O MUNDO LUSÓFONO NAS LÍNGUAS E LITERATURAS ROMÂNICAS Ljubljana, 2023 VERBA HISPANICA XXXI O mundo lusófono nas línguas e literaturas românicas Anuario de la Sección de Estudios Hispánicos Facultad de Filosofía y Letras, Universidad de Ljubljana, Eslovenia Editado por / Založila: Editorial de la Universidad de Ljubljana / Založba Univerze v Ljubljani Para la editorial / Za založbo: Gregor Majdic, rector de la Universidad de Ljubljana / Gregor Majdic, rektor Univerze v Ljubljani Publicado por / Izdala: Editorial Científica de la Facultad de Filosofía y Letras de la Universidad de Ljubljana / Znanstvena založba Filozofske fakultete Univerze v Ljubljani Para la publicación / Za izdajatelja: Mojca Schlamberger Brezar, decana de la Facultad de Filosofía y Letras / Mojca Schlamberger Brezar, dekanja Filozofske fakultete Directoras / Glavni in odgovorni urednici: Branka Kalenic Ramšak, Jasmina Markic Este número XXXI editado por/To številko uredili: Blažka Müller, Mojca Medvedšek Consejo de redacción / Uredniški odbor: Ignac Fock, Marija Uršula Geršak, Mojca Medvedšek, Blažka Müller, Barbara Pihler Ciglic, Alejandro Rodríguez Díaz del Real, Gemma Santiago Alonso, Maja Šabec, Marjana Šifrar Kalan, Andreja Trenc, Vita Veselko Consejo de redacción internacional / Mednarodni uredniški odbor: Tomás Albaladejo (Universidad Autónoma de Madrid), Enrique Baena Peña (Universidad de Málaga), Clara Nunes Correia (Universidade Nova de Lisboa), Elena de Miguel (Universidad Autónoma de Madrid), Matías Escalera Cordero (Alcalá de Henares), Humberto Hernández (Universidad de La Laguna), Adriana Mancini (Universidad de Buenos Aires), Antonio Pamies Bertrán (Universidad de Granada), Andjelka Pejovic (Universidad de Belgrado), Alfredo Saldaña (Universidad de Zaragoza), Alicia San Mateo Valdehíta (UNED Madrid), Jasna Stojanovic (Universidad de Belgrado) Consejo científico de este número / Znanstveni svet te številke: Jasmina Markic, Blažka Müller, Mojca Medvedšek (Univerza v Ljubljani), Majda Bojic, Nina Lanovic, Daliborka Saric, (Sveucilište v Zagrebu), Clara Nunes Correia (Universidade Nova, Lisboa), Ângela Carvalho, (Universidade do Porto), Cláudia Maria de Souza Amorim, Éverton Barbosa Correia (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), Katerina Ritterová (Univerzita Palackého v Olomouci). Secretaria de la redacción / Tajnica uredništva: Marjeta Prelesnik Drozg Concepto de diseño / Oblikovna zasnova: Lavoslava Bencic Composición / Postavitev: Eva Gašperic Tipografía / Tipografija: Espinosa Nova, Myriad Pro Revisión lingüística / Jezikovni pregled: Rok Janežic, Jason Blake, Joseph Tackes Impreso por / Tisk: Birografika Bori d. o. o., Ljubljana Tirada / Naklada: 150 ISSN 0353-9660 Precio / Cena: 10 EUR Dirección / Naslov uredništva: Katedre za španski jezik, špansko in hispanoameriško književnost in didaktiko španskega jezika Katedra za portugalski jezik in književnost Oddelek za romanske jezike in književnosti Filozofska fakulteta Univerze v Ljubljani Aškerceva 2, SI–1000 Ljubljana, Slovenija Teléfono / Telefon: +386 1 241 1456 E-mail: verba.hispanica@ff.uni-lj.si https://journals.uni-lj.si/VerbaHispanica Esta obra está bajo licencia de Creative Commons Reconocimiento-Compartir igual 4.0 Inter­nacional./ To delo je ponujeno pod licenco Creative Commons Priznanje avtorstva-Deljenje pod enakimi pogoji 4.0 Mednarodna licenca. Número patrocinado por el Departamento de Lenguas y Literaturas Romances, la Agencia de Investigación de la República de Eslovenia y la Embajada de España en Ljubljana. / Revija izhaja s financno podporo Oddelka za romanske jezike in književnosti, Javne agencije za raziskovalno dejavnost Republike Slovenije in Španskega veleposlaništva v Ljubljani. Índice Mojca Medvedšek e Blažka Müller O mundo lusófono nas línguas e literaturas românicas . . . . . . . . . . . . . . . . . 7 ARTÍCULOS Éverton Barbosa Correia Duas águas como divisa histórica, cultural e literária . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11 Mafalda Sofia Borges Soares As feições do feminino em português e em francês: análise da receção e da tradução francesas d’A Sibila de Agustina Bessa-Luís . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25 Edvin Derviševic Algumas considerações sobre o valor condicional em português europeu e esloveno e os possíveis desafios na tradução . . . . . . . . . . . . . . . 43 y Beatriz OliveiraSamuel Figueira-Cardoso Expressões dêiticas em textos jornalísticos sobre a covid-19 em português europeu e português do Brasil . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 57 Clara Nunes Correia Era uma vez... o imperfeito em Português Europeu Contemporâneo . . . . . . . 81 Bálint Urbán Uma estética de força – os Apontamentos para uma estética não aristotélica e o pensamento estético de Fernando Pessoa . . . . . . . . . . . . . . 97 Cláudia Maria de Souza Amorim Descolonizar a terra, o corpo, a palavra: uma leitura de Caderno de memórias coloniais, de Isabela Figueiredo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .119 Ana Zwitter Vitez The Lusophone World in French Political and Internet Discourse . . . . . . . . . 131 RESENHAS Eduardo Martínez de Pisón . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 153Atlas literario de la Tierra: Paisajes de palabras Teresa S. Ferreira, Inês Cardoso, Silvia Melo-Pfeifer Gramática de Português - Língua Não Materna. Níveis A1 e A2 . . . . . . . . . 157. E. Buzaglo Paiva Raposo, M. Fernanda Bacelar do Nascimento, M. Antónia Coelho da Mota, L. Segura, A. Mendes e Amália Andrade (org.) (2020) . . . 161Gramática do Português, Vol. III. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. Coutinho, Antónia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 165Texto e(m) Linguística Paulo Freire . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 169Pedagogika zatiranih (Pedagogia do Oprimido) INFORMACIONES PARA AUTORES/AS / INFORMAÇÕES PARA AUTORES . . . . . 175 O presente número da Verba Hispanica é dedicado à implementação do Curso da Licenciatura em Língua e Literaturas Portuguesas na Faculdade de Letras e Filosofia da Universidade de Ljubljana, Eslovénia, no ano 2022 O mundo lusófono nas línguas e literaturas românicas A Licenciatura em Língua e Literatura Portuguesas, inaugurada no ano letivo 2022/23 na Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Ljubljana, integra-se, graças à sua recente incorporação, em todos os outros programas universitários do Departamento das Línguas e Literaturas Românicas e está, como tal, ligada a outras áreas das Letras da mesma faculdade. O lançamento da Licenciatura em Língua e Literatura Portuguesas, iniciando uma nova fase da promoção da lusofonia na Eslovénia, não só reconhece o valor do português como língua global, utilizada por 270 milhões de falantes em todo o mundo e nos mais diferentes domínios, como também responde formalmente ao crescente interesse por esta língua, a sua literatura e a cultura que vão ganhando visibilidade na Eslovénia também ao nível académico, entre outros. O número temático da revista Verba Hispanica é dedicado à língua portuguesa, à literatura em português e ao contacto entre as línguas românicas e as suas literaturas com o português, no sentido mais amplo. A ideia para tal número temático da revista foi motivada pela introdução da Licenciatura, privilegiando o desejo de que esta, no campo das Filologias Românicas, dê origem à nova área de investigação científica na Eslovénia e no seu contexto académico, promovendo reflexões inovadoras sobre a complexidade linguística e intercultural do mundo lusófono. Organizar um número temático relacionado com a área da língua e literatura lusófona foi, sem dúvida alguma, um desafio para as editoras deste volume. Felizmente, este desafio tornou-se particularmente interessante, dado que se pretendia que a revista fosse capaz de retratar e evidenciar as pretensões científicas que recentemente se têm realizado dentro das recém-estabelecidas cátedras da Língua e Literaturas em Português na Faculdade de Letras e Filosofia da Universidade de Ljubljana. Agora, após todos os esforços interessantíssimos, este número aqui está a desafiar a nossa leitura, as nossas investigações e os nossos projetos vindouros. Num primeiro lugar, merece ser mencionado que o presente volume inclui oito artigos, sendo que alguns deles têm por base as comunicações apresentadas no colóquio O Mundo Lusófono nas Línguas e Literaturas Românicas, realizado entre 4 e 6 de outubro de 2022 e organizado pela comissão organizadora da Faculdade de Letras e Filosofia (Mojca Medvedšek e Blažka Müller). Estes artigos refletem, de forma exemplar, as reflexões inovadoras sobre a complexidade linguística e intercultural do mundo lusófono, permitindo evidenciar a abertura a áreas que, sendo diferentes, podem complementar-se. A presente obra encontra-se dividida em duas partes; a primeira acolhe oito artigos que abrangem temas diferentes; a segunda engloba as resenhas das várias obras relevantes para a presença da lusofonia e do espanhol nos meios académicos. Clara Nunes Correia, com o artigo «Era uma vez... o imperfeito em Português Europeu Contemporâneo», trata o inter-relacionamento das propriedades temporais e aspetuais que caracterizam as diferentes sequências linguísticas marcadas com o imperfeito do indicativo. O estudo do imperfeito, de acordo com a autora, tomando em consideração os valores estritamente temporais e aspetuais, obriga a ativar um conjunto de suportes que parecem ser importantes para a compreensão dos seus diferentes valores. O artigo de Ana Zwitter Vitez, «O mundo lusófono no discurso político e na internet franceses», tem como objetivo examinar os termos relacionados ao conceito de lusofonia no discurso político francês e na internet para melhor compreender o papel do mundo lusófono na sociedade francófona. A autora realizou uma análise gramatical e contextual das palavras Portugal, Brésil e lusophonie (e os seus adjetivos), tal como são utilizadas no corpus Europarl e nos corpora FrTenTen. Apresentam o estudo empírico «Expressões dêiticas em textos jornalísticos sobre a covid-19 em português europeu e português do Brasil» Beatriz Oliveira e Samuel Figueira-Cardoso. Mediante uma análise quantitativa ancorada por uma reflexão qualitativa, o estudo dos autores descreve e analisa, paralelamente, o uso, frequência e função textual-discursiva de expressões dêiticas em português europeu e português do Brasil em textos jornalísticos sobre a pandemia de covid-19. Para isso, como afirmam os autores, foi recolhido um corpus constituído por textos escritos, em particular textos jornalísticos, retirados de jornais online de grande circulação em Portugal e no Brasil – o Expresso e a plataforma G1, respetivamente. Edvin Derviševic, em «Algumas considerações sobre o valor condicional em português europeu e esloveno e os possíveis desafios na tradução», dedica-se ao tema do condicional enquanto modo e tempo em português europeu e esloveno. O objetivo do estudo, segundo o autor, é destacar os contextos e valores do condicional e, por meio de uma análise contrastiva, exemplificar a variedade e a complexidade de construções gramaticais. O contributo do artigo será relevante, como afirma o autor, para futuras investigações na área da tradução, uma vez que levanta possíveis questões e desafios que podem surgir na passagem de uma língua para outra, tal como na área da análise contrastiva entre as duas línguas no âmbito universitário esloveno. No domínio da literatura, Mafalda Sofia Borges Soares, no artigo «As feições do feminino em português e em francês» mostra uma das facetas da receção d’A Sibila em França através de uma comparação entre o original português e a respetiva tradução francesa. O texto trata de mostrar que os idiomas são portadores de sentidos e traumas históricos – a língua francesa não sofreu, no século XX, o cerceamento a que esteve sujeito o português na sua variante europeia durante a ditadura salazarista, período em que Agustina escreveu esta sua obra-prima. Bálint Urbán, no texto «Uma estética de força – os Apontamentos para uma estética não aristotélica e o pensamento estético de Fernando Pessoa estuda a teoria estética de Fernando Pessoa», no primeiro lugar situa o texto no corpus pessoano de reflexões teóricas sobre a arte, para depois apresentar como é que o curto ensaio entra em contato tanto com o ideal estético de Nietzsche, como com a estética de choque das vanguardas. Cláudia Maria de Souza Amorim analisa a narrativa Caderno de memórias coloniais, de Isabela Figueiredo, observando a corporeidade como eixo central da narrativa no artigo «Descolonizar a terra, o corpo, a palavra: uma leitura de Caderno de memórias coloniais», de Isabela Figueiredo. No domínio da literatura brasileira, Éverton Barbosa Correia, no artigo «Duas águas como divisa histórica, cultural e literária», dá atenção ao volume Duas águas, que reúne a lavra autoral acumulada de João Cabral de Melo Neto, inserindo-se em momento profícuo da cultura brasileira