VERBA HISPANICA XXXI • RESENHAS 165 Os unicórnios e a linguística Coutinho, Antónia Texto e(m) Linguística. Lisboa: Colibri (2019), pp. 182. ISBN: 978996899172 Falar a alguém de um livro novo traz uma responsabilidade acrescida: por um lado é importante que se tenha a capacidade de convencimento sobre a bondade (ou não bondade) da obra de que se vai falar; por outro lado, sabe- se que tudo o que se vai escrever é apenas e somente um ponto de vista – uma perspetiva de leitura –, correndo-se o risco de se deixar muitas coisas importantes por dizer. Como é normal, num primeiro momento, um livro é só um livro. Mas, quando lhe está associada a etiqueta «livro de linguística», só por si, esta acarreta, à partida, o peso da formalidade, o peso do rigor e o peso do peso de alguma hipótese de aborrecimento. Por isso, assumi como primeira missão desconstruir aquilo que se pode pensar de um livro de linguística. Quando me propus realizar esta tarefa, pensei que, de uma forma ou de outra, independentemente do livro em si, pode sempre falar-se de livros: livros- objetos que se admiram e se guardam, se perdem e se reencontram; livros que nos ensinam e onde nos apoiamos, muitas vezes com algum tédio, outras com imenso entusiasmo; livros que nos provocam curiosidade, que desvendam mistérios... Em suma: um livro permite sempre falar do prazer de se ter um livro para ler. E pensei: que livro é este, afinal? O facto de conhecer muito bem a autora há muitos anos, de trabalharmos muitas vezes em conjunto, de sermos amigas, não ajuda à imparcialidade de uma leitura que se quer distante e inócua. Esta leitura é, por isso, uma leitura comprometida e, em certo sentido, conivente. Por muito estranho que pareça, esta proximidade (afetiva) gera também um grande desconforto, pairando sempre a possibilidade de não se gostar do livro que nos propusemos analisar. Mas era preciso ler o livro. E, sem olhar para o índice, li tudo. Tomei notas. Inseri pontos de exclamação e de interrogação. Sublinhei. E voltei atrás. Experimentei o prazer de reencontrar ecos de muitos autores que eu li, ou que vagamente encontrei citados algures, a quem nunca dei muita importância, ou Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 165 Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 165 16. 01. 2024 14:39:25 16. 01. 2024 14:39:25 VERBA HISPANICA XXXI • RESENHAS 166 achei mesmo que nada daquilo fazia muito sentido. Ao fim de algumas horas, tinha o livro lido! Pensei que, no momento em que acabei de ler «este livro», se tivesse de falar sobre ele, talvez falasse de leitura e de leitores. De sábios e de menos sábios. Da Grécia antiga e de Quintiliano. De poesia e de Mallarmé. Aproveitaria para citar nomes que todos reconhecemos quando um dia, por acaso ou por obrigação, descobrimos que as referências bibliográficas tinham corpo e rosto (para além do nome) – Bronckart, Maingueneau, Adam... Falaria de linguagem, textos, discursos, planos de texto. Falaria de linguística e de teorias linguísticas. De práticas textuais (recensões, comentários, resumos...), falaria de «pirâmides (necessariamente) invertidas». A lista seria infindável. Assustadoramente infindável. Porque, como alguém diria, neste livro «cruzam-se saberes», «convocam-se conhecimentos». Por onde começar, então? Um livro começa-se pelo princípio. E, logo no preâmbulo, encontramos a sua razão de ser pela voz da autora: «Na origem deste projeto esteve a vontade de disponibilizar alguns materiais dispersos que, convergindo no tratamento de questões sobre texto em Linguística, pudessem ser úteis a diferentes públicos – nomeadamente, a estudantes de diferentes ciclos, em Ciências da Linguagem, Linguística ou afins, e a docentes de Português, do Ensino Secundário e do Ensino Básico. Comecei por imaginar um livro que se pudesse ler de trás para a frente ou de frente para trás, consoante o interesse pelos tópicos abordados, o respetivo grau de dificuldade, o carácter mais teórico ou mais prático.» E quando chegamos ao fim, mesmo no último parágrafo, ouvimos (?), lemos: «[...] Por aqui passou o nosso percurso: preocupado com a natureza verbal do objeto literário, ocupou-se em articular contributos e categorias da área da literatura e da área da linguística (do texto e do discurso). Esperamos ter contribuído para este diálogo sempre desafiador e, sempre, talvez, a retomar e a desenvolver.» É assim que começa e acaba o livro de Antónia Coutinho, professora de Linguística do Texto na Universidade Nova de Lisboa. Para nos provocar, a autora escolheu um título que são dois: Texto EM Linguística ou Texto E Linguística. E quer num caso, quer no outro, poderemos fazer um debate – ou mesmo um congresso. De certeza que Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 166 Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 166 16. 