10: Dêitico lá em PE. Em PB, foram identificadas n=5 ocorrências em 3 textos, predominantemente em fragmentos de discurso direto: (34) «da primeira onda da pandemia até agora. “Lá em 2020, na primeira onda, a maioria» (PG05DEZ21) (35) «gente entrava nas UTIs e quem estava lá eram pessoas da nossa idade, pais de» (PG05DEZ21) Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 73 Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 73 16. 01. 2024 14:39:23 16. 01. 2024 14:39:23 VERBA HISPANICA XXXI • O MUNDO LUSÓFONO NAS LÍNGUAS E LITERATURAS ROMÂNICAS 74 (36) «já vai estar decaindo, aí você vai lá e toma a vacina» (PG11JAN22) (37) «posto de saúde, a criança já está lá, então, facilita mui- to a logística» (PG11JAN22) (38) «a disseminação estava em alta no país. “Lá em 2 de janeiro deste ano» (PG12FEV22) A dêixis espacial consiste nas coordenadas de localização na situação de discurso, diferindo-se das dêixis pessoal e social, que se referem aos participantes do discurso. Em vez disso, a dêixis espacial refere-se a um referente específico, considerando o locutor como o ponto de origem. Sem autorreferência, a dêixis espacial é pressuposta, pois faz referência a uma entidade não pessoal, i.e., um objeto de discurso posicionado a partir do locutor. De acordo com as classificações mais atuais (Fonseca, 1998; Levinson, 2004; Cavalcante et al., 2014; Martins 2019), incluem-se ainda a dêixis social, dêixis discursiva ou textual, a dêixis de memória, a dêixis fictiva e a dêixis modal. No entanto, estas categorias não foram identificadas no corpus em PE e PB, pelo que as deixaremos como objeto de estudo em pesquisas futuras. 4 Considerações finais A dêixis é responsável por importantes avanços e deslocamentos nos estudos linguísticos, que se ocupam de como o falante usa a linguagem para a construção de texto e sentido e as relações entre linguagem e contexto. Defendemos, neste artigo, a importância deste fenómeno na construção textual dos sentidos, com atenção a textos jornalísticos, explorando aspetos pouco estudados pelos estudiosos interessados no tema. A principal pergunta à qual procurámos responder no nosso trabalho foi de que forma se dá o fenómeno da dêixis em textos jornalísticos em PB e PE publicados em formato digital, considerando a sua tipologia, frequência e função textual- discursiva. Tentámos examinar igualmente como é que os dêiticos contribuem para a construção textual e de sentidos. Com o objetivo de responder a estas questões, concentrámo-nos numa análise qualitativa, recorrendo a instrumentos de natureza quantitativa, a saber: a ferramenta de análise de dados linguísticos LancsBox, para analisar a frequência de expressões dêiticas. Adicionalmente, explorámos o posicionamento e contexto frásico, observando as implicações na progressão textual e no projeto de dizer do autor do texto. Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 74 Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 74 16. 01. 2024 14:39:23 16. 01. 2024 14:39:23 VERBA HISPANICA XXXI • BEATRIZ OLIVEIRA 75 Os resultados das análises apontam que: i. Enquanto em PE se dá preferência à elipse de dêiticos pessoais sob a forma de pronomes pessoais, nomeada- mente da 2ª pessoa semântica (tu e você/s), em PB regis- taram-se ocorrências dos dêiticos você e a gente, sendo que este último surge no discurso direto do entrevistado, confirmando o relato do jornalista. Importa relembrar que, ao contrário de PB, em PE, a expressão a gente não possui a função de dêitico. Em vez dela, emprega-se o pronome pessoal nós. ii. Foram registadas ocorrências de dêiticos temporais nas duas variantes, nomeadamente o advérbio hoje, que, tal como acontece com a dêixis pessoal, surgem no discur- so direto dos entrevistados, privilegiando o seu projeto de dizer e a situação comunicativa real. Por conseguin- te, no momento de leitura, as coordenadas temporais do leitor não irão coincidir com as coordenadas transcritas no diálogo do entrevistado e, possivelmente, com a data de publicação do texto que, geralmente, é incluída no ca- beçalho. Apenas se verificou uma ocorrência de um dêi- tico temporal – mês, sucedido do mês em questão entre parênteses retos, de forma a explicitar o tempo no qual se dá a enunciação e localizar o leitor temporalmente. iii. No que diz respeito à dêixis espacial, o advérbio aqui oco- rre com maior frequência no corpus de ambas as varian- tes, predominando, tal como a dêixis pessoal, temporal e espacial no discurso direto do entrevistado. De facto, os dados apontam que, nos textos jornalísticos analisados, os autores usam com frequência transcrições diretas daquilo que foi dito pelos entrevistados, sob a forma de discur- so direto. Neste seguimento, a notícia desempenha a sua função social, que passa por informar ou descrever um facto (de forma imparcial), porém atende ao projeto de dizer do autor do texto. Como vimos, esta é uma caracte- rística curiosa, já que se afasta dos pressupostos teóricos de Benveniste. Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 75 Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 75 16. 01. 2024 14:39:23 16. 01. 