em geral e da literatura brasileira em particular, e explicando como o poeta se irmana ao conjunto de autores que melhor representa a literatura brasileira, sem deixar de interferir na tradição de língua portuguesa mais remota. Voltando ao início desta introdução, esperamos que esta coletânea contribua para prolongar o debate, iniciado durante o colóquio O Mundo Lusófono nas Línguas e Literaturas Românicas, em torno das disciplinas que orbitam a língua portuguesa e o seu imenso potencial. Acreditamos que tais disciplinas são hoje um recurso imprescindível para quem se encontra num mundo em que milhões de pessoas possuem o português como língua nativa e muitas outras o usam como língua de trabalho, de negócios, de recreio ou de estudo. Em abono da justiça, importa dizer que este volume não teria sido possível sem o empenho profissional de uma série de pessoas concretas e entidades institucionais. Assim, à comissão científica constituída para este número que respondeu ao nosso convite, pela disponibilidade manifestada e pelo trabalho realizado, o nosso sincero agradecimento. Finalmente, as editoras deste volume agradecem o empenho e dedicação de todos os membros da equipa, em especial a Jasmina Markic e Clara Nunes Correia que, desde sempre, acreditam em nós e no futuro do português na Eslovénia. Mojca Medvedšek e Blažka Müller Éverton Barbosa Correia DOI: 10.4312/vh.31.1.11-24 Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Duas águas como divisa histórica, cultural e literária Palavras-chave: cultura brasileira, poesia brasileira moderna, crítica textual, editoração, João Cabral de Melo Neto Publicado em 1956, o volume Duas águas reúne a lavra autoral acumulada até ali e se insere em momento profícuo da cultura brasileira em geral e da literatura brasileira em particular, pelo repertório que o rodeia bem como pela performance de escrita ora registrada. Mediante tal publicação, João Cabral de Melo Neto se irmana ao conjunto de autores que melhor representa a literatura brasileira, sem deixar de interferir na tradição de língua portuguesa mais remota, inclusive pelo acionamento de referências temáticas e formais da Espanha, que passa a ser fonte para sua expressão dali em diante. A dualidade inscrita no título se estende da grafia da obra para sua ampla compreensão, ao mesmo tempo nativista e cosmopolita, bem como se grava nos aspectos gráficos mais evidentes dos poemas, a exemplo da estrofação e dos títulos dos poemas. Tais aspectos foram observados notadamente na reedição dos livros Pedra do Sono (1942) e O rio ou relação da viagem que faz o Capibaribe de sua nascente à cidade do Recife (1954), ambos reeditados no mesmo volume Duas águas, ora apreciado como traço de autoria e de condicionamento cultural. A segunda metade do século XX se abre ao Brasil de modo diferenciado diante do novo mundo tal como estava cindido, não só pela falta de um equilíbrio exato ou conveniente entre os dois blocos que se formaram sob a designação ampla de capitalistas e de socialistas, mas porque já antes não soubera se colocar oportunamente na guerra recém-finalizada, na qual iniciou alinhado aos países do Eixo e finalizou signatário dos Aliados, não sem prejuízo nem repercussões. Sob a perspectiva da política externa, implicou uma subordinação maior aos Estados Unidos, o que já vinha se desenhando desde fins to oitocentos. Em contrapartida, a política interna logo se precipitou em suicídio de um presidente (1954) e, na década seguinte, em golpe de estado (1964). A efervescência política encontraria recurso na cultura em várias frentes: a bossa nova, na música; a premiação no Festival de Cannes para Nelson Pereira dos Santos (1964) e Glauber Rocha (1968); os Teatro de Arena e Teatro Oficina – ambos os grupos foram fundados na década de 1950; Portinari exibindo seu mural Guerra e paz na sede da Organização das Nações Unidas (ONU) em Nova York em 1956 – no mesmo ano da publicação, pela José Olympio Editora, de Duas águas, obra de João Cabral de Melo Neto que marcou época no Rio de Janeiro. O acúmulo literário sedimentado até ali no contexto brasileiro não deixava de impressionar, fosse pelo fenômeno de comunicação atingido por José Lins de Rêgo (pelo interior do Brasil) ou por Jorge Amado (no exterior), a projeção internacional de Gilberto Freyre – também colaborador da ONU – ou o surgimento da dramaturgia de Nelson Rodrigues e de Ariano Suassuna; tudo levava a crer que houvesse um diferencial na cultura brasileira, que se balançava entre a afirmação nacional e o diálogo cosmopolita, notadamente entre o Brasil e a Ibéria. Não podia ser diferente na poesia, terreno em que podemos radicar a expressão de Manuel Bandeira e de Cecília Meireles – fortemente vincadas nas tradições lusitanas – ou na expressão multifacetada de Murilo Mendes com seu livro Tempo espanhol (1959), com tematização e abordagem marcadamente ibéricas. Mas é com João Cabral de Melo Neto que tal ambivalência americana e europeia, brasileira e hispânica, melhor se desenvolve, e o marco temporal é Duas águas (1956), momento primeiro em que sua expressão ganha corpo sob viés da tradição espanhola. Na trajetória individual do autor, o livro Duas águas celebra pouco mais de uma década de publicação e pouco menos de uma dezena de livros. A notação quase assimétrica revela os percalços pouco nítidos e, às vezes, contraditórios da mesma autoria que se lançara como autor de livro publicado em 1942, quando foi recebido generosamente pelo primaz da crítica brasileira em artigo, cujo título se faz revelador, Poesia ao Norte (Candido, 2002: 135-142). Depois disso, seria notabilizado inclusive pela crítica espanhola, que cunhou um termo que passou a ser designativo da obra cabralina dali por diante pelo epíteto de “tríptico do Capibaribe”, para identificar as três obras publicadas entre 1950 e 1956, quais sejam, O cão sem plumas (1950), O rio ou relação que faz o Capibaribe de sua nascente à cidade do Recife (1954) e Morte e vida severina: auto de natal pernambucano (1956). Por meio da tradução para o espanhol de tais obras, configurou-se um olhar crítico segundo o qual a matéria convertida em paisagem passa a ser indicativa de um estilo ou de uma expressão autoral, conforme o escopo crítico de Angel Crespo e Pilar Bedate (1962: 5-69) na apresentação de sua tradução do poeta brasileiro, mormente pelo roteiro de leitura que se esboça ao longo do enredo de Morte e vida severina, que é indiscutivelmente a obra mais famosa do autor pernambucano. Publicado em Duas águas como inédito, Morte e vida severina conferiu tamanha notoriedade ao volume que todos os demais livros reunidos naquela coletânea empalideceram como atributos da expressão autoral. Em meio aos nove títulos ali coligidos, Morte e vida severina adquiriu prevalência na própria distribuição dos textos divididos – de acordo com o título – em «duas águas»: a dos poemas a serem lidos em voz baixa e a dos poemas para leitura em voz alta. Entre esses, o auto de natal pernambucano foi grafado, primeiramente, na ordem de publicação, que obedecia ao critério respectivo; a saber, dadas as distinções de «água» a «água». O ineditismo daquele livro lhe conferiu primazia na ordem de publicação, em que foi estampado de início, o que ampliou ainda mais o seu alcance de leitura, não só no âmbito da publicação em si, mas também na planura da obra cabralina como um todo, devido à repercussão que a montagem da peça teve no Brasil e na França, tendo sido premiada nos respectivos festivais de que participou. Então, se o próprio livro Morte e vida severina tem esse caráter ambivalente e dual, de fazer com que tradutores e críticos espanhóis vejam aquela obra sob a ótica do nativismo autoral, por outro lado permitiu a consagração literária de um autor cuja trajetória de vida e de escrita não tinha como deixar de ser cosmopolita e, a partir de então, passou a ser vista assim também pelos seus contemporâneos e conterrâneos. Em boa medida pela repercussão da publicação e das montagens de Morte e vida severina – que passa a funcionar dali em diante como uma espécie de postal da obra cabralina –, mas também porque naquela coletânea de livros intitulada Duas águas constava um título que consagrava tal dualidade composta entre o nativismo e o cosmopolitismo. Refiro-me ao livro Paisagens com figuras, que reúne pela primeira vez poemas cuja tematização contempla o universo espanhol, sem descurar da geografia natal do autor. Curiosamente, esse título ficou sombreado sobretudo pelo sucesso de crítica e de público atingido pelo seu livro contíguo que é Morte e vida severina, a despeito de ambos terem sido publicados como inéditos no mesmo volume. Como se vê, o ineditismo constante no volume Duas águas teve dois pesos e duas medidas, uma para a recepção autoral junto ao público especializado e outra para o público em geral, sem desconsiderar medidas intermediárias entre uma e outra, haja vista que também ali foi publicado como inédito o livro Uma faca só lâmina, constando também na primeira «água», que reunia aqueles poemas a serem lidos em voz baixa. Não tendo sido antes publicado em livro, figurou ali como inédito, muito embora já tivesse circulado em periódicos no Rio de Janeiro. O dado curioso é que se Uma faca só lâmina não teve a notoriedade de Morte e vida severina, também não foi obscurecido pela recepção imediata, tal como havia acontecido com Paisagens com figuras, que sinalizou algo que viria a se tornar o traço estilístico por excelência de João Cabral de Melo Neto, que dali em diante nunca mais publicou sem fazer menção ao universo hispânico, nem em tema nem em forma. A pretexto de melhor designar a publicação, cumpre que se qualifique devidamente aquelas vertentes autorais que estavam indicadas sob a divisa de Duas águas, pois é variável a significação que se lhe associa – de livro a livro, de década a década –, tal como tinha sido feita a leitura daquele poeta brasileiro com forte influência em outros estilos poéticos no Brasil e fora do Brasil. Portanto, não adianta radicar o estilo individual a um momento particular da autoria sem a correspondente perpetivação histórica do percurso expressional. Com isso, o que se atribui à vontade autoral nem sempre é compatível com sua propositura que se modifica coerentemente ao longo do tempo e muito menos com a realização de seus versos no branco da página. Em vez disso, no mais das vezes, o que se lhe atribui como traço distintivo é resultante de uma abstração, que não condiz com a realização gráfica que se depreende de sua escritura. A título de ilustração, vale ressaltar o que se decalca da orelha da publicação como uma tentativa válida de predicação que parte da voz do autor a fim de designar as tais Duas águas como sendo um atributo distintivo daquela escritura, que ficou ali grafada, mas não necessariamente como a indicação de leitura que melhor vigorou ou que ainda hoje vigora, qual índice de sua compreensão, como se segue: Duas águas – feliz sugestão de Aníbal Machado para o título do volume – correspondem não a poemas herméticos e a poe­mas claros, não a poemas regionalistas e poemas universalistas, tampouco a poemas tensos e poemas distensos formalmente, pois que, a rigor, tais oposições não existem radicalmente na produção do autor de «O engenheiro». Duas águas querem corresponder a duas intenções do autor e – decorrentemente – a duas maneiras de apreensão por parte do leitor ou ouvin­te: de um lado, poemas para serem lidos em silêncio, numa comunicação a dois, poemas cujo aprofundamento temático quase sempre concentrado exige mais do que leitura, releitu­ra; de outro lado, poemas para auditório, numa comunicação múltipla, poemas que, menos que lidos, podem ser ouvidos. Noutros termos, o poeta alterna o esforço de melhor expressão com o de melhor comunicação. Notará o leitor ou ouvinte que este volume, por força de sua disposição em «duas águas», não dá a obra do poeta na ordem cronológica de criação. Além disso, em cada «água», a crono­logia vai do presente para o passado, desobedecendo às praxes consagradas. É que, em verdade, esta será, provavelmente, a or­dem lógica e psicológica, pois que o mais atual é mais presente e mais vívido – o que, sem dúvida, facilita o acesso à obra. (Melo Neto, 1956). Malgrado o critério retrospectivo tenha sido anunciado como um expediente da publicação, para melhor atender e atingir o leitor da época, causa alguma espécie que o livro de abertura daquela «água» a ser lida em silêncio seja Uma faca só lâmina, e não Paisagens com figuras, que era efetivamente inédito tanto em brochura quanto em periódicos, diversamente a seu livro gêmeo naquela publicação, que já havia circulado em jornais, como já se disse. O efeito editorial da prevalência de um sobre o outro vem a ser indicativo do apelo para se apanhar primeiramente o leitor por uma «água» ou por outra. Para a «água» relativa à voz alta, Morte e vida severina; para a «água» relativa à leitura silenciosa, Uma faca só lâmina. Acontece que, segundo a divisão, o livro que devia constar