VERBA HISPANICA XXXI • CLARA NUNES CORREIA
81
Clara Nunes Correia DOI: DOI: 10.4312/vh.31.1.81-95
Universidade Nova de Lisboa
NOVA FCSH / CLUNL
Era uma vez... o imperfeito em Português Europeu
Contemporâneo
“Nas suas mãos a voz do mar dormia
Nos seus cabelos o vento se esculpia (...)”1
Sophia de Mello Breyner
Palavras-chave: imperfeito, imperfetividade, referência, enunciação,
plano enunciativo
Nos estudos dos tempos gramaticais em Português Europeu Contemporâneo
as propriedades temporais e aspetuais que caracterizam as diferentes sequências
linguísticas marcadas com o imperfeito do indicativo interrelacionam-se. Por
essa razão, o estudo do imperfeito – tomando em consideração aqui os valores
estritamente temporais e aspetuais – obriga a ativar um conjunto de suportes
que parecem ser importantes para a compreensão dos seus diferentes valores.
De acordo com propostas teóricas como as que se integram numa perspetiva
enunciativa, o imperfeito caracteriza-se por permitir a interseção de diferentes
planos enunciativos. Estes planos relacionam-se através de adverbiais temporais
e/ou aspetuais que os ‘ligam’, permitindo, assim, a interpretação das diferentes
sequências. Deste modo, se observarmos uma sequência como
* Este texto é dedicado à Teresa Brocardo (1959-2023). Como ninguém, ela sabia o que era
o tempo e que o tempo, mesmo imperfeito, não tem limites. Tal como a amizade. Porque
trabalhámos em conjunto os tempos ao longo de muito tempo. Porque a lembrarei sempre
como vento e mar.
Trabalho financiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e Tecnologia,
I.P., no âmbito do projeto UIDB/LIN/03213/2020 e UIDP/LIN/03213/2020 – Centro de
Linguística da Universidade NOVA de Lisboa (CLUNL).
Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 81 Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 81 16. 01. 2024 14:39:23 16. 01. 2024 14:39:23
VERBA HISPANICA XXXI • O MUNDO LUSÓFONO NAS LÍNGUAS E LITERATURAS ROMÂNICAS
82
esta só se torna um enunciado (validado como tal) se coocorrer, com essa
sequência, um adverbial temporal, ou um adverbial aspetual com valor de
iteratividade. Havendo em português outras formas verbais disponíveis para
marcar anterioridade e imperfetividade, neste trabalho, visa-se descrever alguns
valores que o imperfeito do indicativo exibe, relacionando-o com tempos
marcadores de anterioridade (como o pretérito perfeito simples (pps)) ou
tempos (como o presente ou o pretérito perfeito composto (ppc)), que podem
igualmente evidenciar uma leitura iterativa e não perfetiva.
1 Introdução
A maioria das histórias infantis em português inicia-se, de uma forma
geral, pela construção ‘Era uma vez...’. Assim, desde muito novos, os falantes
apreendem que a Branca de Neve, a Bela Adormecida, e todas as histórias de
encantar se desenrolaram num tempo que já passou, e numa outra dimensão
espácio-temporal, difícil de fixar, impossível de delimitar. E esta capacidade
de se falar de algo que existia num espaço e num tempo que não interceta este
em que eu estou a falar é-nos dada pelas formas do imperfeito do indicativo.
Possivelmente é também essa possibilidade de construção de um plano outro
que não o do plano da enunciação que permite compreender por que razão o
imperfeito é considerado, habitualmente como o tempo da ‘descrição’.
2 O imperfeito do indicativo: valores temporais e aspetuais
Nos estudos dos tempos gramaticais em Português Europeu Contemporâneo
(PEC) as propriedades temporais e aspetuais que caracterizam as diferentes
sequências linguísticas marcadas com o imperfeito interrelacionam-se. Por
essa razão, o estudo deste tempo gramatical – tomando em consideração
aqui as suas aceções estritamente temporais e aspetuais
2
– obriga a ativar um
conjunto de suportes que parecem importantes para a compreensão dos seus
diferentes valores.
2 Em PEC, o imperfeito do indicativo pode assumir valores temporais-aspetuais (o objeto
de estudo deste trabalho), mas também leituras modais, sendo nestes casos designado,
de forma mais informal, como imperfeito de delicadeza. Exemplos como “Eu queria um
café, por favor.’’ / “O senhor podia chamar o João, por favor?”. Em PEC esta forma pode
ser intermutável pelo presente do indicativo, sendo marca de uma maior delicadeza se se
usar o imperfeito. Embora também possível em PEC, verifica-se que, no Português do
Brasil, este valor de delicadeza é feito de forma mais natural através de formas do futuro
do pretérito, em situações de interação de 1ª/2ª pessoas: “O senhor /você poderia, por
gentileza, chamar o João?”.
Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 82 Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 82 16. 01. 2024 14:39:23 16. 01. 2024 14:39:23
VERBA HISPANICA XXXI • CLARA NUNES CORREIA
83
A afirmação de Oliveira (2015: 9) em que mostra que “o imperfeito [...]
apresenta a possibilidade de associar à informação do passado a informação
de que a predicação deixou de se aplicar ou de ser relevante no tempo da
enunciação [...]”, poderá ser reformulada: as sequências com o imperfeito só
ganham relevância no momento da enunciação, porque incorporam na sua
definição sequências linguísticas - como os adverbiais temporais e aspetuais
- que permitem interpretar essas sequências. Assim, e de acordo com esta
proposta, que se pode inscrever numa perspetiva enunciativa (cf., e.o., Sousa
(2007), para o português, e Lebaud (1993), para o francês), o imperfeito
caracteriza-se por desencadear – conjuntamente com os adverbiais presentes
no enunciado – a interseção de dois planos enunciativos disjuntos. Essa
interceção é definida a partir de uma operação de translação, funcionando os
adverbiais temporais e/ou aspetuais como operadores dessa operação. Deste
modo, e seguindo essa proposta, se observarmos uma sequência como , esta só será interpretada como um enunciado
3
(validado como tal) se
existir um adverbial temporal que a localize em relação ao tempo da enunciação
(T
0
), ou um adverbial aspetual que lhe confira uma leitura de iteratividade.
3 O imperfeito e os outros tempos
3.1 O pretérito perfeito simples e pretérito perfeito composto
A partir da observação de sequências construídas (baseadas na validação
dos falantes), na descrição que me proponho realizar, escolhi – pelas suas
propriedades estáveis – a manipulação controlada de predicações com verbos
como e , analisados como verbos que podem exemplificar
situações consideradas eventos ou atividades, na terminologia de Vendler
(1967), quer situações estativas, construídas com predicados como .
É importante sublinhar que, em ambos os casos, – e com estes predicados –
C
0
4
é preferencialmente agentivo, ou pelo menos [+animado]. Note-se que,
consoante a ocorrência de C
1,
tanto pode desencadear situações
3 Entende-se aqui enunciado como uma sequência linguística formalmente definida e não
como um ato de fala, ou uma locução. Assim, um enunciado é uma sequência linguística
sintática e semanticamente bem formada, localizada em relação ao sistema referencial. Nesta
aceção distingue-se um enunciado, exemplificado como: < quando era pequena, a Joana
cantava logo que acordava>, de um enunciável: a Joana cantava>, de um não-enunciado: <
#A Joana e a Maria cantava amanhã>.
4 Assume-se neste trabalho, e seguindo de perto, e.o., Pereira (2009), C
0
como o argumento
‘externo’ do verbo, tendo, regra geral a função de sujeito e C
1
o argumento interno, cuja
função sintática é, para verbos transitivos, a de complemento de objeto direto.
Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 83 Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 83 16. 01. 2024 14:39:23 16. 01. 2024 14:39:23
VERBA HISPANICA XXXI • O MUNDO LUSÓFONO NAS LÍNGUAS E LITERATURAS ROMÂNICAS
84
interpretadas como evento prolongado , quer
como atividade < a Joana canta ópera>. Em (1) Pode observar-se como se
comporta quando, no imperfeito, existe uma interpretação de evento
prolongado (como em 1.a) ou de atividade (como em 1.b):
(1.a) A Joana cantava uma canção e depois adormecia
(1.b) Quando era nova / antigamente /..., a Joana cantava ||
a Joana cantava bem /mal|| a Joana cantava ópera || a
Joana cantava na Gulbenkian /...
Quando o predicado é estativo, aparentemente existe a obrigatoriedade
da coocorrência nessa predicação de adverbiais temporais com valor de
anterioridade, como se observa em (2):
(2) ? A Joana gostava de peixe || Quando era nova / antiga-
mente /..., a Joana gostava de peixe...