2024 14:39:23 VERBA HISPANICA XXXI • O MUNDO LUSÓFONO NAS LÍNGUAS E LITERATURAS ROMÂNICAS 76 iv. Por último, não foram registadas no corpus ocorrências da dêixis de tipo social, textual, de memória, fictiva e mo- dal, em ambas as variantes. A nossa hipótese é de que a presença destas categorias pode estar condicionada pelo género textual-discursivo e tipo de sequência textual. Em trabalhos futuros, pretendemos prosseguir um estudo contrastivo mais exaustivo sobre a dêixis, tanto entre as duas variantes do português, como entre outras línguas, direcionando-o para o contexto de português como língua adicional, em diferentes géneros discursivos e multimodais. Referências bibliográficas Baltar, M. (2006): Competência discursiva e gêneros textuais: uma experiência com o jornal de sala de aula. Caxias do Sul: EDUCS. Benveniste, E. (1966): «Problèmes de linguistique générale, 1 vol». Les Etudes Philosophiques, 21(3). Benveniste, E. (1976): Problemas de Linguística Geral I. São Paulo: Editora Nacional. Benveniste, E. (2014): «The formal apparatus of enunciation». Em: Johannes Angermuller, Dominique Maingueneau, Ruth Wodak (eds.), The discourse studies reader. Main currents in theory and analysis. Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins Publishing Company, 140-145. Brezina, V., Weill-Tessier, P. McEnery, A. (2021): #LancsBox v. 6.x. [software package]. Bühler, K. 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In traditional linguistic studies, these categories encode or grammaticalize personal, spatial, and temporal aspects of the context in each communicative situation – the I, you, here, and now – with their interpretation depending on the specific moment of enunciation. Through a quantitative analysis supported by qualitative reflection, the present study describes and analyses, in parallel, the use, frequency, and textual-discursive function of deictic expressions in European and Brazilian Portuguese within journalistic texts about the Covid-19 pandemic. For this purpose, a corpus consisting of written texts, particularly journalistic texts, taken from widely circulated online newspapers in Portugal and Brazil, namely Expresso and the G1 platform, respectively, was collected. The choice of this genre is due to its brevity, clarity, and language with marks of orality, in addition to its social and informative function. With this exploratory study, we aim to highlight Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 78 Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 78 16. 01. 2024 14:39:23 16. 01. 2024 14:39:23 VERBA HISPANICA XXXI • BEATRIZ OLIVEIRA 79 an understanding of deixis as a fundamental textual-discursive strategy for text construction, while contributing to the achievement of the author’s communicative intention. Deiktični izrazi v novinarskih besedilih o Covidu-19 v evropski in brazilski portugalščini Ključne besede: deiksis, besedilno jezikoslovje, evropska portugalščina, brazilska portugalščina, Covid-19. Deiksis je eden temeljnih procesov v interakciji med govorci, saj gre za nabor sklicevanj na elemente komunikacijskega konteksta, ki se uresničujejo prek različnih slovničnih kategorij (zaimki, kazalni zaimki, prislovi, prislovne besedne zveze itd.). V tradicionalnih jezikoslovnih študijah te kategorije kodirajo ali slovnično označujejo osebne, prostorske in časovne vidike konteksta v vsaki komunikacijski situaciji – jaz, ti, tukaj in zdaj –, njihova interpretacija pa je odvisna od specifičnega trenutka izjavljanja. Pričujoči prispevek s kvantitativno analizo, podprto s kvalitativno refleksijo, opisuje in vzporedno analizira rabo, pogostost in besedilno-diskurzivno funkcijo deiktičnih izrazov v evropski in brazilski portugalščini v novinarskih besedilih o pandemiji Covida-19. V ta namen je bil zbran korpus pisnih besedil, zlasti novinarskih, povzetih iz zelo razširjenih spletnih časopisov na Portugalskem in v Braziliji, in sicer Expresso oziroma platforma G1. Ta žanr smo izbrali zaradi njegove kratkosti, jasnosti ter socialne in informativne funkcije. S tem raziskovalnim prispevkom želimo osvetliti razumevanje deiktičnih izrazov kot temeljne besedilno-diskurzivne strategije, ki sodeluje pri tvorjenju besedila, hkrati pa prispeva k uresničevanju avtorjevega sporočilnega namena. Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 79 Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 79 16. 01. 2024 14:39:23 16. 01. 2024 14:39:23 VERBA HISPANICA XXXI • O MUNDO LUSÓFONO NAS LÍNGUAS E LITERATURAS ROMÂNICAS 80 Beatriz Oliveira 4 Beatriz Oliveira, doutoranda em Ciências da Linguagem, investigadora do Centro de Línguas, Literaturas e Culturas (CLLC) e docente de Português Língua Estrangeira na Universidade de Aveiro. Atualmente realiza um estudo contrastivo do Português Europeu e do Espanhol, nas áreas da Pragmática Intercultural e Interlinguística. Tendo lecionado Português como Língua Estrangeira na Universidade Carolina de Praga (República Checa) e na Universidade de Ljubljana (Eslovénia), os seus interesses de investigação abrangem também a aquisição do português por falantes de línguas eslavas. Endereço: Universidade de Aveiro Campus Universitário de Santiago 3810-193 Aveiro Portugal Correio eletrónico:: beatriz.oliveira95@ua.pt Samuel Figueira-Cardoso 5 Samuel Figueira-Cardoso, doutorando em Lingüística na Escola Doutoral de Humanidades da Universidade de Varsóvia. É membro do Grupo de Pesquisa Iandé-Línguas e Culturas Brasileiras e professor do Departamento de Estudos Brasileiros do Instituto de Estudos Ibéricos e Ibero-Americanos da mesma instituição. Endereço: Uniwersytet Warszawski Instituto de Estudos Ibéricos e Ibero-americanos ul. Oboźna 8 00-332 Warszawa Poland Correio eletrónico: s.figueira-ca2@uw.edu.pl 4 ORCID: 0000-0001-6173-8605 5 ORCID: 0000-0003-0680-458X Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 80 Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 80 16. 01. 2024 14:39:23 16. 01. 2024 14:39:23