VERBA HISPANICA XXXI • CLARA NUNES CORREIA 81 Clara Nunes Correia DOI: DOI: 10.4312/vh.31.1.81-95 Universidade Nova de Lisboa NOVA FCSH / CLUNL Era uma vez... o imperfeito em Português Europeu Contemporâneo “Nas suas mãos a voz do mar dormia Nos seus cabelos o vento se esculpia (...)”1 Sophia de Mello Breyner Palavras-chave: imperfeito, imperfetividade, referência, enunciação, plano enunciativo Nos estudos dos tempos gramaticais em Português Europeu Contemporâneo as propriedades temporais e aspetuais que caracterizam as diferentes sequências linguísticas marcadas com o imperfeito do indicativo interrelacionam-se. Por essa razão, o estudo do imperfeito – tomando em consideração aqui os valores estritamente temporais e aspetuais – obriga a ativar um conjunto de suportes que parecem ser importantes para a compreensão dos seus diferentes valores. De acordo com propostas teóricas como as que se integram numa perspetiva enunciativa, o imperfeito caracteriza-se por permitir a interseção de diferentes planos enunciativos. Estes planos relacionam-se através de adverbiais temporais e/ou aspetuais que os ‘ligam’, permitindo, assim, a interpretação das diferentes sequências. Deste modo, se observarmos uma sequência como * Este texto é dedicado à Teresa Brocardo (1959-2023). Como ninguém, ela sabia o que era o tempo e que o tempo, mesmo imperfeito, não tem limites. Tal como a amizade. Porque trabalhámos em conjunto os tempos ao longo de muito tempo. Porque a lembrarei sempre como vento e mar. Trabalho financiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e Tecnologia, I.P., no âmbito do projeto UIDB/LIN/03213/2020 e UIDP/LIN/03213/2020 – Centro de Linguística da Universidade NOVA de Lisboa (CLUNL). Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 81 Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 81 16. 01. 2024 14:39:23 16. 01. 2024 14:39:23 VERBA HISPANICA XXXI • O MUNDO LUSÓFONO NAS LÍNGUAS E LITERATURAS ROMÂNICAS 82 esta só se torna um enunciado (validado como tal) se coocorrer, com essa sequência, um adverbial temporal, ou um adverbial aspetual com valor de iteratividade. Havendo em português outras formas verbais disponíveis para marcar anterioridade e imperfetividade, neste trabalho, visa-se descrever alguns valores que o imperfeito do indicativo exibe, relacionando-o com tempos marcadores de anterioridade (como o pretérito perfeito simples (pps)) ou tempos (como o presente ou o pretérito perfeito composto (ppc)), que podem igualmente evidenciar uma leitura iterativa e não perfetiva. 1 Introdução A maioria das histórias infantis em português inicia-se, de uma forma geral, pela construção ‘Era uma vez...’. Assim, desde muito novos, os falantes apreendem que a Branca de Neve, a Bela Adormecida, e todas as histórias de encantar se desenrolaram num tempo que já passou, e numa outra dimensão espácio-temporal, difícil de fixar, impossível de delimitar. E esta capacidade de se falar de algo que existia num espaço e num tempo que não interceta este em que eu estou a falar é-nos dada pelas formas do imperfeito do indicativo. Possivelmente é também essa possibilidade de construção de um plano outro que não o do plano da enunciação que permite compreender por que razão o imperfeito é considerado, habitualmente como o tempo da ‘descrição’. 2 O imperfeito do indicativo: valores temporais e aspetuais Nos estudos dos tempos gramaticais em Português Europeu Contemporâneo (PEC) as propriedades temporais e aspetuais que caracterizam as diferentes sequências linguísticas marcadas com o imperfeito interrelacionam-se. Por essa razão, o estudo deste tempo gramatical – tomando em consideração aqui as suas aceções estritamente temporais e aspetuais 2 – obriga a ativar um conjunto de suportes que parecem importantes para a compreensão dos seus diferentes valores. 2 Em PEC, o imperfeito do indicativo pode assumir valores temporais-aspetuais (o objeto de estudo deste trabalho), mas também leituras modais, sendo nestes casos designado, de forma mais informal, como imperfeito de delicadeza. Exemplos como “Eu queria um café, por favor.’’ / “O senhor podia chamar o João, por favor?”. Em PEC esta forma pode ser intermutável pelo presente do indicativo, sendo marca de uma maior delicadeza se se usar o imperfeito. Embora também possível em PEC, verifica-se que, no Português do Brasil, este valor de delicadeza é feito de forma mais natural através de formas do futuro do pretérito, em situações de interação de 1ª/2ª pessoas: “O senhor /você poderia, por gentileza, chamar o João?”. Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 82 Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 82 16. 01. 2024 14:39:23 16. 01. 2024 14:39:23 VERBA HISPANICA XXXI • CLARA NUNES CORREIA 83 A afirmação de Oliveira (2015: 9) em que mostra que “o imperfeito [...] apresenta a possibilidade de associar à informação do passado a informação de que a predicação deixou de se aplicar ou de ser relevante no tempo da enunciação [...]”, poderá ser reformulada: as sequências com o imperfeito só ganham relevância no momento da enunciação, porque incorporam na sua definição sequências linguísticas - como os adverbiais temporais e aspetuais - que permitem interpretar essas sequências. Assim, e de acordo com esta proposta, que se pode inscrever numa perspetiva enunciativa (cf., e.o., Sousa (2007), para o português, e Lebaud (1993), para o francês), o imperfeito caracteriza-se por desencadear – conjuntamente com os adverbiais presentes no enunciado – a interseção de dois planos enunciativos disjuntos. Essa interceção é definida a partir de uma operação de translação, funcionando os adverbiais temporais e/ou aspetuais como operadores dessa operação. Deste modo, e seguindo essa proposta, se observarmos uma sequência como , esta só será interpretada como um enunciado 3 (validado como tal) se existir um adverbial temporal que a localize em relação ao tempo da enunciação (T 0 ), ou um adverbial aspetual que lhe confira uma leitura de iteratividade. 3 O imperfeito e os outros tempos 3.1 O pretérito perfeito simples e pretérito perfeito composto A partir da observação de sequências construídas (baseadas na validação dos falantes), na descrição que me proponho realizar, escolhi – pelas suas propriedades estáveis – a manipulação controlada de predicações com verbos como e , analisados como verbos que podem exemplificar situações consideradas eventos ou atividades, na terminologia de Vendler (1967), quer situações estativas, construídas com predicados como . É importante sublinhar que, em ambos os casos, – e com estes predicados – C 0 4 é preferencialmente agentivo, ou pelo menos [+animado]. Note-se que, consoante a ocorrência de C 1, tanto pode desencadear situações 3 Entende-se aqui enunciado como uma sequência linguística formalmente definida e não como um ato de fala, ou uma locução. Assim, um enunciado é uma sequência linguística sintática e semanticamente bem formada, localizada em relação ao sistema referencial. Nesta aceção distingue-se um enunciado, exemplificado como: < quando era pequena, a Joana cantava logo que acordava>, de um enunciável: , de um não-enunciado: < #A Joana e a Maria cantava amanhã>. 4 Assume-se neste trabalho, e seguindo de perto, e.o., Pereira (2009), C 0 como o argumento ‘externo’ do verbo, tendo, regra geral a função de sujeito e C 1 o argumento interno, cuja função sintática é, para verbos transitivos, a de complemento de objeto direto. Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 83 Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 83 16. 01. 2024 14:39:23 16. 01. 