no início da «água» relativa à voz baixa ou silenciosa seria o Paisagens com figuras, porquanto efetivamente inédito, e não Uma faca só lâmina, conforme a impressão do volume registra. A despeito de tal inversão gráfica, não deixa de ser curioso que o livro Paisagens com figuras, apesar de ter sido secundarizado na publicação original, foi aquele que veio a lograr maior êxito como tendência expressional a ser atribuída ao autor, embora tal tendência não estivesse assinalada naquele momento. Por paradoxal que pareça, pontual e regularmente, foi aquela tendência a que veio compor a identidade autoral de João Cabral de Melo Neto, a um só tempo hispânica e brasileira, sevilhana e pernambucana. Se tais observações sobre os livros inéditos de João Cabral de Melo apontam para o efeito inovador que sua obra suscita no contexto da literatura de língua portuguesa já naquele momento, é preciso asseverar o caráter transformador de sua escrita, pautada pela superação de livro a livro, desde o primeiro momento de sua aparição pública (Nunes, 2007). Sendo, pois, um distintivo da autoria, cumpre pontuar constante superação que o poeta impôs a si mesmo, obra a obra, como uma tarefa de criação que ocupa lugar privilegiado na expressão de língua portuguesa, que se estende lateralmente em relação a outros domínios, a exemplo do ensaio Joan Miró (2018), publicado junto a seis gravuras do pintor catalão. Sob a perspectiva biográfica, cumpre lembrar, ainda, que em virtude do ofício diplomático que exercia, o poeta foi afastado de suas funções públicas, devido à acusação infundada de que conspirava a favor de um golpe de estado (Marques, 2021). Até que fossem desmentidas as acusações, ficou o poeta e diplomata sem recebimento de salário por quase dois anos, entre 1952 e 1954. Transladado do consulado de Londres para o Rio de Janeiro, teve de se desfazer de sua prensa manual, mediante a qual já havia publicado A psicologia da composição, com a Fábula de Anfion e Antiode (1947) e O cão sem plumas (1950), acumulando as funções de autor e editor de si mesmo. A cada reedição, tais obras eram emendadas no plano da estrofação e do verso, na nomeação de cada uma de suas partes e na própria disposição tipográfica, de maneira que essas duas obras já haviam sofrido alterações ou rasuras por ocasião da publicação da coletânea de livros anterior a Duas águas, intitulada Poemas reunidos (1954). Até ali, somente O rio ou relação da viagem que faz o Capibaribe de sua nascente à cidade do Recife não havia sofrido nenhuma alteração, porque foi publicado no mesmo ano e, por isso, deixou de constar naquela coleção coetânea. Em razão disso, convém destacar a importância da reedição desse livro no volume Duas águas, porque é o único que não fora reeditado até então e porque ali sofre reparos de ordem diversa, facilmente notável na grafia do verso, que se estende da sonoridade para o ritmo, com sua devida cristalização na rima ou na métrica. Mas impressiona, sobretudo, a mudança operada no nível da estrofação, porquanto altera significativa e substancialmente o curso da leitura. A observação interessa não só para demonstrar como o autor se superava de livro a livro, produzindo inovações, mas notadamente como revisava livro pouco antes publicado, que também sofria sua interferência, o que dá bem a dimensão de uma escrita em processo dinâmico, tanto pelo que superava esteticamente em relação à obra produzida no ano anterior, quanto pelo revisão ou modificação de obras antes publicadas, o que se aplica de modo preciso e pontual a Duas águas (1956) em face de O rio ou relação da viagem que faz o Capibaribe de sua nascente à cidade do Recife (1954), que é incorporado naquele volume antológico, mas já com modificações radicais. A edição princeps de O rio ou relação da viagem que faz o Capibaribe de sua nascente à cidade do Recife veio na esteira da premiação conferida pela Comissão do IV Centenário da Cidade de São Paulo, com uma encadernação inusitada para os padrões da época, tanto pelo formato pouco usual, de 18 cm de largura por 25 cm de altura, quanto pela falta de numeração nas páginas. Além disso, os versos somente vinham grafados nas páginas à direita, sem qualquer outra identificação, fosse romana ou arábica, fosse gótica ou céltica. Porém, havia a regularidade de dispor 16 versos por página, que animava a impressão sempre à direita, sem continuação na página seguinte, sempre em branco. De maneira que a paginação, se tomada pela distribuição dos versos, dava-se assim: páginas à direita, grafada com versos; páginas à esquerda, em branco. Diante de tal disposição gráfica, a leitura invariavelmente haveria de sofrer alguma desestabilização, pois o leitor teria de apreciar o curso de 16 versos e, em seguida, dispor de uma página em branco, para, logo em seguida, na mesma posição da sequência anterior, outros 16 versos se colocassem como continuidade à leitura, intercalada por uma página em branco. A notação importa para que dimensionemos qual era a experiência de leitura solicitada naquele primeiro momento de publicação mediante tal recurso gráfico, uma vez que, se o leitor quisesse lembrar de um verso impresso ao longo das páginas alternadas – entre brancas e grafadas – teria que voltar à leitura escrupulosamente de página a página, até encontrar o verso procurado, já que não podia contar com o recurso da numeração das páginas para identificar o verso. Mais ainda, uma vez achado o verso, sua identificação se daria por meio da associação ao conjunto de dezesseis versos a que se irmanava, naquela ocasião precisa de escrita. Ora, não deixa de ser especioso que apenas dois anos após tal publicação o livro O rio ou relação da viagem que faz o Capibaribe de sua nascente à cidade do Recife viesse a mudar completamente sua configuração gráfica, conforme passou a constar desde a sua reedição entre os poemas para serem lidos em voz alta, de acordo com a divisão da obra vigente em Duas águas. A partir daí, os versos do livro deixaram de ser grafados sob o agrupamento das páginas à direita, para serem grafados cursiva e sequencialmente numa página depois da outra, só que agora sob o agrupamento estrófico, de estrofe de 16 versos. Com isso, o agrupamento de 16 versos por página se converteu em agrupamento de 16 versos por estrofe, inicialmente, numa quantidade de duas estrofes por página. Portanto, numa quantidade de estrofes que se precipitavam umas sobre as outras, em páginas agora numeradas. Por óbvio, houve uma mudança substancial na experiência de leitura do livro como artefato de composição poética, pois, se antes ao longo de quatro páginas sem numeração o leitor em pauta disporia de 32 versos, de agora em diante, no curso de quatro páginas numeradas o sujeito leitor terá de se haver com a apreciação de 128 versos. Ou seja, no mesmo espaçamento de páginas, a quantidade de versos quadruplicou, o que implica uma valorização da cursividade da leitura linear em detrimento da leitura compassada, curtida e repercutida, tal como se requer na poesia. No caso da leitura de 128 versos em quatro páginas, o leitor disporá da respectiva numeração, de página a página, solicitando uma leitura similar à leitura prosaica. Em contrapartida, quando o leitor dispunha de uma quantidade de versos quatro vezes menor, no mesmo espaçamento de páginas sem numeração, a leitura teria de andar mais cuidadosamente, com maior rendimento analítico, tal como se espera do leitor de poesia. Então, se a publicação do volume Duas águas teve o mérito de projetar a expressão cabralina acima e além do contexto da literatura brasileira, também aí, por outro lado, teve o demérito de distorcer ou de deformar a expressão gráfica tal como se gravara na brochura autoral imediatamente anterior, o que se verifica pela cursividade dos versos de O rio ou relação da viagem que faz o Capibaribe de sua nascente à cidade do Recife, os quais passaram a demandar uma leitura mais acelerada. Além do mais, a reedição do livro suscita uma leitura comprimida pela visualização de uma quantidade de versos quatro vezes maior e sob a indicação esdrúxula de uma modalidade estrófica de 16 versos, inominável na língua portuguesa e até ali estranha na escrita autoral. O paradoxo dos paradoxos é que tal modalidade estrófica esdrúxula voltou a ser acionada em ocasião posterior, quando da reunião da obra cabralina em Poesias completas (1968), notadamente na reconfiguração total do livro Dois parlamentos, que até ali se compunha exclusivamente de quadras. Tendo sido publicado originalmente em Barcelona, o livro Dois parlamentos (1961) somente apareceu ao público brasileiro na antologia intitulada Terceira feira (1961), que reunia os livros Quaderna, Dois parlamentos e Serial. Com a configuração elegante de grupos de quatro quadras, o livro Dois parlamentos assim se manteve nas suas reedições em outras antologias, onde foi reproduzido na íntegra, a saber, Poemas escolhidos (1963) – publicada em Lisboa – e Antologia poética (1965) – publicada no Rio de Janeiro. Depois disso, aquele livro também passou a se constituir sob a indicação bizarra e sinistra da estrofação de 16 versos, que viera a fundir o que antes estava distribuído em grupos de quatro quadras, o que sugere algum imperativo editorial. É como se a cada vez que o autor precisasse reunir seus livros em publicação antológica, fosse posse possível acionar o expediente de fundir versos ou soldar estrofes, para se chegar à estrofação de 16 versos. Também sob o aspecto da estrofação a publicação de Duas águas se fez inovadora, à proporção que sinalizou uma modalidade estrófica esdrúxula com 16 versos, constante em poemas de Paisagens com figuras, a exemplo de «Alto do Trapuá» (Melo Neto, 1956: 50-52). Mais do que isso, aquele volume conferiu a tal modalidade estrófica o poder de ser alçada a cada vez que houver um problema estrófico que requisitar uma solução gráfica para atendimento de demandas editoriais, que devessem ser suprimidas sumariamente, conforme ficou consignado dali em diante como uma possível solução inovadora, quando, na verdade, implicava uma saída claudicante. Com isso, abriu-se o precedente para que o caráter supressivo daquela estrofação pudesse sempre ser acionado, quer num poema em particular, quer numa obra como um todo, tal como acontecera com O rio ou relação da viagem que faz o Capibaribe de sua nascente à cidade do Recife – em Duas águas – e, depois, com Dois parlamentos – conforme fixação em Poesias completas –; ambas as obras tiveram suas respectivas estruturas subordinadas à estrofação de 16 versos, sendo também sob tal aspecto o volume de Duas águas um marco. Não deixa de ser estranho que da segunda metade da década de 1960 em diante, a estrofe de 16 versos passou a comparecer pontualmente como elemento constitutivo das composições de João Cabral de Melo Neto, tal como ocorrera em A educação pela pedra (1966) e, dali por diante, a discrepância estrófica passou a ser normalizada e a bizarria perdeu seu exotismo para compor a expressão autoral do poeta, bifurcada editorialmente desde Duas águas. À guisa de balanço, o lapso existente entre a publicação de Poemas reunidos (1954) e Duas águas (1956) conferiu ao livro Pedra do sono (1942) – coligido em ambas as antologias de livros – outra dimensão, que interferiu tanto na sua configuração gráfica, quanto na consequente repercussão junto aos leitores, notadamente àqueles que não tiveram acesso à versão anterior do livro, ou ainda àqueles que, de posse de ambas as reedições, tiveram a pachorra de fazer o cotejo entre as duas. A constatação imediata é que os mesmos poemas constantes no livro Pedra do sono numa edição são identificados por algarismos romanos e, na outra, por títulos alfabéticos e cursivos, expressos na cabeça da composição, significativamente, como anúncio do texto a seguir, tal como é praxe na identificação de toda modalidade textual e também entre aqueles poemas, que desde então passaram a ser identificados assim. A notação de que houve mudança na identificação dos poemas é operativa por várias razões, porque perceptível em diversos níveis, sob múltiplos aspectos. Afora as mudanças de pontuação – que são muitas – e as ocasionais mudanças de vocabulário, a constatação incontornável é que a alteração de algarismo romano por letra cursiva confere a cada poema uma nova significação particular, cuja compreensão no corpo do livro imprime outra feição àquela reunião de poemas, que se faz variável pela sua própria apresentação do que vem a ser um mesmo poema – se identificado por um número ou por um encadeamento de letras, que, transformadas em palavras organizadas entre si, produzem sintagmas que operam não só sequencialmente naquela disposição gráfica das composições, mas interfere na significação de cada composição por si e na sua relação com as composições contíguas, cuja tonalidade deixa de ser pautada por uma linguagem retilínea e passa a ser vista de dentro para fora do texto, como deve ser lida a poesia porque exige consideração e observação em vários níveis. A esse