Note-se que, tanto em (1.b), como em (2), a interpretação privilegiada, tendo
em conta a ocorrência do imperfeito, é a de que, no momento da enunciação,
, e < a Joana já não gosta de peixe>. Sendo ambos
os predicados, tal como Carlson (2012) referiu, predicados de indivíduo (cf.,
e.o., Carlson (2012) e Oliveira (2015)) a ocorrência do imperfeito na oração
principal permite mostrar, de forma satisfatória, o que se disse anteriormente:
com o imperfeito dá-se a construção de um outro plano enunciativo, que se
liga ao plano da enunciação através de adverbiais temporais que localizam
o estado de coisas construído, permitindo, desse modo, a interpretação do
enunciado. Essa localização é, no entanto, e de alguma forma ‘imprecisa’. Essa
não precisão resulta, de certo modo, da articulação com adverbiais temporais
marcadores de anterioridade, mas que apontam para um intervalo de tempo
preferencialmente não dêitico, e sobretudo não inclusivo. Numa primeira
análise, poder-se-á dizer que o imperfeito, nestes casos, desencadeia uma leitura
temporal de anterioridade, mas porque não há delimitação do acontecimento
linguístico construído, obriga a uma leitura aspetual não delimitada.
Note-se que, se reorganizarmos a informação com o recurso a predicados de
fase, vamos encontrar alguma resistência interpretativa: , mas # Quando era nova / antigamente a
Joana era inteligente>. Esta observação permite afirmar-se que, na construção
de sequências do português com o imperfeito, estas podem ser interpretadas
como a descrição de acontecimentos já realizados (em relação ao momento da
enunciação), apresentando, no entanto, algumas particularidades que importa
Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 84 Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 84 16. 01. 2024 14:39:23 16. 01. 2024 14:39:23
VERBA HISPANICA XXXI • CLARA NUNES CORREIA
85
sublinhar: sempre que há a construção de uma sequência com o imperfeito –
qualquer que seja a natureza do predicado – existe a necessidade de se recorrer
a um localizador (temporal) que permita estabelecer a ancoragem em relação ao
momento da enunciação. Esse localizador tem o estatuto de adverbial temporal.
Se quisermos sintetizar algumas características das propriedades das
predicações com imperfeito, poderemos dizer que
(i) na inter-relação com predicados estativos necessitam
existir ajustamentos de natureza semântica, consoante os
predicados são permanentes ou transitórios;
(ii) numa sequência em que a situação construída apresen-
ta um predicado cuja leitura preferencial é de atividade
(), a leitura aspetual sobre-
põe-se à leitura temporal. Neste caso, a paráfrase espera-
da seria: .
Se se seguir o conjunto de possibilidades da ocorrência do imperfeito em
sequências do português e se se realizar a sua intersubstituição com outros tempos
gramaticais – nomeadamente com o pretérito perfeito simples (pps) (1.c) e o
pretérito perfeito composto (ppc) (1.d)
5
, poderemos delimitar – por aproximação
e por afastamento – algumas propriedades que julgamos importante sublinhar.
Observe-se os exemplos abaixo:
(1.b) A Joana cantava [ópera] /? ultimamente / antigamente
/ quando era pequena
(1.c) A Joana cantou [ópera] ultimamente / antigamente /
quando era pequena
(1.d) “A Joana tem cantado [ópera] ultimamente /# antiga-
mente / #quando era pequena
(2.a) A Joana gostava de peixe /? ultimamente / antigamen-
te / quando era pequena
(2.b) A Joana gostou de peixe # ultimamente/ antigamente /
quando era pequena
(2.c) A Joana tem gostado de peixe ultimamente / # antiga-
mente //# quando era pequena
5 Sobre os valores em português do pps, ver, e.o., Correia (2016). Sobre os valores do ppc, v.
sobretudo, Campos (1997).
Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 85 Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 85 16. 01. 2024 14:39:23 16. 01. 2024 14:39:23
VERBA HISPANICA XXXI • O MUNDO LUSÓFONO NAS LÍNGUAS E LITERATURAS ROMÂNICAS
86
A partir do paradigma construído acima, poderemos observar que,
preferencialmente, no seu uso não transitivo, parece poder ocorrer
quer com o imperfeito, quer com o pps. Em ambos os casos a leitura é
tipicamente de anterioridade, i.e. as sequências são interpretadas como
acontecimentos que já não ocorrem no presente.
Como seria expectável, com o ppc, (exemplos de (1.d)), o acontecimento
linguístico construído inclui o momento da enunciação na sua definição
6
.