2024 14:39:23 VERBA HISPANICA XXXI • O MUNDO LUSÓFONO NAS LÍNGUAS E LITERATURAS ROMÂNICAS 84 interpretadas como evento prolongado , quer como atividade < a Joana canta ópera>. Em (1) Pode observar-se como se comporta quando, no imperfeito, existe uma interpretação de evento prolongado (como em 1.a) ou de atividade (como em 1.b): (1.a) A Joana cantava uma canção e depois adormecia (1.b) Quando era nova / antigamente /..., a Joana cantava || a Joana cantava bem /mal|| a Joana cantava ópera || a Joana cantava na Gulbenkian /... Quando o predicado é estativo, aparentemente existe a obrigatoriedade da coocorrência nessa predicação de adverbiais temporais com valor de anterioridade, como se observa em (2): (2) ? A Joana gostava de peixe || Quando era nova / antiga- mente /..., a Joana gostava de peixe... Note-se que, tanto em (1.b), como em (2), a interpretação privilegiada, tendo em conta a ocorrência do imperfeito, é a de que, no momento da enunciação, , e < a Joana já não gosta de peixe>. Sendo ambos os predicados, tal como Carlson (2012) referiu, predicados de indivíduo (cf., e.o., Carlson (2012) e Oliveira (2015)) a ocorrência do imperfeito na oração principal permite mostrar, de forma satisfatória, o que se disse anteriormente: com o imperfeito dá-se a construção de um outro plano enunciativo, que se liga ao plano da enunciação através de adverbiais temporais que localizam o estado de coisas construído, permitindo, desse modo, a interpretação do enunciado. Essa localização é, no entanto, e de alguma forma ‘imprecisa’. Essa não precisão resulta, de certo modo, da articulação com adverbiais temporais marcadores de anterioridade, mas que apontam para um intervalo de tempo preferencialmente não dêitico, e sobretudo não inclusivo. Numa primeira análise, poder-se-á dizer que o imperfeito, nestes casos, desencadeia uma leitura temporal de anterioridade, mas porque não há delimitação do acontecimento linguístico construído, obriga a uma leitura aspetual não delimitada. Note-se que, se reorganizarmos a informação com o recurso a predicados de fase, vamos encontrar alguma resistência interpretativa: , mas . Esta observação permite afirmar-se que, na construção de sequências do português com o imperfeito, estas podem ser interpretadas como a descrição de acontecimentos já realizados (em relação ao momento da enunciação), apresentando, no entanto, algumas particularidades que importa Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 84 Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 84 16. 01. 2024 14:39:23 16. 01. 2024 14:39:23 VERBA HISPANICA XXXI • CLARA NUNES CORREIA 85 sublinhar: sempre que há a construção de uma sequência com o imperfeito – qualquer que seja a natureza do predicado – existe a necessidade de se recorrer a um localizador (temporal) que permita estabelecer a ancoragem em relação ao momento da enunciação. Esse localizador tem o estatuto de adverbial temporal. Se quisermos sintetizar algumas características das propriedades das predicações com imperfeito, poderemos dizer que (i) na inter-relação com predicados estativos necessitam existir ajustamentos de natureza semântica, consoante os predicados são permanentes ou transitórios; (ii) numa sequência em que a situação construída apresen- ta um predicado cuja leitura preferencial é de atividade (), a leitura aspetual sobre- põe-se à leitura temporal. Neste caso, a paráfrase espera- da seria: . Se se seguir o conjunto de possibilidades da ocorrência do imperfeito em sequências do português e se se realizar a sua intersubstituição com outros tempos gramaticais – nomeadamente com o pretérito perfeito simples (pps) (1.c) e o pretérito perfeito composto (ppc) (1.d) 5 , poderemos delimitar – por aproximação e por afastamento – algumas propriedades que julgamos importante sublinhar. Observe-se os exemplos abaixo: (1.b) A Joana cantava [ópera] /? ultimamente / antigamente / quando era pequena (1.c) A Joana cantou [ópera] ultimamente / antigamente / quando era pequena (1.d) “A Joana tem cantado [ópera] ultimamente /# antiga- mente / #quando era pequena (2.a) A Joana gostava de peixe /? ultimamente / antigamen- te / quando era pequena (2.b) A Joana gostou de peixe # ultimamente/ antigamente / quando era pequena (2.c) A Joana tem gostado de peixe ultimamente / # antiga- mente //# quando era pequena 5 Sobre os valores em português do pps, ver, e.o., Correia (2016). Sobre os valores do ppc, v. sobretudo, Campos (1997). Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 85 Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 85 16. 01. 2024 14:39:23 16. 01. 2024 14:39:23 VERBA HISPANICA XXXI • O MUNDO LUSÓFONO NAS LÍNGUAS E LITERATURAS ROMÂNICAS 86 A partir do paradigma construído acima, poderemos observar que, preferencialmente, no seu uso não transitivo, parece poder ocorrer quer com o imperfeito, quer com o pps. Em ambos os casos a leitura é tipicamente de anterioridade, i.e. as sequências são interpretadas como acontecimentos que já não ocorrem no presente. Como seria expectável, com o ppc, (exemplos de (1.d)), o acontecimento linguístico construído inclui o momento da enunciação na sua definição 6 . Com predicados de natureza estativa, e tal como podemos observar nos exemplos de (2.a) a (2.c), a manipulação do enunciado com a alteração dos tempos gramaticais exige ajustamentos de adverbiais, por um lado, e, por outro, do objeto que lhe está associado. Assim, tem uma leitura diferente, dependendo essa leitura do tempo gramatical em que está flexionado. Assim, a não possibilidade de associar ao ppc adverbiais de natureza inclusiva bloqueia a coocorrência com esses adverbiais. Será igualmente importante referir que a ordem das palavras é também aqui relevante: a estranheza de , pode desaparecer se o adverbial ocorrer no início do enunciado: , pressupondo-se, neste caso, que, subjacente a essa leitura possa existir uma não aceitação da informação por parte do interlocutor: “Estranho que me digas que ela afirme que não gosta de peixe”. Um outro aspeto que importa referir é o efeito de quando coocorre com formas do imperfeito. Veja-se, a título de exemplo, os exemplos de (3.a) e (3.b): (3.a) A Joana já cantava / já cantou / já tem cantado [ópera] na Gulbenkian (3.b) A Joana já gostava de peixe || A Joana já gostou de peixe || A Joana já tem gostado de peixe Nos exemplos acima, , quando coocorre com o imperfeito, e sem que coocorra com outro qualquer adverbial explicitamente localizador 7 , vai adquirir um valor modal (de natureza apreciativa), não delimitando, significativamente, as sequências sob o ponto de vista temporal-aspetual. Nas 6 Note-se que, para cada caso serão utilizados exemplos em que se apresentam apenas situações construídas com verbos que desencadeiam – pelas suas propriedades – situações construídas como ‘eventos’ ou como ‘estados’. Sempre que necessário, chamar-se-á a atenção para situações em que esta oposição possa ser relevante. 7 . Sobre os valores de ‘já’, v., sobretudo, Campos (1997). Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 86 Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 86 16. 01. 2024 14:39:23 16. 01. 2024 14:39:23 VERBA HISPANICA XXXI • CLARA NUNES CORREIA 87 ocorrências com o pps e o ppc, assume os valores temporais e aspetuais descritos tradicionalmente. Assim, e com predicados como e quando flexionados no imperfeito, a leitura de desencadeia um juízo de valor que poderá ser interpretado como: || . Importa ainda referir que o uso reiterado de , como se pode observar em , e sem que haja recurso a qualquer adverbial, pode ser interpretado como a construção de um valor de intensificação de um dado estado de coisas. Note-se que esta interpretação é possível se C 0 se associar a um acontecimento passado, acontecimento esse que não necessita de ser explicitado pelo enunciador porque faz parte de um dado conhecimento partilhado pelo co- enunciador. Neste caso, a localização espácio-temporal deixa de ser relevante; a leitura aspetual de iteratividade torna-se, por isso, mais saliente. 