01. 2024 14:39:25 16. 01. 2024 14:39:25 VERBA HISPANICA XXXI • RESENHAS 167 poderemos fazer várias teses de doutoramento: sobre texto enquanto área da linguística, e sobre novas perspetivas de olhar para a linguística em que o texto é o centro organizador; sobre o «e» e todos os valores que foram descritos em várias gramáticas, e sobre o «em», relator (dizem alguns) e conetor (dizem outros), marca desencadeadora de espaço e de tempo (digo eu). E afinal qual é o título que devemos usar para referir este livro? A resposta pode ser rápida: depende do que se procura e do modo como se procura: «de trás para a frente, ou da frente para trás». Por isso, logo no título, somos nós, os seus leitores, que nos apropriamos do que quisermos. Temos espaço para discutir quando discordamos, temos suporte para podermos citar quando precisarmos encontrar uma «autoridade» nestes domínios. De forma algo superficial, poderei dizer que, acima de tudo, temos um LIVRO, objeto que admiramos enquanto tal. E essa admiração começa também pela capa excelente que parte de uma fotografia magnífica, porta de entrada para uma sucessividade de páginas e espaços (em branco) em que vamos descobrindo como bem ler um bom livro escrito em português. Formalmente, está organizado em quatro partes: Introduções (é assim mesmo!), Práticas textuais em contexto académico-científico; Teoria do texto; Cruzamentos: linguística, literatura e didática. Estas estão subdivididas em capítulos que se ligam entre si, mas que podem afirmar-se autonomamente. Possivelmente é esta inter-relação entre interdependência e autonomia que permite que haja uma leitura que se desenvolve ao ritmo da respiração: a sucessividade de capítulos é definida por momentos de abertura e de fechamento, permitindo ao leitor ganhar fôlego para chegar ao fim do que se propôs ler, ou voltar ao princípio, por outro caminho, para encontrar outra coisa (ou a mesma, mas vista de outra perspetiva). É, talvez, graças a este duplo movimento de abertura e de fechamento que a autora nos propõe que o livro de que vos falo é um livro que se sente, no verdadeiro significado do termo. E tudo isto está escrito com rigor, precisão e saber. O livro de Antónia Coutinho é um livro técnica e cientificamente sólido, um livro muito bem escrito, um livro em que houve o cuidado de inserir traduções em português de muitas citações, para que o livro possa ser lido pelo leitor-modelo (no Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 167 Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 167 16. 01. 2024 14:39:25 16. 01. 2024 14:39:25 VERBA HISPANICA XXXI • RESENHAS 168 sentido de Umberto Eco) que a autora escolheu, mas sobretudo para garantir uma fluência de leitura. Acima de tudo, este é um livro que cumpre o prometido: é um livro de linguística. Diria, talvez, que é um livro necessário para quem trabalha em linguística, em qualquer área – mas, sobretudo, quando se tem como objeto o texto, garantindo-se como se pode falar com segurança, rigor e precisão deste objeto. Sobre isto poderão sempre ler (com imenso prazer) o prefácio de Jean-Paul Bronckart. Este prefácio conduz-nos com mestria pela discussão teórica que importa. Ensina-nos também a ler este livro. Este prefácio é o primeiro passo para que possamos pensar como podemos estudar linguística de uma forma diferente. Voltando ao princípio: se calhar, não apresentei o livro «Texto e(m) Linguística» de forma esperada e tradicional, mas apresentei apenas a minha leitura (ou leituras) que fui fazendo em diferentes momentos. Se calhar, mais não fiz do que encontrar o que procurava. Manguel, num dos seus livros publicado em Portugal, intitulado «Monstros Fabulosos – Drácula, Alice, Super-Homem e outros amigos literários» (Lisboa, Tinta da China), abre o livro com uma citação da «Alice no País das Maravilhas»: «– Sabes, eu também pensava que os unicórnios eram monstros fabulosos! Nunca tinha visto um vivo! – Bem agora já nos vimos um ao outro. Se acreditares em mim, eu acredito em ti. De acordo? ...]» Isto é mais ou menos o que me acontece sempre que leio de novo o livro de Antónia Coutinho. Continuo, claro, a não acreditar em unicórnios. Mas acredito que se podem fazer excelentes livros de / em linguística. E, por fim, permitam-me a ousadia em contrariar Fernando Pessoa: ler este livro, acreditem, é um verdadeiro prazer. Clara Nunes Correia CLUNL | NOVA FCSH _ Lisboa Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 168 Verba Hispanica 2023_FINAL.indd 168 16. 01. 2024 14:39:25 16. 01. 2024 14:39:25