Com predicados de natureza estativa, e tal como podemos observar nos exemplos
de (2.a) a (2.c), a manipulação do enunciado com a alteração dos tempos gramaticais
exige ajustamentos de adverbiais, por um lado, e, por outro, do objeto que lhe está
associado. Assim, tem uma leitura diferente, dependendo essa
leitura do tempo gramatical em que está flexionado. Assim, a não possibilidade de
associar ao ppc adverbiais de natureza inclusiva bloqueia a coocorrência com esses
adverbiais. Será igualmente importante referir que a ordem das palavras é também
aqui relevante: a estranheza de A Joana gostava de peixe ultimamente>, pode
desaparecer se o adverbial ocorrer no início do enunciado: , pressupondo-se, neste caso, que, subjacente a essa leitura possa
existir uma não aceitação da informação por parte do interlocutor: “Estranho que
me digas que ela afirme que não gosta de peixe”.
Um outro aspeto que importa referir é o efeito de quando coocorre com
formas do imperfeito. Veja-se, a título de exemplo, os exemplos de (3.a) e
(3.b):
(3.a) A Joana já cantava / já cantou / já tem cantado [ópera]
na Gulbenkian
(3.b) A Joana já gostava de peixe || A Joana já gostou de peixe
|| A Joana já tem gostado de peixe
Nos exemplos acima, , quando coocorre com o imperfeito, e sem
que coocorra com outro qualquer adverbial explicitamente localizador
7
,
vai adquirir um valor modal (de natureza apreciativa), não delimitando,
significativamente, as sequências sob o ponto de vista temporal-aspetual. Nas
6 Note-se que, para cada caso serão utilizados exemplos em que se apresentam apenas situações
construídas com verbos que desencadeiam – pelas suas propriedades – situações construídas
como ‘eventos’ ou como ‘estados’. Sempre que necessário, chamar-se-á a atenção para
situações em que esta oposição possa ser relevante.
7 . Sobre os valores de
‘já’, v., sobretudo, Campos (1997).
Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 86 Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 86 16. 01. 2024 14:39:23 16. 01. 2024 14:39:23
VERBA HISPANICA XXXI • CLARA NUNES CORREIA
87
ocorrências com o pps e o ppc, assume os valores temporais e aspetuais
descritos tradicionalmente.
Assim, e com predicados como e quando flexionados no
imperfeito, a leitura de desencadeia um juízo de valor que poderá ser
interpretado como: || .
Importa ainda referir que o uso reiterado de , como se pode observar em
, e sem que haja recurso a qualquer adverbial,
pode ser interpretado como a construção de um valor de intensificação de um dado
estado de coisas. Note-se que esta interpretação é possível se C
0
se associar a um
acontecimento passado, acontecimento esse que não necessita de ser explicitado
pelo enunciador porque faz parte de um dado conhecimento partilhado pelo co-
enunciador. Neste caso, a localização espácio-temporal deixa de ser relevante; a
leitura aspetual de iteratividade torna-se, por isso, mais saliente.
3.2 O imperfeito e o presente
Como tem sido apontado (cf., p.e., Oliveira (2013), (2015), Sousa & Araújo
(2012)), o presente do indicativo, em português, desencadeia temporalmente
valores muito heterogéneos, podendo construir, sob o ponto de vista
temporal, leituras de simultaneidade, anterioridade, de posterioridade, ou
de atemporalidade, sobretudo quando o presente ocorre em enunciados
genéricos, gnómicos ou habituais.
Na interação com o imperfeito poderemos verificar algumas características de
aparente proximidade:
(4.a) A Joana gosta de peixe ||? # A Joana gostava de peixe.
(4.b) A Joana [já] gosta de peixe || A Joana [já] gostava de
peixe.
(4.c) # ? Quando vive em Paris a Joana gosta de peixe ||
Quando vivia em Paris, a Joana gostava de peixe.
(4.d) # Quando é nova, a Joana gosta [muito] [de peixe] ||
Quando era nova, a Joana gostava [muito] de peixe.
(4.e) A Joana gosta de peixe # todas as manhãs / habitual-
mente / sempre || A Joana gostava de peixe # todas as
manhãs / habitualmente / sempre
Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 87 Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 87 16. 01. 2024 14:39:23 16. 01. 2024 14:39:23
VERBA HISPANICA XXXI • O MUNDO LUSÓFONO NAS LÍNGUAS E LITERATURAS ROMÂNICAS
88
A observação dos dados presentes no paradigma apresentado acima leva-
nos a defender que a plasticidade do presente do indicativo permite uma
sobreposição na aceitabilidade com algumas sequências que ocorrem no
imperfeito, no entanto, os valores construídos não são sobreponíveis. Veja-se,
só como exemplo, o que se pode observar em relação aos exemplos de (4.a)
e (4.e): em (4.a) a leitura atemporal da situação expressa pelo presente não
é possível com o imperfeito; em (4.e) ambos os tempos gramaticais parecem
não aceitar a iteratividade, mas ambos permitem uma leitura que exibe
valores de habitualidade (marcada aqui com adverbiais como ou
). Note-se, no entanto, que em (4.b), por exemplo, ambas as
hipóteses são possíveis (quer com o presente, quer com o imperfeito), mas as
interpretações que obtemos são diferentes: com o presente, constrói uma
leitura resultativa, assumindo-se uma mudança de estado (antes não gostava |
agora já gosta); com o imperfeito, e como se referiu anteriormente, , sem
qualquer adverbial que lhe esteja associado na predicação, marca uma leitura
de natureza apreciativa. Se ocorre com um adverbial localizador (como, p.e.,
uma oração adverbial temporal), o valor temporal de é reforçado.