3.2 O imperfeito e o presente Como tem sido apontado (cf., p.e., Oliveira (2013), (2015), Sousa & Araújo (2012)), o presente do indicativo, em português, desencadeia temporalmente valores muito heterogéneos, podendo construir, sob o ponto de vista temporal, leituras de simultaneidade, anterioridade, de posterioridade, ou de atemporalidade, sobretudo quando o presente ocorre em enunciados genéricos, gnómicos ou habituais. Na interação com o imperfeito poderemos verificar algumas características de aparente proximidade: (4.a) A Joana gosta de peixe ||? # A Joana gostava de peixe. (4.b) A Joana [já] gosta de peixe || A Joana [já] gostava de peixe. (4.c) # ? Quando vive em Paris a Joana gosta de peixe || Quando vivia em Paris, a Joana gostava de peixe. (4.d) # Quando é nova, a Joana gosta [muito] [de peixe] || Quando era nova, a Joana gostava [muito] de peixe. (4.e) A Joana gosta de peixe # todas as manhãs / habitual- mente / sempre || A Joana gostava de peixe # todas as manhãs / habitualmente / sempre Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 87 Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 87 16. 01. 2024 14:39:23 16. 01. 2024 14:39:23 VERBA HISPANICA XXXI • O MUNDO LUSÓFONO NAS LÍNGUAS E LITERATURAS ROMÂNICAS 88 A observação dos dados presentes no paradigma apresentado acima leva- nos a defender que a plasticidade do presente do indicativo permite uma sobreposição na aceitabilidade com algumas sequências que ocorrem no imperfeito, no entanto, os valores construídos não são sobreponíveis. Veja-se, só como exemplo, o que se pode observar em relação aos exemplos de (4.a) e (4.e): em (4.a) a leitura atemporal da situação expressa pelo presente não é possível com o imperfeito; em (4.e) ambos os tempos gramaticais parecem não aceitar a iteratividade, mas ambos permitem uma leitura que exibe valores de habitualidade (marcada aqui com adverbiais como ou ). Note-se, no entanto, que em (4.b), por exemplo, ambas as hipóteses são possíveis (quer com o presente, quer com o imperfeito), mas as interpretações que obtemos são diferentes: com o presente, constrói uma leitura resultativa, assumindo-se uma mudança de estado (antes não gostava | agora já gosta); com o imperfeito, e como se referiu anteriormente, , sem qualquer adverbial que lhe esteja associado na predicação, marca uma leitura de natureza apreciativa. Se ocorre com um adverbial localizador (como, p.e., uma oração adverbial temporal), o valor temporal de é reforçado. 4 O imperfeito nos textos Nos pontos anteriores foram apresentadas algumas características do imperfeito. Essa apresentação, de forma muito sucinta, assentou, essencialmente, numa exemplificação baseada em sequências frásicas construídas, procurando-se, com essa análise, detetar, de forma controlada, uma descrição e uma explicação para alguns dos valores do imperfeito em PE. Contudo, uma outra forma de entender os valores das diferentes formas e construções que incluem o imperfeito poderá ser a de se ter em conta a sua ocorrência integrada numa dimensão mais complexa, a dimensão textual 8 . Assim, e aceitando como válidas as propostas de Bronckart (1997), e.o., verifica- se que ao se observar a ‘arquitetura’ de um texto poderemos encontrar uma inter-relação de planos /camadas que se sobrepõem e se interligam. De acordo com Coutinho (2019: 42) “[...] os mecanismos de posicionamento enunciativo, os mecanismos de textualização (conexão, coesão nominal e coesão verbal), e a infraestrutura geral dos textos [...]” são os ‘constituintes’ dessas ‘camadas’. Assim, se se desejar estudar a ocorrência (e a predominância) de um dado tempo gramatical num dado texto, verificar-se-á que essa predominância 8 Não sendo o lugar adequado para discutir o conceito de ‘texto’ e qual o lugar do texto na análise linguística, assumirei aqui, de uma forma geral, as propostas de Coutinho (2019). Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 88 Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 88 16. 01. 2024 14:39:23 16. 01. 