respeito, é preciso frisar que duas composições que dispunham de dedicatórias enquanto eram identificadas por algarismo romano na edição de Poemas reunidos (1954) tiveram as tais dedicatórias convertidas em títulos das respetivas composições, quais sejam, «Homenagem a Picasso» e «A André Masson». Esses dois exemplos em que a dedicatória se converte em título do poema são contrafeitos por outros exemplos similares de composições do mesmo livro, cuja conversão de algarismos em sintagmas não passa pela dedicatória, apesar de serem portadores de dedicatória, tal como aconteceu com os poemas cujas dedicatórias são as seguintes: «A José Guimarães de Araújo», «A Jarbas Pernambucano» e «A Newton Sucupira». Esses poemas ilustram os casos em que as dedicatórias permaneceram como tais, a despeito da conversão dos títulos que passam a constar, respectivamente, sob a seguinte indicação: «Dentro da perda da memória» – primeiro verso da composição –, «Poema da desintoxicação» e «A porta» – esses dois últimos títulos dos poemas são constituídos de vocábulos que não constavam nas respetivas composições. Então, nesta série de composições em que a dedicatória permanece como tal, a mudança na identificação do poema – quando o título deixa de ser identificado por um algarismo romano –, ora é decalcado do interior do poema para compor sua cabeça – como é o caso de «Dentro da perda da memória» –, ora é canalizado para fora do poema – como é o caso de «Porta» –, sem nenhuma identificação lexical explícita que justificasse o título, que conduz o poema para fora de si. O título «Poema da desintoxicação» tem ainda um caráter ambivalente, porque, sem constar no interior da composição, exerce função catalisadora entre os outros dois exemplos supracitados, porquanto não recupera nenhuma expressão do poema propriamente, mas apela para seu caráter metalinguístico, que passa a ser o traço distintivo daquela publicação e, dali em diante, a nota dominante do livro emendado, em toda e qualquer reedição. Acresce a isso que aqueles poemas em que a dedicatória foi alçada à condição de título tratam da figura e da obra de outros artistas, que por acaso são estrangeiros, quais sejam, Pablo Picasso (pintor espanhol) e André Masson (pintor francês). A observação salta aos olhos porque aquelas dedicatórias que permaneceram como tais, sem se converterem em títulos dos poemas, homenageavam intelectuais brasileiros, mas que não eram artistas. Então, os poemas cujas dedicatórias se referiam a artistas estrangeiros tiveram as respectivas dedicatórias convertidas em títulos, ao passo que aqueles poemas que carregavam dedicatórias a intelectuais brasileiros se mantiveram como tais. O procedimento, ao mesmo tempo em que revela uma valorização do estrangeiro em relação ao brasileiro, revela também uma predileção pela arte em detrimento de outros ofícios, fosse a psicologia ou a filosofia, que identificavam os brasileiros circunstancialmente homenageados. Aliás, é preciso referir que a maioria das composições ali reunidas passou a figurar desde então nos seus títulos palavras que apontam para a metalinguagem, a exemplo de «poema», «poesia», «canção», «poeta» ou «composição» propriamente (Secchin, 2020). Além desses casos, é preciso retomar aqueles outros em que a dedicatória se converte em título e, mais ainda, quando existe a ocorrência de expressões ou palavras que aparecem ou constituem nuclearmente o título em processo. Sintomaticamente, os casos de exceção parecem se radicar nos poemas que ficaram intitulados por «Portas» ou «Janelas». De outro modo, de maneira geral, os títulos de que se impregnaram as composições estão pautados pela alusão e explicitação metalinguística, que passa a ser uma condicionante da expressão cabralina, e não só na reedição de Pedra do sono – que é o seu primeiro livro a ser publicado – mas também de todos os outros que vieram a ser reeditados depois da publicação de Duas águas, que reúne livros éditos e inéditos como um diferencial e passa a servir de parâmetro para todas as demais publicações autorais, fossem de livros isolados, fossem de livros reunidos em antologia. Por contiguidade ou por outro recurso de contaminação, o volume Duas águas confere a todos os outros livros do autor a propriedade ou a possibilidade de ser lido retrospetivamente sob a bitola ou sob a lupa da metalinguagem, sobretudo pela operação que foi feita neste ínterim editorial, de 1954 a 1956, com os títulos dos poemas de Pedra do sono, tal como passaram a figurar em Duas águas. Não deixa de ser curioso que o livro Pedra do sono seja justamente aquele que, tendo extirpado um conjunto de composições de sua edição primeira, viesse a reintegrar aquelas composições preteridas de seu corpo algo como 40 anos depois11 Os poemas preteridos de Pedra do sono a partir das reedições de Poemas reunidos (1954) e confirmado na reedição de Duas águas (1956) são os seguintes: «As amadas», «Dois estudos», «Homem falando no escuro», «A miss», «O regimento». Somente na reedição do livro Pedra do sono na Obra completa de 1994, esses poemas foram reintegrados a seu livro de origem. . Mas isso é assunto para outra circunstância. Por ora, interessa assinalar que o caráter representativo que o volume Duas águas adquire no contexto da literatura e da cultura brasileira pode, também, ser ilustrado por meio da averiguação na grafia dos poemas ali coligidos, o que se verifica tanto no âmbito da estrofação quanto da definição do título de algumas composições, sem deixar de incidir sobre a dimensão representacional da obra, seja tomada em sentido amplo ou no estrito, de sua composição e de suas reedições. Referências Candido, A. (2002): «Notas de crítica literária – poesia ao norte». Textos de intervenção. São Paulo: Duas cidades; Editora 34, 135-142. Crespo, A., Gomez Bedate, P. (1962): «Realidad y forma en la poesia de João Cabral de Melo». Revista de Cultura Brasileña, v. 8, 5-69. Marques, I. (2021): João Cabral de Melo Neto: uma biografia. São Paulo: Todavia. Melo Neto, J. C. (1950): O cão sem plumas. Barcelona: O livro inconsútil. Melo Neto, J. C. (1954a): O rio ou relação da viagem que faz o Capibaribe de sua nascente à cidade do Recife. São Paulo: Comissão do IV centenário da cidade de São Paulo. Melo Neto, J. C. (1954b): Poemas reunidos. Rio de Janeiro: Orfeu. Melo Neto, J. C. (1956): Duas águas. Rio de Janeiro: José Olympio Editora. Melo Neto, J. C. (1960): Quaderna. Lisboa: Guimarães Editores. Melo Neto, J. C. (1961): Terceira feira. Rio de Janeiro: Editora do Autor. Melo Neto, J. C. (1963): Poemas escolhidos. Lisboa: Portugália Editora. Melo Neto, J. C. (1965): Antologia poética. Rio de Janeiro: Editora do Autor. Melo Neto, J. C. (1966): A educação pela pedra. Rio de Janeiro: Editora do Autor. Melo Neto, J. C. (1968): Poesias completas: 1942-1965. Rio de Janeiro: Sabiá. Melo Neto, J. C. (1994): Obra completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar. Melo Neto, J. C. (2018): Joan Miró. Rio de Janeiro: Verso Brasil Editora. Melo Neto, J. C. (2020): Poesia completa. Rio de Janeiro: Alfaguara. Nunes, B. (2007): João Cabral: a máquina do poema. Brasília: Editora da Universidade de Brasília. Secchin, A. C. (2020): João Cabral de ponta a ponta. Recife: CEPE. Duas águas as a historical, cultural and literary motto Keywords: Brazilian culture, modern Brazilian poetry, textual criticism, publishing, João Cabral de Melo Neto Published in 1956, the volume Duas águas brings together João Cabral de Melo Neto’s work up to that point and is part of a fruitful moment in Brazilian culture in general and Brazilian literature in particular, due to the repertoire that surrounds it as well as the writing performance recorded within. Through this publication, the author joined the group of authors that best represents Brazilian literature, without ceasing to engage with the more remote Portuguese language tradition, including by activating thematic and formal references from Spain, which becomes a source for its expression from then on. The duality inscribed in the title extends from the work’s spelling to its broad understanding, at once nativist and cosmopolitan, as well as being engraved in the most evident graphic aspects of the poems, such as the stanza and the poems’ titles. Such aspects were notably observed in the subsequent editions of the books Pedra do Sono (1942) and O rio ou relação da viagem que faz o Capibaribe de sua nascente à cidade do Recife (1954), both re-edited in the same volume Duas águas, now appreciated as a trace of authorship and cultural conditioning. Duas águas kot zgodovinski in kulturni literarni moto Kljucne besede: João Cabral de Melo Neto, brazilska kultura, moderna brazilska poezija, besedilna kritika, založništvo Zbirka Duas águas, ki je izšla leta 1956, združuje do tedaj zbrano avtorsko delo tega avtorja in je zaradi opusa, ki jo obkroža, in pisateljskega dela, ki je vanj zapisano, del plodnega obdobja brazilske kulture na splošno in brazilske literature. S to knjigo se João Cabral de Melo Neto pridružuje skupini avtorjev, ki najbolje predstavljajo brazilsko književnost, ne da bi prenehal posegati v oddaljeno tradicijo portugalskega jezika, tudi z aktiviranjem tematskih in formalnih referenc iz Španije, ki od takrat postane vir njegovega izražanja. Dvojnost, zapisana v naslovu, se razteza od crkovanja dela do njegovega širokega razumevanja, ki je hkrati nativisticno in kozmopolitsko, vtisnjena pa je tudi v najocitnejše graficne vidike pesmi, kot so verzi in naslovi pesmi. Takšni vidiki so bili opazni zlasti pri ponovni izdaji knjig Pedra do Sono (1942) in O rio ou relação da viagem que faz o Capibaribe de sua nascente à cidade do Recife (1954), ki sta bili ponovno izdani v zbirki Duas águas ter ju lahko zdaj prepoznamo kot pomembno sled avtorstva in kulturne pogojenosti. Éverton Barbosa Correia Éverton Barbosa Correia é professor de Literatura Brasileira na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), onde atua notadamente com poesia brasileira moderna e gêneros híbridos. Publicou recentemente o livro Joaquim por João: Cardozo na poesia de Cabral (2022) e João Cabral de Melo Neto em 20 quadros (2023), bem como co-organizou a coletânea O meu canto é de sol: Joaquim Cardozo pela crítica literária contemporânea (2022). Endereço: Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Rua São Francisco Xavier, 524 - Maracanã, Rio de Janeiro – RJ 20550-013 Brasil Correio electrónico: evertonbcorreia@gmail.com Mafalda Sofia Borges Soares DOI: 10.4312/vh.31.1.25-41 Sorbonne Université (Paris) / Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa As feições do feminino em português e em francês: análise da receção e da tradução francesas d’A Sibila de Agustina Bessa-Luís Palavras-chave: Agustina-Bessa Luís, A Sibila, tradução, francês, português Este artigo tem como principal objetivo compreender uma das facetas da receção d’A Sibila em França através de uma comparação do original português e da respetiva tradução francesa. Tratar-se-á, mais precisamente, de entender de que modo o feminino é retratado nas duas línguas em análise. Para levar a cabo a nossa investigação, selecionaremos alguns excertos do romance agustiniano nos quais a protagonista Quina é descrita física e/ou psicologicamente, avaliando de que maneira(s) o francês transportou para a sua própria realidade a caracterização daquela personagem. Recorde-se que os idiomas são portadores de sentidos e traumas históricos, e a língua francesa não sofreu, no século XX, o cerceamento a que esteve sujeito o português na sua variante europeia durante a ditadura salazarista – período em que Agustina escreveu esta sua obra-prima. Para além disso, a língua francesa, extremamente atenta a determinadas lutas sociais e veículo de múltiplas reivindicações, assistira já à publicação do livro Le Deuxième Sexe de Beauvoir (1949) quando o romance agustiniano foi dado a conhecer em Portugal (1954). Atentaremos, portanto, ao longo do nosso trabalho, às peculiaridades linguísticas e culturais dos dois idiomas, avaliando os significados explícitos e implícitos que neles são veiculados no que concerne à representação do feminino. 