4 O imperfeito nos textos
Nos pontos anteriores foram apresentadas algumas características do imperfeito.
Essa apresentação, de forma muito sucinta, assentou, essencialmente, numa
exemplificação baseada em sequências frásicas construídas, procurando-se,
com essa análise, detetar, de forma controlada, uma descrição e uma explicação
para alguns dos valores do imperfeito em PE. Contudo, uma outra forma
de entender os valores das diferentes formas e construções que incluem o
imperfeito poderá ser a de se ter em conta a sua ocorrência integrada numa
dimensão mais complexa, a dimensão textual
8
.
Assim, e aceitando como válidas as propostas de Bronckart (1997), e.o., verifica-
se que ao se observar a ‘arquitetura’ de um texto poderemos encontrar uma
inter-relação de planos /camadas que se sobrepõem e se interligam. De acordo
com Coutinho (2019: 42) “[...] os mecanismos de posicionamento enunciativo,
os mecanismos de textualização (conexão, coesão nominal e coesão verbal), e
a infraestrutura geral dos textos [...]” são os ‘constituintes’ dessas ‘camadas’.
Assim, se se desejar estudar a ocorrência (e a predominância) de um dado
tempo gramatical num dado texto, verificar-se-á que essa predominância
8 Não sendo o lugar adequado para discutir o conceito de ‘texto’ e qual o lugar do texto na
análise linguística, assumirei aqui, de uma forma geral, as propostas de Coutinho (2019).
Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 88 Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 88 16. 01. 2024 14:39:23 16. 01. 2024 14:39:23
VERBA HISPANICA XXXI • CLARA NUNES CORREIA
89
está dependente de todos os outros macro elementos que permitem a sua
interpretação.
A proposta desenvolvida sobre os tipos de discurso
9
, em certo sentido,
constitui-se como o suporte que importa reter nesta análise. Seguindo esta
perspetiva, considera-se existir uma clara relevância das formas linguísticas
na e para a compreensão dos diferentes textos, aceitando-se que em cada um
dos segmentos selecionados, existe a predominância do tipo de discurso do
domínio do ‘narrar’.
Seguindo esta proposta, ao observarmos os três exemplos apresentados abaixo
10
,
poderemos verificar que os valores que o imperfeito desencadeia em cada um
desses exemplos torna-se crucial para uma melhor compreensão quer dos seus
valores, quer do papel que, em cada um dos casos, parece desencadear. Assim,
a observação dos exemplos selecionados aponta para três formas diferentes de
podermos olhar para cada um desses excertos: a descrição de um espaço (A), a
descrição de uma personagem (B), a descrição de um cenário (C). Em cada um
dos casos, o destaque dado pelo imperfeito permite que possamos delimitar
a interpretação de cada uma destas sequências, mesmo quando não ocorrem
localizadores temporais ou dêicticos (espaciais e/ ou temporais):
(A) “As melhores salas do Ramalhete abriam para essa ga-
leria. No salão nobre [...], havia uma bela tela de Cons-
table, [...]. Uma sala mais pequena, ao lado, onde se
fazia música, tinha um ar de século XVIII [...]: duas ta-
peçarias de Gobelins, [...], cobriam as paredes de pas-
tores e de arvoredos. Defronte era o bilhar, [...] onde,
por entre a desordem de ramagens verde-garrafa, es-
voaçavam cegonhas prateadas. E, ao lado, achava-se o
fumoir, a sala mais cómoda do Ramalhete [...]”
(B) “[...] O Búzio era como um monumento manuelino: tudo
nele lembrava coisas marítimas. A sua barba branca e on-
dulada era igual a uma onda de espuma. As grossas veias
azuis das suas pernas eram iguais a cabos de navio. O seu
corpo parecia um mastro e o seu andar era baloiçado
como o andar dum marinheiro ou dum barco. [...]”