2024 14:39:23 VERBA HISPANICA XXXI • CLARA NUNES CORREIA 89 está dependente de todos os outros macro elementos que permitem a sua interpretação. A proposta desenvolvida sobre os tipos de discurso 9 , em certo sentido, constitui-se como o suporte que importa reter nesta análise. Seguindo esta perspetiva, considera-se existir uma clara relevância das formas linguísticas na e para a compreensão dos diferentes textos, aceitando-se que em cada um dos segmentos selecionados, existe a predominância do tipo de discurso do domínio do ‘narrar’. Seguindo esta proposta, ao observarmos os três exemplos apresentados abaixo 10 , poderemos verificar que os valores que o imperfeito desencadeia em cada um desses exemplos torna-se crucial para uma melhor compreensão quer dos seus valores, quer do papel que, em cada um dos casos, parece desencadear. Assim, a observação dos exemplos selecionados aponta para três formas diferentes de podermos olhar para cada um desses excertos: a descrição de um espaço (A), a descrição de uma personagem (B), a descrição de um cenário (C). Em cada um dos casos, o destaque dado pelo imperfeito permite que possamos delimitar a interpretação de cada uma destas sequências, mesmo quando não ocorrem localizadores temporais ou dêicticos (espaciais e/ ou temporais): (A) “As melhores salas do Ramalhete abriam para essa ga- leria. No salão nobre [...], havia uma bela tela de Cons- table, [...]. Uma sala mais pequena, ao lado, onde se fazia música, tinha um ar de século XVIII [...]: duas ta- peçarias de Gobelins, [...], cobriam as paredes de pas- tores e de arvoredos. Defronte era o bilhar, [...] onde, por entre a desordem de ramagens verde-garrafa, es- voaçavam cegonhas prateadas. E, ao lado, achava-se o fumoir, a sala mais cómoda do Ramalhete [...]” (B) “[...] O Búzio era como um monumento manuelino: tudo nele lembrava coisas marítimas. A sua barba branca e on- dulada era igual a uma onda de espuma. As grossas veias azuis das suas pernas eram iguais a cabos de navio. O seu corpo parecia um mastro e o seu andar era baloiçado como o andar dum marinheiro ou dum barco. [...]” 9 Sobre a discussão e enquadramento dos ‘Tipos de discurso’, v., sobretudo, Coutinho (2019: 47-50). 10 Os excertos escolhidos são da autoria, respetivamente, de Eça de Queirós (A), de Sophia de Mello Breyner (B) e de Almada Negreiros (C). Cf. Fontes no final deste texto. Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 89 Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 89 16. 01. 2024 14:39:23 16. 01. 2024 14:39:23 VERBA HISPANICA XXXI • O MUNDO LUSÓFONO NAS LÍNGUAS E LITERATURAS ROMÂNICAS 90 (C) “O luar desmaiava mais ainda uma máscara caida nas esteiras bordadas. E os bambús ao vento e os crysanthe- mos nos jardins e as garças no tanque, gemiam com elle a advinharem-lhe o fim. Em róda tombávam-se ador- mecidos os idolos coloridos e os dragões alados. [...]” Se analisarmos as ocorrências das diferentes predicações presentes nos exemplos, verificamos que apenas nos exemplos de (B) existe a explicitação de grupos nominais que preenchem a posição de sujeito e que exibem os traços [+humano]. Em (A) e (C), por sua vez, as sequências construídas definem um espaço – o Ramalhete – ou uma ‘paisagem’. A sequencialidade das formas de imperfeito (com predicados de natureza diferente) conferem a cada um dos excertos uma sucessividade de propriedades que anunciam uma narração que se prepara, mas que ainda não aconteceu. Quem leu o romance Os Maias sabe que todos aqueles espaços vão ser centrais no desenrolar da história. Funcionando como marca distintiva de um status que caracteriza a família (alta burguesia, culta e viajada do séc. xix português), e constituindo-se como o lugar físico que suporta a história que vai ser contada. A descrição de o Búzio, em (B), define a personagem de forma quase fotográfica. As formas verbais escolhidas assentam quer em verbos predicativos como ou , quer em verbos cognitivos , reforçando o imperfeito a construção de um ‘tempo’ em rutura com o tempo da enunciação. Em (C), por outro lado, é-nos apresentada uma paisagem cujos elementos apontam para um universo distante, mas que se pode reconstruir em qualquer momento. Temos, assim, em qualquer destas sequências planos disjuntos do plano enunciativo onde nos situamos como enunciadores. A precisão temporal – fixada no tempo cronológico – só nos é dada, em (A), através do único adverbial temporal autónomo que nos situa a história no tempo (1875). Já no conto Homero (B), a referência temporal e a personagem são-nos dadas pelo 1º § com se inicia o conto: “Quando eu era pequena, passava às vezes pela praia um velho louco e vagabundo a quem chamavam o Búzio (...)”, e é esse o ponto localizador que permite a interpretação do todo o conto. 