1 Introdução Agustina Bessa-Luís é tida por uma das figuras mais fecundas do século XX português, atendendo à vasta obra que deixou. Pressente-se, na sua prosa, o bulício de um espírito empenhado em descortinar a realidade, com uma veemência que prospera a cada curvar de vírgula. Generalizada é também a ideia de que os livros de Agustina amiúde se focalizam na caracterização de personagens femininas. Por intermédio de uma voz que alcança os recessos da intimidade humana, a autora oferece ao leitor um vivo retrato de lutas a que certas protagonistas se entregam, refletindo sobre o meio e as condicionantes que dele procedem (Alves, 2017: 11). Ora, este artigo visa a compreender de que modo a expressão do feminino n’A Sibila foi transposta para a língua francesa. Tratar-se-á de entender como podem o português e o francês comunicar em âmbito literário e a que transformações estará o original sujeito a fim de conseguir entrar numa realidade que a priori não lhe pertence. Para levarmos a bom porto este propósito, começaremos por descrever, muito brevemente, os cenários histórico-culturais de Portugal e França em meados do século XX. Esta introdução permitir-nos-á esboçar o perfil dessas sociedades e perceber em que convulsões cada qual estava envolta em dada altura do tempo. Continuaremos o nosso percurso relembrando alguns contributos académicos concernentes à questão do feminino em Bessa-Luís, não deixando de fazer apelo ao Dicionário Imperfeito com o intuito de perscrutar a própria noção da autora sobre a questão; aludiremos, de seguida, a dados relativos à receção da obra de Agustina em França. Depois destas considerações de natureza teórica, dedicar-nos-emos à parte mais prática, aplicando-nos na comparação entre o original e a respetiva tradução. As passagens selecionadas reportar-se-ão a descrições de pendor físico e/ou psicológico de Quina, as quais nos darão a possibilidade de reiterar algumas reflexões sobre o feminino agustiniano. 2 Contexto histórico em Portugal11 As informações históricas aqui veiculadas baseiam-se nos livros Histoire du Portugal, de Jean-François Labourdette (pp. 569-610), e Histoire du Portugal, de Albert-Alain Bourdon (pp. 163-172). No ano de 1954, Portugal encontrava-se em pleno regime ditatorial, tendo o Estado Novo sido consagrado em 1933, após aprovação por plebiscito de uma nova constituição. O país assistia à acumulação de funções na figura do Presidente do Conselho (Salazar), à criação da Polícia de Vigilância e de Defesa do Estado, à proibição de outros partidos para além da União Nacional. Propagava-se, de igual maneira, uma mística aclamando «Deus, Pátria, Família» como valores essenciais da educação nacional e colocava-se a tónica na vocação civilizadora do povo português em territórios ultramarinos, com o escopo de se justificar uma política colonial. Ora, com o término da Segunda Guerra (1939-1945), a ordem mundial sofreu alterações significativas: a Europa, assolada pelas consequências dos confrontos armados e em vias de perder as suas colónias, cedeu o lugar de potência a dois blocos emergentes, os Estados Unidos e a URSS. O regime salazarista, notoriamente retrógrado em relação aos ventos de progresso que desembocariam num período de descolonizações, começava a acusar os primeiros sinais de declínio. A Sibila é, aliás, indício de um modelo político e de um imaginário coletivo em decadência, dado que o romance propõe uma subversão dos papéis sociais atribuídos a homens e mulheres. O mundo de Agustina – aquele em que escreveu – encontrava-se em contínua tensão entre o progresso – vindo dos rumos da História – e a tradição – um desejo de conservar os paradigmas do passado. Assim o é o universo ficcional d’A Sibila: uma esfera em que um novo matriarcado vem substituir o convencional patriarcado, contrariando a célebre imagem de propaganda intitulada «A Lição de Salazar» em que um homem entra em casa do trabalho dos campos, ao passo que a mulher se atém às lides domésticas e ao cuidado dos filhos. Agustina erige uma outra lógica de distribuição das tarefas, escapando ao crivo da censura: no seu romance, os homens, por demais voláteis, ausentam-se das responsabilidades que lhes foram incumbidas, pelo que as mulheres assumem encargos relacionados com o cultivo e a gestão patrimonial, movendo-se doravante entre o interior e o exterior da casa22 Cf. Malpique, 2019: 84. . 3 Contexto histórico em França O ano de 1954 é decisivo para França, uma vez que marcou não apenas o final da Guerra da Indochina mas também o início da Guerra na Argélia. Esta guerra foi, sobretudo, ocasião de apelo a uma revolta perante o status quo, e a cultura letrada tornou-se zona de reivindicações e de perceção do potencial transformador das letras face ao espaço circundante. A noção de littérature engagée (uma literatura comprometida com os combates do seu tempo) – detalhada por Jean-Paul Sartre no seu livro Qu’est-ce que la littérature? – era já aplicada pelos pensadores franceses nos anos 1950, reconhecendo-se à escrita uma capacidade não negligenciável para despertar as consciências e incitar a tomadas de posição. Importa ainda salientar que 1954 é o ano de atribuição do Prix Goncourt a Simone de Beauvoir pela sua obra Les Mandarins, a qual coloca em cena personagens representativas de intelectuais de esquerda vivendo no pós-Segunda Guerra Mundial e procurando dar um sentido à época em que se encontram33 A condição feminina passou a ser um dos temas debatidos na sociedade francesa, sobretudo a partir do lançamento, em 1949, da obra Le Deuxième Sexe, de Simone de Beauvoir. . Esta atribuição não deixa, a nosso ver, de ecoar com as datas de 1953 e 1954, anos em que A Sibila ganhou dois prémios literários. Em ambos os casos, uma voz feminina viu recompensada a sua ficção como meio de reflexão pertinente sobre a realidade que a cingia e como proposta, crítica e verosímil, de um mundo suscetível de assumir feições diferentes44 Cf. Schmidt, 1997: 54. . 4 Abordagens do feminino O feminino é leitmotiv recorrente – ainda que longe de ser o único – na prosa agustiniana. Ora, antes de nos lançarmos na comparação de excertos d’A Sibila, gostaríamos de preparar o leitor para a sua interpretação, iniciando-o a uma certa conceção do feminino passível de ser identificada no romance em análise. Sustenta a autora, no seu Dicionário Imperfeito, a propósito da maneira como a mulher apr(e)ende o mundo: Diz-se que pensar e sentir são a mesma coisa para a mulher. Mas o que acontece é que são simultâneos, clarificados por uma espécie de vertigem de realidade, póstuma, ao acontecimento. Quando algo acontece, a sua realidade já foi imposta à mulher. O homem confina-se na firmeza do julgamento, porque a realidade é algo que ele adquire, e não algo que tem existência estranha ao homem. Para a mulher, a realidade é criação paralela que lhe sugere uma ideia geral da criação (Bessa-Luís, 2008: 191). A escritora descreve um estado místico, associando-o ao ato de conhecimento feminino55 Sobre o misticismo em Bessa-Luís, leia-se Dal Farra, M. L. (2014): A mística em Agustina Bessa-Luís e Clarice Lispector. . O facto de se aperceber das coisas – e de as perceber sem por isso as pensar de maneira firme – é o que permite à mulher conhecer o que a rodeia. Os sentidos surgem, não apenas como recetores de sensações físicas, mas sobretudo como vias de acesso para uma forma de comunhão com o mundo. Experiencia-se a realidade através dos cinco sentidos e adquire-se, por essa via, uma impressão: algo que marca o sujeito e que nele imprime uma sensibilidade. Equivale isto a dizer que o conhecimento feminino se dá como um acontecimento que se apresenta numa especificidade que lhe é própria. É-nos, assim, possível afirmar que Agustina concebe a mulher como recetora, e não tanto como produtora, de determinados saberes; ela é testemunha de uma realidade cuja presença se manifesta sem precisar de ser moldada. Há ainda outro aspeto que singulariza o conhecimento da mulher agustiniana: a intensidade sensorial, comparada a uma vertigem; como se a mulher tivesse de sair de um mundo dado por adquirido, cuja existência é linear e regulamentada, para melhor o entender – vivenciando um tipo de desequilíbrio que não é perda, mas sim aprofundamento de uma consciência que se lhe torna sui generis. Nas abordagens académicas consultadas, a transgressão é característica recorrentemente atribuída à sibila – figura ligada ao oculto, ao irracional, ao inexplicável66 Catherine Dumas alude à contradição (ao poder de ir contra uma lógica instituída, de conceber caminhos outros para o pensamento e para o sentimento) como especificidade das personagens femininas em Bessa-Luís. Cf. Dumas, 2022: 14. . Essa transgressão correlaciona-se em Agustina com uma ideia de emancipação relativamente a um jugo e de aquisição de certos direitos outrora vedados (Lentina, 2012: 300-301). O verbo “transgredir” pressupõe, aliás, uma deslocação e a superação de certos limites. Ora, o que a prosa agustiniana faz é colocar as mulheres da casa da Vessada em movimento, possibilitando-lhes ser senhoras da integralidade do seu espaço. Isto implica o preenchimento de lugares deixados devolutos pela gente masculina. É de notar que a transgressão não assume, neste livro, uma vontade de reivindicação de um estatuto igualitário entre homem e mulher, decorrendo antes de uma necessidade: perante a falta de homens, cujo carácter fugidio os afasta da gestão das propriedades, as mulheres tomam as rédeas, vendo-se obrigadas – pelas circunstâncias, e não pela emergência de um discernimento sobre o seu modo de existir – a repensar a sua relação com a casa, com a terra e consigo mesmas. Pode inclusive alegar-se que são os próprios homens que incitam a uma desconstrução – e a uma consequente reinvenção – do feminino nos seus moldes mais tradicionais. A transgressão da qual Quina é o expoente máximo está também associada ao mover-se da protagonista no seu espaço interior, dentro do qual contacta com uma capacidade para (pres)sentir as coisas. Estamos diante de uma sabedoria pertencente a tempos imemoriais, que tende a cair em esquecimento, mas que, para Quina, equivale a uma profunda conquista de si – conquista que não passa por um conhecimento in totum, que visa a tudo abarcar e compreender, mas, sim, por uma entrega a estados que não se deixam cingir por lógicas alheias (Dal Farra, 2014: 74). Curioso é o facto de Eduardo Lourenço, citado por Alda Lentina, se ter reportado à literatura francesa a fim de ilustrar uma tendência estética expressa em Bessa-Luís, atestando da capacidade que as artes portuguesas apresentam para dialogar com outras realidades suas contemporâneas (Lentina, 2018: 160). À semelhança do que ocorria no âmbito das Letras em França, também no Portugal romanceado por Agustina as mulheres deixavam de ser puro objeto de observação e interrogação, descrito sob o ponto de vista daqueles que para elas olhavam. Aquelas mulheres abandonavam o espectro da essência feminina, o qual esquece a particularidade das vivências de cada qual77 Cf. Beauvoir, 2014: 524. , e contrariavam o retiro como propensão natural da sua índole. 5 Receção em França Pese embora o facto de A Sibila ter sido publicada nos anos 1950 em Portugal, a sua primeira tradução para o francês data de 1982, tendo sido assegurada por Françoise Debecker-Bardin, inicialmente com o cunho das Éditions Gallimard; já em 2005, as Éditions Métaillé lançaram uma reedição dessa tradução (sobre a qual nos basearemos). Se excluirmos as edições de La Sybille, podem tão-só contar-se 13 livros de Agustina traduzidos em França, o que constitui uma quantidade muito pouco representativa da extensão da sua obra. É, para além do mais, desconcertante a ínfima quantidade de trabalhos académicos tendo como objeto de estudo principal (criações de) Bessa-Luís88 Os artigos, livros e teses a que nos referimos encontram-se listados na parte bibliográfica deste trabalho. Chamamos a atenção do leitor para o facto de as nossas pesquisas se aterem à rede de bibliotecas da Sorbonne e à da Bibliothèque Nationale de France (as quais nos pareceram ser os instrumentos de maior difusão de conteúdo académico acessível a alunos, professores e investigadores). É possível que outro material dedicado a Agustina exista, ainda que o seu acesso seja mais limitado. Ademais, deixámos propositadamente de lado trabalhos que mencionavam Agustina quando a análise dos seus livros não era o motivo central do estudo; evitámos aludir a trabalhos relativos à adaptação de textos agustinianos para o cinema, por exemplo, nos quais se dava muito mais enfoque ao trabalho do realizador Manoel de Oliveira. Neste contexto, dedicamo-nos tão-só a entender como pode Agustina, por si só, interessar o público que vive em França. . Em França, contam-se tão-só três teses de doutoramento registadas; quanto a artigos universitários publicados em revistas francesas, destacam-se quatro principais. No próprio site da Bibliothèque Nationale de France, que dedicou, em 2022, uma curta entrada ao centenário do nascimento de José Saramago e de Agustina Bessa-Luís, se reconhece que a escritora está ainda pouco traduzida e que Saramago é mais conhecido do público leitor francês. Ora, perante estes dados, assevera-se-nos proveitoso declarar que escritores como Bessa-Luís exibem, não apenas génio, mas igualmente assuntos passíveis de estabelecerem um diálogo profícuo entre culturas. Atrevemo-nos, por isso, a defender que o falta a Portugal não é engenho literário, mas sim presença de estratégias sólidas de internacionalização das suas artes – as quais apresentam, pelos temas e pela perícia com que estes são abordados, motivos suficientes para serem apreciadas fora do seu contexto de produção nacional. 