9 Sobre a discussão e enquadramento dos ‘Tipos de discurso’, v., sobretudo, Coutinho (2019:
47-50).
10 Os excertos escolhidos são da autoria, respetivamente, de Eça de Queirós (A), de Sophia de
Mello Breyner (B) e de Almada Negreiros (C). Cf. Fontes no final deste texto.
Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 89 Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 89 16. 01. 2024 14:39:23 16. 01. 2024 14:39:23
VERBA HISPANICA XXXI • O MUNDO LUSÓFONO NAS LÍNGUAS E LITERATURAS ROMÂNICAS
90
(C) “O luar desmaiava mais ainda uma máscara caida nas
esteiras bordadas. E os bambús ao vento e os crysanthe-
mos nos jardins e as garças no tanque, gemiam com elle
a advinharem-lhe o fim. Em róda tombávam-se ador-
mecidos os idolos coloridos e os dragões alados. [...]”
Se analisarmos as ocorrências das diferentes predicações presentes nos
exemplos, verificamos que apenas nos exemplos de (B) existe a explicitação de
grupos nominais que preenchem a posição de sujeito e que exibem os traços
[+humano]. Em (A) e (C), por sua vez, as sequências construídas definem um
espaço – o Ramalhete – ou uma ‘paisagem’. A sequencialidade das formas de
imperfeito (com predicados de natureza diferente) conferem a cada um dos
excertos uma sucessividade de propriedades que anunciam uma narração que
se prepara, mas que ainda não aconteceu.
Quem leu o romance Os Maias sabe que todos aqueles espaços vão ser centrais
no desenrolar da história. Funcionando como marca distintiva de um status que
caracteriza a família (alta burguesia, culta e viajada do séc. xix português), e
constituindo-se como o lugar físico que suporta a história que vai ser contada.
A descrição de o Búzio, em (B), define a personagem de forma quase
fotográfica. As formas verbais escolhidas assentam quer em verbos
predicativos como ou , quer em verbos cognitivos ,
reforçando o imperfeito a construção de um ‘tempo’ em rutura com o tempo
da enunciação. Em (C), por outro lado, é-nos apresentada uma paisagem
cujos elementos apontam para um universo distante, mas que se pode
reconstruir em qualquer momento.
Temos, assim, em qualquer destas sequências planos disjuntos do plano
enunciativo onde nos situamos como enunciadores. A precisão temporal –
fixada no tempo cronológico – só nos é dada, em (A), através do único adverbial
temporal autónomo que nos situa a história no tempo (1875). Já no conto Homero
(B), a referência temporal e a personagem são-nos dadas pelo 1º § com se inicia
o conto: “Quando eu era pequena, passava às vezes pela praia um velho louco
e vagabundo a quem chamavam o Búzio (...)”, e é esse o ponto localizador que
permite a interpretação do todo o conto.
11
Assim, na descrição da personagem, o
imperfeito assume um valor aparentemente só descritivo, fixando no tempo (e
no espaço) uma personagem que só existe nesse tempo e nesse espaço.
11 Note-se que existem no conto outros adverbiais igualmente relevantes para a interpretação
da personagem, mas que não são relevantes nesta discussão, até porque não coocorrem com
o imperfeito. Sobre uma análise deste conto mais completa, v. Coutinho & Correia (2013).
Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 90 Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 90 16. 01. 2024 14:39:23 16. 01. 2024 14:39:23
VERBA HISPANICA XXXI • CLARA NUNES CORREIA
91
A análise das sequências de (C) mostra, por sua vez, de que forma o imperfeito
permite que se reconstrua uma dada situação, sem que haja qualquer
evidência de uma localização temporal que o ligue, temporalmente, ao plano
da enunciação. O excerto escolhido exemplifica, de forma clara, aquilo a
que podemos aqui chamar paralelismo enunciativo, evidenciado, tal como
acontece nos contos de fadas tradicionais, a estrutura temporal e aspetual que
os caracteriza: o imperfeito define uma sequencialidade de situações, assente
numa sucessividade de acontecimentos que, numa primeira leitura, apontam
para um grau zero do movimento: “o luar desmaiava”, “as garças gemiam [...]”,
“os ídolos tombavam”. Este efeito é ainda reforçado, pela ausência total de
dêixis, ou de outras formas linguísticas que permitam que exista qualquer
localização em relação ao sistema referencial construído e reconstruído na e
pela enunciação.
5 Algumas conclusões
O imperfeito em português – nos seus usos temporais e não modais – caracteriza-
se por desencadear um conjunto muito diverso de valores, dependendo esses
valores das propriedades semânticas dos predicados e da interação que as
formas verbais estabelecem com diferentes adverbiais temporais e aspetuais.