11 Assim, na descrição da personagem, o imperfeito assume um valor aparentemente só descritivo, fixando no tempo (e no espaço) uma personagem que só existe nesse tempo e nesse espaço. 11 Note-se que existem no conto outros adverbiais igualmente relevantes para a interpretação da personagem, mas que não são relevantes nesta discussão, até porque não coocorrem com o imperfeito. Sobre uma análise deste conto mais completa, v. Coutinho & Correia (2013). Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 90 Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 90 16. 01. 2024 14:39:23 16. 01. 2024 14:39:23 VERBA HISPANICA XXXI • CLARA NUNES CORREIA 91 A análise das sequências de (C) mostra, por sua vez, de que forma o imperfeito permite que se reconstrua uma dada situação, sem que haja qualquer evidência de uma localização temporal que o ligue, temporalmente, ao plano da enunciação. O excerto escolhido exemplifica, de forma clara, aquilo a que podemos aqui chamar paralelismo enunciativo, evidenciado, tal como acontece nos contos de fadas tradicionais, a estrutura temporal e aspetual que os caracteriza: o imperfeito define uma sequencialidade de situações, assente numa sucessividade de acontecimentos que, numa primeira leitura, apontam para um grau zero do movimento: “o luar desmaiava”, “as garças gemiam [...]”, “os ídolos tombavam”. Este efeito é ainda reforçado, pela ausência total de dêixis, ou de outras formas linguísticas que permitam que exista qualquer localização em relação ao sistema referencial construído e reconstruído na e pela enunciação. 5 Algumas conclusões O imperfeito em português – nos seus usos temporais e não modais – caracteriza- se por desencadear um conjunto muito diverso de valores, dependendo esses valores das propriedades semânticas dos predicados e da interação que as formas verbais estabelecem com diferentes adverbiais temporais e aspetuais. Com este artigo pretendeu-se delimitar alguma desses valores, procurando- se mostrar por um lado, de que forma os valores assumidos pelo imperfeito são, ou não, permeáveis à sua substituição por outros tempos gramaticais como o presente, o pps e o ppc; por outro lado procurou-se verificar como interagem as formas de imperfeito em sequências textuais mais complexas. Para isso foram analisados pequenos excertos de um romance e de dois contos. Ao identificar-se, em cada um deles, a predominância de formas do imperfeito em três situações descritivas diferentes – a descrição de um espaço, a descrição de uma personagem e a descrição de uma paisagem – permitiu verificar- se que as situações construídas com o imperfeito poderão ser disjuntas em relação ao plano da enunciação, (excerto (C)) ou, interagirem com o plano da enunciação através da coocorrência de adverbiais temporais (excerto (A)), ou de adverbiais temporais-aspetuais (excerto (B)). Estes adverbiais funcionam como localizadores das diferentes predicações o que permite a sua interpretação. Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 91 Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 91 16. 01. 2024 14:39:23 16. 01. 2024 14:39:23 VERBA HISPANICA XXXI • O MUNDO LUSÓFONO NAS LÍNGUAS E LITERATURAS ROMÂNICAS 92 Referências Bronckart, J.-P. (1997): Activité langagière, textes et discours. Pour un interactionisme socio-discursif. Paris: Delachaux et Niestlé. Campos, M. H. C. 