6 Análise da tradução francesa Antes de examinarmos a tradução francesa, impera advertir o leitor de que esta é, grosso modo, fiel ao original. Françoise Debecker-Bardin, para além da coragem de traduzir uma obra repleta de regionalismos e de referências histórico-geográficas muito precisas, soube fazê-lo respeitando as características gerais do texto. As ressalvas que aqui serão apontadas concernem a detalhes relacionados com a interpretação do feminino e com a imagem que Agustina dele fornece, não constituindo críticas acerbas visando a colocar em causa o trabalho feito pela tradutora. A tarefa do tradutor é, como se sabe, construção de uma eterna torre de Babel, havendo sempre possibilidade de refletir sobre ela tendo em conta os usos de cada época. Debrucemo-nos, então, sobre o primeiro excerto escolhido, atinente à descrição de uma certa tendência psicológica de Quina: Ela, que até ali julgara prescindir dos respeitos, das atenções, do amor, que apenas fora uma rapariguinha activa na obediência, apagada mesmo por ser demasiado exacta, por temer salientar-se, incorrer em faltas, suscitar uma crítica, um reparo nem que fosse de louvor, compreendeu como a sua natureza vibrava com o afecto, a admiração, e como se expandia em energias apaixonadas, até derramar em volta uma influência de simpatia, de força, de irrecusável imperativo. Ela compreendeu isto, não pela razão, mas pelo sentimento (Bessa-Luís, 2017: 52). Elle qui jusque-là avait cru renoncer à la considération, à l’attention et à l’amour, elle qui avait été simplement une petite fille active dans l’obéissance, effacée à force d’être docile et de craindre de se faire remarquer, d’être prise en défaut, de s’attirer une critique ou même un compliment, comprit soudain combien sa nature vibrait sous l’affection et l’admiration, comme elle se répandait en énergies passionnées, jusqu’à diffuser autour d’elle un courant de sympathie, de force et d’autorité irrécusable. Elle comprit cela, non avec sa raison, mais par intuition (Bessa-Luís, 2005: 50). Duas traduções retêm a nossa atenção: “exata” e “sentimento”. O adjetivo “exata” denota “precisão”, “rigor” ou até “ausência de erro”, ao passo que o adjetivo docile se refere a uma disposição para se deixar influenciar por outrem. Ora, o que a voz narrativa aqui pretende é fazer sobressair o facto de Quina – outrora empenhada em adotar uma conduta exemplar, apagando qualquer marca passível de a distinguir do meio em que se inseria – ter começado a perceber que a sua presença exercia uma dada influência sobre o que a rodeava. Trata-se menos de realçar a tendência manobrável do seu comportamento do que reforçar o seu empenho em não destoar do ambiente em seu redor. Perde-se, na tradução francesa, a noção de que a passividade de Quina lhe advinha da sua tentativa de corresponder a expectativas. Essa responsabilidade no que tange à própria condição é, a nosso ver, um ponto crucial, pelo que o adjetivo docile nos parece atenuar essa responsabilização. Exacte em francês poderia servir, sem quaisquer riscos de tradução literal. A palavra “sentimento” é, por sua vez, plurívoca: esta reporta-se tanto a um estado de afeição quanto a uma sensibilidade, a um envolvimento e até a uma ligação. Ora, a polissemia do vocábulo “sentimento” permite congregar a pluralidade do saber feminino: este associa as informações provindas dos sentidos a um estado de entrega amorosa. Esta união do sensório e do emocional, que desemboca numa sensação vertiginosa, não é transmitida na intuition – a qual coloca a tónica na índole direta de uma dada gnose. Enquanto o “sentimento” pode ser perturbador, resultando de uma mistura de sinestesia e de rendição, a intuition é caminho nítido em direção a uma verdade. Propomos, portanto, a tradução francesa sentiment, sem que isso nos faça cair na armadilha dos faux amis. Muito curiosamente, a tradutora optará, uma vez mais, pelo termo intuition numa outra passagem da obra, desta feita para traduzir o termo “sentido” a propósito do modus cognoscendi (e, por extensão, do modus essendi) de Quina: Mercê dum sentido finíssimo para se embrenhar nos fenómenos da natureza, humana ou simplesmente do meio vital, com os seus elementos, suas causas e efeitos, depressa adquiriu uma sabedoria profunda acerca de todos os ritmos da consciência, do instinto, das forças telúricas que se conjugam no fatalismo da continuidade (Bessa-Luís, 2017: 57). Grâce à une intuition très fine, elle pénétrait profondément les manifestations de la nature humaine ou simplement du milieu vital, ses éléments, ses causes et ses effets, et elle gagna rapidement une connaissance profonde de tous les rythmes de la conscience, de l’instinct, des forces telluriques qui se conjuguent dans le fatalisme de la continuité (Bessa-Luís, 2005: 56). Ao passo que o “sentido” remete tanto para a dimensão empírica quanto para a formação de um entendimento, a intuition concentra-se no facto de esse entendimento ser inequívoco, relegando para segundo plano o universo das sensações físicas e a desorientação que a sua intensidade pode causar. O vocábulo sens em francês, que mantém as mesmas aceções do que a palavra em português, afigura-se-nos, assim, mais adequado no contexto em análise. Acrescenta a voz narrativa, ainda sobre o modo de ser de Quina: Agiu [Quina] sempre num plano bastante medíocre de vaidade e pura ternura para tudo quanto lhe parecia informemente criado e existindo num estado temporário de imperfeição, ternura esta tão grande quanto o seu desprezo, porque tudo quanto ela amava – todas as criaturas, todas as formas, os mistérios, a própria beleza – lhe parecia longe e diferente do que ela teria desejado (Bessa-Luís, 2017: 57). Elle agit toujours sur un plan assez médiocre de vanité et de pure tendresse pour tout ce qui lui paraissait informe, créé dans un état temporaire d’imperfection, et cette tendresse était aussi grande que son mépris, car tout ce qu’elle aimait – créatures, formes, mystères, et la beauté elle-même – lui semblait décevant et froid à côté de ce qu’elle avait rêvé (Bessa-Luís, 2005: 57). Há dois aspetos a ter em conta na tradução avait rêvé: o tempo e o modo verbais (o plus-que-parfait de l’indicatif) a par do verbo (rêver). Em português, a voz narrativa utiliza o condicional composto (teria desejado), o que significa que se trata de uma ação hipotética que nunca terá lugar. Estamos diante da projeção de um cenário imaginado sem qualquer possibilidade de realização: as coisas que Quina amava eram tão diferentes dos seus próprios desejos que essas se imbuíam da irrealidade de um condicional. Não obstante, a tradutora optou por um tempo do indicativo, modo que confere concretude aos factos narrados. Não é impossível que a adoção do verbo rêver funcione como uma estratégia de compensação relativamente à natureza assertiva do indicativo, mas os verbos “desejar” e “sonhar” têm as suas diferenças. O “desejo” pode relacionar-se não só com um impulso corporal como com uma aspiração, ao passo que o “sonho” se imbui de uma dimensão mais idealista que não admite uma conotação corpórea nem uma necessidade de satisfação. Há algo mais terra-a-terra no desejar agustiniano que se perde no verbo rêver. Propomos, por conseguinte, a tradução aurait désiré. Ainda a propósito da disposição psicológica de Quina sobre as coisas que a rodeiam, concentremo-nos no seguinte parágrafo: Não sabia ambicionar; sabia impor-se uma exigência de triunfo imediato. Não tinha imaginação para arquitectar, esperar; apenas compreendia o momentâneo, e era isso que ela queria adquirir. Tudo o que não obedece a um plano, dura apenas o tempo de realização; e não tem glória, nem esse cunho das coisas humanas que trazem consigo um alento de superação e de eternidade (Bessa-Luís, 2017: 80). Elle n’était pas capable d’ambition, elle était capable de s’imposer en exigeant un triomphe immédiat. Elle n’avait pas suffisamment d’imagination pour dresser ses plans et attendre ; elle ne comprenait que le triomphe de l’instant, et c’était cela qu’elle voulait obtenir. Or, tout ce qui échappe à un plan dure seulement le temps de la réalisation et ne connaît pas la gloire, ne porte pas le cachet distinctif des réalisations humaines qu’a soulevées un souffle d’idéalisme et d’éternité (Bessa-Luís, 2005: 80). Gostaríamos aqui de analisar a tradução de “sabia” e de “superação”. Em primeiro lugar, acreditamos haver uma nuance entre “saber” e “ter capacidade para”. Um pouco mais atrás nesta passagem do livro, a voz narrativa frisa que coexistem em Quina forças contrárias: uma potencialidade para ser grande e uma mediocridade que a impede de o ser99 Cf. Bessa-Luís, 2017: 80. . Ora, o verbo “saber” implica aquisição de competências, relacionando-se com possessão ou acumulação. Por seu turno, a “capacidade” demonstra um elo mais próximo com características inatas ou inclinações intrínsecas. Afigura-se-nos, assim, pertinente afirmar que Quina tinha capacidade para ter ambição – havendo em sua natureza algo latente –, não tendo, porém, aliado a essa sua capacidade um saber (um savoir-faire, um know-how) passível de canalizar aquilo que dentro dela tinha lugar. A tradução ne savait pas aparece-nos, assim, mais fiel ao original. No que tange ao vocábulo idéalisme, este pode remeter para uma negação da realidade do mundo fora da esfera do pensamento humano e para uma predominância dos valores morais em detrimento dos materiais. Cremos que o texto coloca a tónica no próprio ato de ultrapassar, e não tanto no resultado do mesmo. Sublinha-se a importância de a personagem (se) projetar para lá do instante vigente, e não tanto a importância daquilo que Quina deverá projetar (os seus ideais): antes de saber o que se perfila no horizonte, é preciso aprender a olhar nessa direção. Atrevemo-nos, portanto, a sugerir a palavra dépassement, que conserva, não apenas a ideia de “ir para além de” quanto a noção de desenvolvimento pessoal (nomeadamente na sua forma reflexiva, se dépasser). No último trecho selecionado, aborda-se o desprezo que Quina sente pelas mulheres – o qual não deve ser interpretado como ódio1010 Cf. Bessa-Luís, 2017: 105-106. , mas antes como desconsideração: A verdade era que, toda a vida, ela lutara por superar a sua própria condição, e, conseguindo-o, […] mantinha em relação às outras mulheres uma atitude não desprovida de originalidade. Amadas, servindo os seus senhores, cheias dum mimo doméstico e inconsequente, tornadas abjectas à custa de lhes ser negada a responsabilidade, usando o amor com instinto de ganância, parasitas do homem e não companheiras, Quina sentia por elas um desdém um tanto despeitado e mesmo tímido, pois havia nessa condição de escravas regaladas alguma coisa que a fazia sentir-se frustrada como mulher (Bessa-Luís, 2017: 105-106). La vérité, c’est que toute sa vie elle avait lutté pour surmonter l’obstacle de sa condition et, maintenant qu’elle avait réussi, […] elle adoptait envers les autres femmes une attitude qui n’était pas dépourvue d’originalité. Elles étaient aimées et servaient leur seigneur et maître, toutes pleines d’une perfection domestique et inconséquente, rendues abjectes à force d’être tenues à l’écart des responsabilités, elles se servaient de l’amour en espérant un profit, parasites de l’homme et non ses compagnes, et Quina leur vouait un dédain un peu dépité et même timide, car il y avait dans leur condition d’esclaves satisfaites quelque chose qui lui faisait prendre conscience de ce qu’elle-même avait de frustré en tant que femme (Bessa-Luís, 2005: 107). Atentemos à passagem “ela lutara por superar a sua própria condição”. Na tradução francesa, elide-se o adjetivo “próprio” e acrescenta-se o substantivo “obstáculo”. Ora, o adjetivo vem dar relevo à natureza individual da ação da protagonista. Quina tenciona libertar-se, a si mesma, e não outras mulheres – sublinhando-se a sua visão por demais ancorada no presente, não delineada em projetos mais vastos do que o recinto do seu quotidiano. Em francês, pode eventualmente pensar-se que sa condition diz respeito à condição de Quina enquanto membro de um coletivo mais vasto a que se pode dar o nome de “mulheres”, perdendo-se a dimensão autocentrada da protagonista. Para além disso, a palavra obstacle vem interpretar a dificuldade da empresa – e tingir de certo heroísmo a conduta de Quina –, mas essa valorização encontra-se ausente na versão em português. Parece-nos que a tradução elle avait lutté pour surmonter sa propre condition seria a mais apropriada. Teceremos ainda um derradeiro comentário a propósito da passagem “alguma coisa que a fazia sentir-se frustrada como mulher”. O verbo “sentir-se” foi traduzido como prendre conscience; todavia, o sentimento e a sensação agustinianos estão mais próximos de um estado inconsciente – em que se verifica uma certa fusão com o que envolve a personagem – do que de um estado em que o sujeito feminino processa ativamente as informações que a si lhe chegam. Ademais, a frase em francês, de propensão explicativa, modifica as informações veiculadas no texto. O original diz que Quina fica desolada perante o comportamento daquelas que deveriam ser suas semelhantes. Noutros termos, há um afastamento face a um grupo ao qual Quina tão-só pertence por via do género, uma vez que esta não deseja reproduzir o modo de vida que lhe está associado. Quina sente-se «frustrada como mulher», não por ser mulher stricto sensu, mas sim por as mulheres que a rodeiam não representarem aquilo que aspira a ser – no fundo, por não ter à sua volta nenhum modelo feminino capaz de a inspirar. A frustração não provém, embora nela possa ecoar, da interioridade – de um pedaço de si que constituiria uma espécie de vergonha para a própria –, mas antes de condutas exteriores. O que desalenta Quina é o facto de as mulheres que se encontram fora de si se revelarem inaptas para espelharem, e fazer sobressair, a mulher que jaz, reclusa, dentro de si. Oferecemos, por isso, como sugestão a frase quelque chose qui la faisait se sentir frustrée en tant que femme. 