Com este artigo pretendeu-se delimitar alguma desses valores, procurando-
se mostrar por um lado, de que forma os valores assumidos pelo imperfeito
são, ou não, permeáveis à sua substituição por outros tempos gramaticais
como o presente, o pps e o ppc; por outro lado procurou-se verificar como
interagem as formas de imperfeito em sequências textuais mais complexas.
Para isso foram analisados pequenos excertos de um romance e de dois contos.
Ao identificar-se, em cada um deles, a predominância de formas do imperfeito
em três situações descritivas diferentes – a descrição de um espaço, a descrição
de uma personagem e a descrição de uma paisagem – permitiu verificar-
se que as situações construídas com o imperfeito poderão ser disjuntas em
relação ao plano da enunciação, (excerto (C)) ou, interagirem com o plano
da enunciação através da coocorrência de adverbiais temporais (excerto
(A)), ou de adverbiais temporais-aspetuais (excerto (B)). Estes adverbiais
funcionam como localizadores das diferentes predicações o que permite a sua
interpretação.
Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 91 Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 91 16. 01. 2024 14:39:23 16. 01. 2024 14:39:23
VERBA HISPANICA XXXI • O MUNDO LUSÓFONO NAS LÍNGUAS E LITERATURAS ROMÂNICAS
92
Referências
Bronckart, J.-P. (1997): Activité langagière, textes et discours. Pour un interactionisme
socio-discursif. Paris: Delachaux et Niestlé.
Campos, M. H. C. (1997): Tempo, Aspecto e Modalidade, Estudos de Linguística
Portuguesa. Porto: Porto Editora.
Carlson, G. (2012): «Habitual and Generic Aspect». In: Robert Binnick
(ed.) (2012), The Oxford Handbook of Tense and Aspect. Oxford: Oxford
University Press, 828-851.
Correia, C. N. (2016): «Uma leitura aspetual do Pretérito Perfeito Simples
(PPS) em Português Europeu». Em: Alvanira Lucia Barros, Maria
Teresa Brocardo (eds.), Estudos sobre o verbo em português: valores, marcas e
construções. João Pessoa: Ideia, 9-24.
Coutinho, A. (2019): Textos e[m] Linguística. Lisboa: Colibri.
Coutinho, A., Correia C. N. (2013): Uma leitura de ‘Homero’. Em: Jasmina
Markič, Clara Nunes Correia (eds.) Descrições e contrastes. Tópicos de
Gramática Portuguesa com Exemplos Contrastivos Eslovenos. Ljubljana:
Univerza v Ljubljana, Filozofska fakulteta,129-144.
Culioli, A. (1990): Pour une linguistique de l’énonciation: Opérations et
representations. Paris: Ophrys.
Lebaud, D. (1993): «L’imparfait: indétermination aspectuo-temporelle et
changement de repère». Le gré des langues 5, 160-176.
Oliveira, F. (2013): «Tempo verbal». Em: Eduardo B. P. Raposo et al. Gramática
da língua portuguesa. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, Vol. I, 509-
553.
Oliveira, F. (2015): «O Imperfeito e o tempo dos indivíduos». Em: Purificação
Silvano, António Leal (coord.) Estudos de semântica. Porto: Universidade
do Porto. Centro de Linguística, 8-24.
Pereira, S., Correia, C. N. (2012): «From quantity to intensity». Em: Catherine
Schnedecker, Constanze Armbredge (eds.): La Quantification et ses domaines.
Paris: Honoré Champion, 555-567.
Pereira, S. (2009): A semântica do objecto: aspecto e determinação nominal. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian / Fundação para a Ciência e a Tecnologia.
Sousa, O., Araújo, S. (2012): «P our une approche contrastive du présent simple en
français et en portugais». Em: Congrès Mondial de Linguistique Française
– CMLF 2012 (http://dx.doi.org/10.1051/shsconf/20120100195).
Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 92 Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 92 16. 01. 2024 14:39:23 16. 01. 2024 14:39:23
VERBA HISPANICA XXXI • CLARA NUNES CORREIA
93
Sousa, O. (2007): Tempo e aspecto – O Imperfeito num corpus de aquisição. Lisboa:
Colibri.
Vendler, Z. (1967). «Verbs and times». In: Zeno Vendler: Linguistics in
Philosophy. New York: Cornell University Press. 97-121.
Fontes
Eça de Queirós (1888): Os Maias. 2v. 1. ed. Porto: Livraria Internacional de
Ernesto Chardron.