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Era uma vez... the Imperfect in Contemporary European Portuguese Keywords: imperfect, imperfectivity, reference, enunciation, enunciative plan In the studies on tenses in Contemporary European Portuguese, the temporal and aspectual properties that characterize the different linguistic sequences, marked with the imperfeito, are interrelated. For this reason, the study of the imperfect – strictly considering temporal and aspectual values – requires the activation of a set of supports that are important for understanding their different values. According to the theoretical proposals, such as those integrated into an enunciative perspective, the imperfeito is characterized by allowing the intersection of different enunciative plans. These plans are inter-related by temporal and/or aspectual adverbials that “connect” them, allowing for the interpretation of the different sequences. Thus, if we have a sequence like “Joana used to sing” it only becomes an utterance (validated as such) if a temporal adverbial, or an aspectual adverbial with iterative value, co-occurs with that sequence. Because there are other verbal forms available in Portuguese to mark anteriority and [-perfectivity], this paper aims at describing some values that are exhibited by the imperfeito, relating it with the simple past perfect from a temporal point of view. On the other hand, the imperfeito relates with the present or with the compound perfect tense, because it can also correspond to an iterative and non-perfective meaning. Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 93 Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 93 16. 01. 2024 14:39:23 16. 01. 2024 14:39:23 VERBA HISPANICA XXXI • O MUNDO LUSÓFONO NAS LÍNGUAS E LITERATURAS ROMÂNICAS 94 Era uma vez... Imperfekt v sodobni evropski portugalščini Ključne besede: imperfekt, nedovršnost, referenca, izjavljanje, raven izjavljanja V študijah o gramatikalnih časih v sodobni evropski portugalščini so časovne in vidske lastnosti, ki označujejo različne jezikovne sekvence in ki jih označuje imperfekt/»imperfeito«, med seboj tesno prepletene. Zaradi tega razmišljanje o imperfektu – upoštevajoč le časovne in vidske vrednosti – zahteva aktiviranje nabora podpornih komponent, ki se zdijo ključne za razumevanje različnih vrednosti tega glagolskega časa. V skladu s teoretičnimi predlogi, denimo tistimi, ki se gibljejo znotraj perspektive teorije lingvistike izjavljanja, je za imperfekt značilno, da dopušča obstoj presečišča različnih ravni izjavljanja. Te so med seboj povezane s časovnimi in/ali vidskimi prislovi, ki jih »povezujejo«, kar omogoča interpretacijo različnih jezikovnih sekvenc. Sekvenca jezikovnih znakov, kot je , torej postane izjava (in je potrjena kot taka) šele pod pogojem, da je v tem zaporedju prisoten časovni prislov ali vidski prislov z iterativno vrednostjo ponavljanja. Ker je v portugalščini na voljo več drugih glagolskih oblik za označevanje preddobnosti in nedovršnosti, je namen tega prispevka opisati nekatere vrednosti, ki jih izkazuje »imperfeito«, in ga povezati z glagolskimi časi, ki označujejo preddobnost (kot je enostavni preteklik/pretérito perfeito simples), ter z glagolskimi časi, ki lahko prav tako kot imperfekt izkazujejo ponavljajoče se in nedovršne vrednosti (kot je sedanjik/presente ali sestavljeni preteklik/pretérito perfeito composto). Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 94 Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 94 16. 01. 2024 14:39:23 16. 01. 2024 14:39:23 VERBA HISPANICA XXXI • CLARA NUNES CORREIA 95 Clara Nunes Correia Clara Nunes Correia é Professora Associada na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (NOVAFCSH). Doutorada em Linguística (Semântica), tem desenvolvido investigação e publicado trabalhos nos domínios da Determinação Nominal e da Determinação Verbal. É investigadora do Grupo Gramática & Texto do Centro de Linguística da Universidade Nova (CLUNL). Desenvolve atualmente um projeto sobre o Verbo em Português. Endereço: Departamento de Linguística Faculdade de Ciências Sociais e Humanas Universidade Nova de Lisboa Avenida de Berna, n.º 26-C 1069-061 Lisboa Portugal Correio eletrónico: claranc@fcsh.unl.pt Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 95 Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 95 16. 01. 2024 14:39:23 16. 01. 2024 14:39:23