7 Considerações finais Foi-nos possível observar, ao longo do presente artigo, algumas particularidades do feminino em Agustina e a maneira como certas semânticas foram traduzidas para francês. Vimos, outrossim, que dois países como Portugal e França – cujas reivindicações históricas não coincidem nem no tempo nem no modo – têm grande capacidade para dialogar, não apenas por haver relativa fluidez na transposição de significados de uma língua para a outra, mas ainda por certos leitmotivs patentes na literatura portuguesa conseguirem encontrar, com facilidade, ecos fraternais na literatura francesa. Não obstante estarem ancoradas em contextos distintos – com evoluções, ritmos e tiranias que lhes são próprios –, as duas sociedades têm matéria para se compreenderem mutuamente. Sublinhe-se, no entanto, que o que tornará frutífero o colóquio entre os dois países situar-se-á muito menos nos pontos em que ambos se reconhecem – os quais servirão de motivo de interesse – e muito mais nos pontos em que ambos se estranham – os quais servirão de motivo de questionamento. Necessária é a curiosidade pela forma como espaços geográficos tão próximos podem, cada qual a seu modo, dar resposta a questões que lhes são comuns. Agustina Bessa-Luís é, porventura, equiparável a Simone de Beauvoir, uma vez se ter debruçado sobre as complexidades da questão feminina. Não o fez, contudo, nem pelos mesmos meios, nem com a mesma linguagem, nem avançando os mesmos argumentos. Ao passo que o debate se fazia em praça pública e o ensaio filosófico se assumia, para Beauvoir, como forma de contestação por excelência, a literatura de Agustina conferia espessura à reflexão na aparente tranquilidade da ficção romanesca. A sociedade portuguesa terá, também ela, criado os seus espaços de palavra livre; seguramente mais sub-reptícios, por certo mais discretos nas suas reivindicações – sem que, no entanto, esse recato tenha retirado às artes qualquer força retórica. Basta ler nas entrelinhas. Bibliografía Beauvoir, S. (1954): Les mandarins. Paris: Éditions Gallimard. Beauvoir, S. (2014): Le deuxième sexe. Tome II. Paris: Éditions Gallimard. Bessa-Luís, A. (2017): A Sibila. Lisboa: Relógio d’Água. Bessa-Luís, A. (2008): Dicionário Imperfeito. Lisboa: Guimarães Editores. Bessa-Luís, A. (2005): La Sibylle. Traduction de Françoise Debecker-Bardin. Paris: Éditions Métailié. Bourdon, A.-A. (2019): Histoire du Portugal. Paris: Éditions Chandeigne. Christophe C., Laurent J. P. (dirs.) (2016): La vie intellectuelle en France II. De 1914 à nos jours. Paris: Éditions du Seuil. Dal Farra, M. L. 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Feminine features in Portuguese and French languages: analysis of the French reception and translation of A Sibila by Agustina Bessa-Luís Keywords: Agustina-Bessa Luís, A Sibila, translation, French language, Portuguese language This article aims to understand one of the facets of the reception of A Sibila in France through a comparison of the Portuguese original text and its French translation. More precisely, we shall try to understand how the feminine is portrayed in the two languages under analysis. To carry out our investigation, we will select some excerpts of the Augustinian novel in which the protagonist Quina is described physically and/or psychologically, evaluating in which way(s) the French language has transported the characterization of this fictional figure to its own reality. It should be remembered that languages carry historical meanings and traumas, and the French language did not suffer, in the 20th century, the restriction to which the European variant of Portuguese was subjected during the Salazar dictatorship – the period in which Agustina wrote this masterpiece. Moreover, the French language, extremely attentive to certain social struggles and a vehicle of multiple claims, had already seen the publication of the book Le Deuxième Sexe de Beauvoir (1949) when A Sibila was made known in Portugal (1954). Therefore, throughout our work we will focus on the linguistic and cultural peculiarities of the two languages, evaluating the explicit and implicit meanings that are conveyed in both of them concerning the representation of the feminine. Predstavljanje ženskega spola v portugalskem in francoskem jeziku. Analiza recepcije francoskega prevoda romana A Sibila Agustine Besse-Luis  Kljucne besede: Agustina-Bessa Luís, A Sibila, prevod, francošcina, portugalšcina Namen tega clanka je razumevanje enega od vidikov recepcije romana A Sibila (Sibila) v Franciji v primerjavi s portugalskim izvirnim besedilom in njegovim francoskim prevodom. Še natancneje – skuša razumeti, kako je v obeh analiziranih jezikih upodobljena junakinja. Za raziskavo bomo izbrali nekaj odlomkov Agustininega romana, ki glavno junakinjo Quin opisujejo fizicno in/ali psihološko, in nato izpeljali oceno, kako je francoski jezik prenesel karakterizacijo te fiktivne figure v svojo realnost. Ne smemo pozabiti, da jeziki nosijo zgodovinske pomene in travme. Pri tem francoski jezik v 20. stoletju ni bil deležen omejitev, ki jih je bila deležna evropska razlicica portugalšcine v casu Salazarjeve diktature – v obdobju, ko je Agustina napisala svojo mojstrovino. Obenem je francoska prevajalka izjemno pozorna na družbene boje, jezik je v Franciji nosilec številnih zahtev, kajti država doživi izdajo knjige Drugi spol Simone de Beauvoir (1949), v casu, ko si je roman A Sibila pridobil slavo na Portugalskem (1954). Zato se bomo v celotnem besedilu osredotocili na jezikovne in kulturne posebnosti obeh jezikov ter ocenili eksplicitne in implicitne pomene, pa tudi nacine, s katerimi v obeh jezikih izražajo predstavljanje ženskega spola. Mafalda Sofia Borges Soares Mafalda Sofia Borges Soares é doutorada em Estudos Portugueses e Românicos (especialidade de Estudos Comparatistas) e mestre em Tradução (francês, inglês, português). É atualmente Attachée Temporaire d'Enseignement et de Recherche na universidade Panthéon-Sorbonne (Paris I), tendo sido leitora de português na Faculté des Lettres de Sorbonne Université (Paris IV) e lecionado disciplinas de tradução e edição na Université Sorbonne Nouvelle (Paris III). Em janeiro de 2019, publicou a primeira tradução para português de Portugal do livro Contre Sainte-Beuve, de Marcel Proust. Os seus domínios de pesquisa concentram-se em literaturas lusófonas e francófonas dos séculos XX e XXI, tendo a sua tese de doutoramento incidido sobre a ideia de literatura em obras de Marcel Proust e Clarice Lispector. Prepara agora um pós-doutoramento em Paris IV sobre o estatuto do narrador em José Saramago e Annie Ernaux. Endereço: 9 rue Laplace 75005 Paris, 78490 Le Tremblay-sur-Mauldre France Correio eletrónico: mafalda.borges.soares@gmail.com Edvin Derviševic DOI: 10.4312/vh.31.1.43-55 Univerza v Ljubljani Algumas considerações sobre o valor condicional em português europeu e esloveno e os possíveis desafios na tradução Palavras-chave: tempo e modo, valor condicional, construções, português europeu, esloveno Os capítulos iniciais deste estudo levantam a questão do condicional enquanto modo e tempo em português europeu e esloveno. Seguidamente, o estudo chama a atenção para algumas considerações sobre o valor condicional e as construções gramaticais que são utilizadas nas duas línguas para desempenhar este valor. O objetivo do estudo é destacar os contextos e valores do condicional e, por meio de uma análise contrastiva, exemplificar a variedade e a complexidade de construções gramaticais. O contributo será relevante para futuras investigações na área da tradução, uma vez que levanta possíveis questões e desafios que podem surgir entre a passagem de uma língua para outra, tal como na área da análise contrastiva entre as duas línguas no âmbito universitário esloveno. 1 Introdução A atividade da linguagem permite aos falantes exprimirem a sua relação, as suas perspetivas e as posições relativas ao contéudo que produzem. Neste sentido, os falantes ajudam a construir novas possibilidades de interpretação linguística e criar novos mundos ainda desconhecidos. Nos capítulos iniciais deste estudo destacar-se-á a questão do condicional enquanto modo e enquanto tempo em português europeu e em esloveno. Seguidamente, propõe-se fazer algumas considerações no que se refere às construções gramaticais que são disponibilizadas nas duas línguas para marcar o valor condicional. Note-se que neste estudo só se chamará a atenção para as construções verbais que marcam este valor nas duas línguas sem considerar outros meios linguísticos não verbais como advérbios epistémicos, advérbios adjetivais ou partículas que também podem veicular esses valores. Este estudo pretende sublinhar, ainda, alguns desafios na área da tradução que podem surgir na passagem de uma língua para outra e levantar questões que se considerem pertinentes para um estudo mais aprofundado no futuro. 2 A questão do condicional em português europeu Nas gramáticas da língua portuguesa o condicional é tratado de formas diferentes, às vezes considerado como modo, outras vezes apresentado como tempo. Na Nova Gramática do Português Contemporâneo (2005), o condicional é classificado como futuro do pretérito, um tempo do modo indicativo (Cunha & Cintra, 2005: 391). Na Gramática da Língua Portuguesa (2003), explica-se que o condicional se comporta como tempo quando o ponto de perspetiva temporal é o passado e adquire um valor modal se esse ponto for um tempo futuro (Oliveira, 2003: 158). Na Gramática do Português (2013), o condicional é abordado de várias perspetivas. Preliminarmente destaca-se o seu valor temporal de «futuro do passado» – que ocorre posteriormente ao tempo de uma outra situação também passada, tomada como tempo de referência – passando para as suas ocorrências na oração consequente das construções condicionais com o verbo no imperfeito do conjuntivo, contextos em que o condicional não tem valor temporal. Ocorre assim, também, com verbos de tipo durativo e o tempo de referência introduzido por adjuntos adverbiais. Nessas situações o condicional pode adquirir um valor modal epistémico de incerteza ou de probabilidade não confirmada (Oliveira, 2013: 527). Numa perspetiva diacrónica, Brocardo (2016) aponta para a evolução do condicional a partir de perífrases com o verbo latino habere (ter, possuir), com base no modelo que originou o futuro (do presente), ressaltando o facto de existirem mais hipóteses relativamente ao desenvolvimento do futuro e do condicional. Quanto às funções do condicional nas línguas românicas, destaca-se que o condicional no português europeu contemporâneo manifesta um valor temporal (futuro do passado) e um valor «não temporal», ou seja, modal (Brocardo, 2016: 4). Afonso (2018) reúne e sintetiza os estudos que tratam o condicional e a sua compreensão e classificação entre tempo e modalidade, um conceito que continua a levantar questões. Muitos linguistas classificam o condicional entre os tempos do indicativo graças à sua morfologia, sendo constituído pelos morfemas de infinitivo e de imperfeito. Por outro lado, o indicativo é tido como o modo do «real», enquanto o conjuntivo representa um modo do «irreal». Dado que, no caso do condicional, não se pode sempre falar de um valor de realidade, considera-se este um modo também. Há quem afirme que o modo indicativo, por ser o modo da asserção, não deixa de ser modal mas é somente o «grau zero» da modalidade. Para Gosselin (2008), não faz sentido falar de tempo sem falar de modalidade. No entanto, autores como Merle (2001), quando descrevem a situação do condicional em francês, chamam a atenção para a construção de uma invariante que possa abranger todos os valores que o condicional veicula. Segundo Oliveira, o condicional permite a variedade de empregos que vão de um uso temporal às ocorrências como marcador de uma possibilidade condicionada, de uma incerteza, de um distanciamento de cortesia (Oliveira, 2001: 407). Neste sentido, para Afonso a questão de o condicional ser um modo ou tempo não está no centro das atenções; muito mais importante para ele é reconhecer a presença de configurações em que esta categoria gramatical surge, tentando decifrar