José de Almada Negreiros (1915): «Frizos: A taça de chá». Revista Orpheu, n.º 1.
Sophia de Mello Breyner Andresen. «Homero». Em: Contos Exemplares.
Lisboa: Morais Editores,195-204.
Era uma vez... the Imperfect in Contemporary European
Portuguese
Keywords: imperfect, imperfectivity, reference, enunciation,
enunciative plan
In the studies on tenses in Contemporary European Portuguese, the temporal and
aspectual properties that characterize the different linguistic sequences, marked
with the imperfeito, are interrelated. For this reason, the study of the imperfect –
strictly considering temporal and aspectual values – requires the activation of a
set of supports that are important for understanding their different values.
According to the theoretical proposals, such as those integrated into an enunciative
perspective, the imperfeito is characterized by allowing the intersection of
different enunciative plans. These plans are inter-related by temporal and/or
aspectual adverbials that “connect” them, allowing for the interpretation of the
different sequences. Thus, if we have a sequence like “Joana used to sing” it only
becomes an utterance (validated as such) if a temporal adverbial, or an aspectual
adverbial with iterative value, co-occurs with that sequence.
Because there are other verbal forms available in Portuguese to mark
anteriority and [-perfectivity], this paper aims at describing some values that
are exhibited by the imperfeito, relating it with the simple past perfect from
a temporal point of view. On the other hand, the imperfeito relates with the
present or with the compound perfect tense, because it can also correspond to
an iterative and non-perfective meaning.
Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 93 Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 93 16. 01. 2024 14:39:23 16. 01. 2024 14:39:23
VERBA HISPANICA XXXI • O MUNDO LUSÓFONO NAS LÍNGUAS E LITERATURAS ROMÂNICAS
94
Era uma vez... Imperfekt v sodobni evropski portugalščini
Ključne besede: imperfekt, nedovršnost, referenca, izjavljanje, raven
izjavljanja
V študijah o gramatikalnih časih v sodobni evropski portugalščini so časovne
in vidske lastnosti, ki označujejo različne jezikovne sekvence in ki jih označuje
imperfekt/»imperfeito«, med seboj tesno prepletene. Zaradi tega razmišljanje
o imperfektu – upoštevajoč le časovne in vidske vrednosti – zahteva aktiviranje
nabora podpornih komponent, ki se zdijo ključne za razumevanje različnih
vrednosti tega glagolskega časa.
V skladu s teoretičnimi predlogi, denimo tistimi, ki se gibljejo znotraj
perspektive teorije lingvistike izjavljanja, je za imperfekt značilno, da
dopušča obstoj presečišča različnih ravni izjavljanja. Te so med seboj povezane
s časovnimi in/ali vidskimi prislovi, ki jih »povezujejo«, kar omogoča
interpretacijo različnih jezikovnih sekvenc. Sekvenca jezikovnih znakov, kot
je , torej postane izjava (in je potrjena kot taka) šele pod
pogojem, da je v tem zaporedju prisoten časovni prislov ali vidski prislov z
iterativno vrednostjo ponavljanja.
Ker je v portugalščini na voljo več drugih glagolskih oblik za označevanje
preddobnosti in nedovršnosti, je namen tega prispevka opisati nekatere
vrednosti, ki jih izkazuje »imperfeito«, in ga povezati z glagolskimi časi,
ki označujejo preddobnost (kot je enostavni preteklik/pretérito perfeito
simples), ter z glagolskimi časi, ki lahko prav tako kot imperfekt izkazujejo
ponavljajoče se in nedovršne vrednosti (kot je sedanjik/presente ali sestavljeni
preteklik/pretérito perfeito composto).
Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 94 Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 94 16. 01. 2024 14:39:23 16. 01. 2024 14:39:23
VERBA HISPANICA XXXI • CLARA NUNES CORREIA
95
Clara Nunes Correia
Clara Nunes Correia é Professora Associada na Faculdade de Ciências Sociais
e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (NOVAFCSH). Doutorada
em Linguística (Semântica), tem desenvolvido investigação e publicado
trabalhos nos domínios da Determinação Nominal e da Determinação Verbal.
É investigadora do Grupo Gramática & Texto do Centro de Linguística da
Universidade Nova (CLUNL). Desenvolve atualmente um projeto sobre o
Verbo em Português.
Endereço: Departamento de Linguística
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas
Universidade Nova de Lisboa
Avenida de Berna, n.º 26-C
1069-061 Lisboa
Portugal
Correio eletrónico: claranc@fcsh.unl.pt
Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 95 Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 95 16. 01. 2024 14:39:23 16. 01. 2024 14:39:23