quais as suas significações variadas, estejam elas relacionadas com uma ou mais categorias (Afonso, 2018: 12-25). Junte-se a estas afirmações a perspetiva de Marques que, tal como vários autores acima referidos, sustenta a coexistência de valores temporais e modais no caso do condicional. «Se nalguns casos, [...], a forma verbal está associada a um valor de localização no tempo – indicando posterioridade em relação a um tempo do passado –, noutras construções, como em [...], está associada a um valor modal (do domínio da crença)» (Marques, 2013: 675). Tendo em consideração as várias caracterizações do condicional abordadas, é preciso distinguirmos bem entre as duas categorias – tempo e modalidade. Segundo Comrie (1985), o tempo marca a localização temporal dos acontecimentos num eixo temporal concetualizado, enquanto a modalidade é a categoria através da qual os falantes exprimem o seu posicionamento em relação àquilo que é dito. Em português, os conceitos da modalidade podem ser expressos por meio de muitas formas e construções. De acordo com Oliveira, «alguns tempos gramaticais podem criar situações alternativas associadas ao domínio da possibilidade, como é o caso do imperfeito e do futuro (simples e composto)» (Oliveira, 2013: 627). Neste sentido, é impossível analisarmos a modalidade como uma categoria autónoma. Porém, é imprescindível ­­­considerála em conjunto com as categorias do tempo gramatical e aspetualidade. Acontece que vários tempos gramaticais também podem assumir a função de modo e desempenhar o papel dos valores modais. Segundo Afonso, a mesma forma linguística num determinado contexto em português pode ter múltiplas faces e veicular valores correspondentes a mais do que uma categoria (Afonso, 2018: 12-25). Como o conceito do valor condicional está no centro do interesse do nosso estudo, chamar-se-á a atenção especificamente para esse aspeto. Nos capítulos a seguir, apresentar-se-á a variedade de algumas construções verbais que desempenhem o valor condicional nas duas línguas, em português europeu e em esloveno. 3 A questão do condicional em esloveno Tal como no português europeu, em esloveno existem várias formas de definir o condicional. Contudo, o tempo, a modalidade, os modos e os valores modais em esloveno são definidos, classificados e concebidos de forma bem diferente em relação ao português. Há menos dúvidas quanto à classificação do condicional, sendo este considerado em esloveno como modo. Dentro das noções da gramática eslovena, o modo é uma categoria gramatical cuja função é marcar a relação do locutor perante uma ação ou um estado. A gramática eslovena Slovenska slovnica (Toporišic, 2000) apresenta três modos verbais distintos: modo indicativo (povedni naklon), modo imperativo (velelni naklon) e modo condicional (pogojni naklon). O modo conjuntivo desapareceu e foi substituído pelo condicional, verbos modais e advérbios epistémicos. Enquanto em português vários tempos gramaticais podem assumir o papel do modo, em esloveno o modo condicional representa a única maneira para manifestar o valor condicional a nível de construção verbal. Mesmo assim, é importante não nos deixarmos enganar a pensar que esta representação linguística seja a única forma de exprimir a modalidade em esloveno. Como veremos nos capítulos a seguir, a questão é muito mais complexa. Kunst-Gnamuš (1994) explica que é preciso distinguir entre o modo verbal e o modo sintático, uma vez que a forma verbal não pode nem deve representar o único meio linguístico para exprimir a modalidade (Gnamuš, 1994: 195). Em relação à modalidade, recentemente também foi entendido que, no caso do modo em esloveno, não se trata apenas de formas verbais, mas de uma categoria morfosintática que também utiliza outros meios linguísticos, entre os quais os advérbios epistémicos de vários tipos, advérbios adjetivais, partículas e interjeições (Žele, 2023: 1-17). A autora destaca que, em esloveno, a modalidade não deve ser limitada apenas ao conceito do modo verbal – deve ter em conta também o aspeto pragmático-comunicativo, representando elementos e indicadores como a entonação da frase, a ênfase, tal como a gesticulação (Žele, 2023: 3). Neste sentido, para exprimir as mesmas ocorrências no caso do valor condicional ou da expressão da condicionalidade nas duas línguas podem ser utilizados meios linguísticos bem distintos. 4 Valor condicional Tendo a noção da distinção entre o condicional enquanto tempo e o condicional enquanto modo, passar-se-á a apresentar as construções gramaticais que têm valor condicional nas duas línguas. Os exemplos a seguir servem apenas para ilustrar a heterogeneidade de construções verbais que marcam o valor condicional – ou seja, o valor modal – em ambas as línguas. Como foi referido, as formas do condicional não são as únicas maneiras de exprimir o valor condicional em português europeu. Aliás, a utilização do condicional como tempo para marcar o valor modal está a tornar-se menos frequente no contexto linguístico do português europeu contemporâneo, limitando-se muitas vezes aos contextos de registo formal, pelo menos no que diz respeito à oralidade. Por outro lado, o esloveno dispõe de poucas construções verbais no processo da realização do valor condicional, não tendo em conta outros mecanismos de modalidade não verbais. 5 Construções verbais que marcam o valor condicional em português europeu Neste capítulo pretende-se enfatizar a variedade de construções e formas verbais que, no caso do português europeu, podem marcar o valor condicional e exprimir a condicionalidade em vários níveis. Note-se mais uma vez que o objetivo destes capítulos não é pôr em causa a compreensão do condicional enquanto modo ou tempo, tampouco analisar vários tempos e modos separadamente, destacando o valor modal do condicional apenas como uma das categorias possíveis. O que nos interessa é exatamente o contrário: procurar delimitar quais os contextos a nível de construções verbais que têm o valor semântico do condicional. Em primeiro lugar, como construções mais evidentes para desempenhar o valor condicional sobressaem-se o próprio condicional simples/presente e o condicional composto. É preciso logo esclarecer que o condicional no sentido do tempo gramatical que marca a posterioridade no passado não está incluído nesta classificação a não ser que desempenhe valores modais, nomeadamente o valor condicional, o que é essencial para o presente estudo. Além do condicional simples e do condicional composto, as duas caracterizações esperadas para marcar o valor condicional, serão apresentados também os paradigmas e as construções que levam a etiqueta do condicional, embora não sejam formas do condicional como tal. Nesse sentido, podem ser identificadas as seguintes ocorrências: 5.1 O condicional simples Como já foi explanado, o condicional simples pode desencadear um valor de tempo ou de modo. Segue um exemplo para ilustrar o valor modal. (1) Ele poderia ir contigo amanhã. (ponto de perspetiva = futuro) 5.2 O condicional composto O condicional composto, além de ser um futuro do pretérito em certos contextos de construções condicionais ou frases adverbiais, pode ser modal. Note-se o exemplo abaixo em que se pode inferir que o evento descrito não foi realizado. (2) Se a Maria tivesse chegado a horas, teríamos ido ao cinema. A forma verbal do condicional simples anotada acima no exemplo (1) poderia ser substituída pela forma verbal do pretérito imperfeito, enquanto a forma verbal do condicional composto no exemplo (2) poderia ser substituída pelo pretérito mais-que-perfeito composto na oralidade do português europeu atual – portanto, as variantes gramaticalmente corretas neste contexto também seriam (1) podia e (2) tínhamos ido. 5.3 Interações do condicional com outros tempos e construções gramaticais 5.3.1. O imperfeito Segundo a Gramática da Língua Portuguesa (2003), o pretérito imperfeito é um tempo gramatical com informação de passado, mas que em muitas construções não apresenta características temporais. Com efeito, por ser um tempo alargado, pode alterar o tipo de evento, havendo uma sobreposição, parcial ou total, com um tempo do passado, ou ainda uma relação de inclusão. (Oliveira, 2003: 156) Sendo assim, o imperfeito não denota sempre um tempo do passado. No entanto, pode marcar com mais frequência a modalidade, particularmente na oralidade do português europeu atual. Veja-se o exemplo abaixo em que a forma verbal do imperfeito adquire um valor completamente modal (Oliveira, 2001: 408). (3) Agora eu era o herói. A utilização de formas verbais do imperfeito em vez de formas do condicional para desempenhar os valores modais está a tornar-se sempre mais comum no português europeu. 5.3.2. O pretérito mais-que-perfeito composto Tal como o pretérito imperfeito, o pretérito mais-que-perfeito composto, em alguns contextos, também pode exprimir um valor modal, sendo muitas vezes utilizado na oralidade em vez do condicional composto. Note-se mais um exemplo abaixo. (4) Se tivesses estudado, tinhas passado no exame. (=Se tivesses estudado, terias passado no exame.) Enquanto as formas do pretérito imperfeito no sentido de modalidade não têm nada a ver com o passado, as formas do pretérito mais-que-perfeito composto estão relacionadas com ações dentro da dimensão temporal do passado. 5.3.3 Construção perifrástica ir + infinitivo Para além das construções verbais apresentadas, deparamo-nos muitas vezes com a estrutura ir + infinitivo. Esta construção perifrástica, enquanto as formas do verbo ir forem no presente, é geralmente utilizada para marcar um tempo futuro. Por outro lado, se forem utilizadas formas do imperfeito ou condicional, esta perífrase verbal adquire um valor modal. Tal valor pode ser expresso por meio de formas do condicional simples do verbo ir + infinitivo num contexto normalmente mais formal ou através do pretérito imperfeito do verbo ir + infinitivo num contexto menos formal, especificamente na oralidade. Segue um exemplo abaixo. (5) Ele nunca ia fazer isso. Podes ter a certeza! Todas as formas e construções verbais relatadas neste capítulo apresentam apenas uma parte da variedade extensa de construções que, no português europeu, podem desempenhar o valor condicional e podem estar relacionadas com o conceito da condicionalidade e as condições de várias formas. As orações subordinadas adverbiais aqui não se referem ao caso. 6 Construções verbais que marcam o valor condicional em esloveno Relativamente ao esloveno, o valor condicional é marcado através de apenas uma ou, supostamente, duas construções verbais muito claras que não levam a complexidade das múltiplas construções portuguesas. 6.1 O condicional presente A única forma de exprimir o valor condicional em esloveno a nível verbal é a construção do condicional presente, constituída pelo verbo auxiliar bi + particípio passado do verbo principal. Seguem uns exemplos abaixo. (6) Jutri bi imel vec casa. (Amanhã teria mais tempo.) (7) Bilo bi lepo. (Seria bom.) (8) Naredili bi uslugo. (Nós faríamos um favor.) (9) Ona bi vzela s seboj tisto obleko. (Ela levaria consigo aquele vestido.) 11 Os exemplos (6), (7), (8) e (9) foram adicionados pelo autor. 6.2 O condicional passado Além do condicional presente em esloveno, também existe o condicional passado, cuja utilização pode ser associada à utilização das formas do condicional composto em português em determinados contextos. Contudo, no esloveno atual trata-se de uma forma rigorosamente arcaica que está em desuso e, na maioria das vezes, vem substituída pelo condicional presente. Limita-se apenas às situações e aos contextos linguísticos em que é preciso realçar que a ação já não é realizável e faz parte da dimensão temporal do passado, desempenhando então uma função de distinção semântica, mais do que gramatical. Se houver situações ambíguas em que o tempo da ocorrência de uma determinada ação não fique claro, Slovenska slovnica (Gramática da Língua Eslovena, 2000) destaca a importância da utilização do condicional passado nos contextos da ambiguidade. A construção forma-se a partir do verbo auxiliar bi + particípio passado do verbo ser + particípio passado do verbo principal, como ilustrado nos exemplos abaixo. (10) Pa bi bil ti šel! (Terias ido tu então!/Tinhas ido tu então!) (11) Ce bi bil imel denar, bi ti ga bil posodil. 22 Os exemplos (10) e (11) foram adicionados pelo autor. (Se tivesse tido dinheiro, ter-to-ia emprestado. (Se tivesse tido dinheiro, tinha-to emprestado.) = não há mais hipóteses para realizar a ação Porém, note-se que, tal como no caso do português europeu, o valor condicional em esloveno pode ser expresso através de tempos gramaticais em orações subordinadas adverbiais. Contudo, o esloveno só dispõe de três representações gramaticais dentro da dimensão temporal que correspondem aos tempos gerais do presente, passado e futuro simples. 7 Desafios na tradução de uma língua para outra A partir das situações linguísticas e exemplos destacados acima, não é difícil constatar uma diversidade inquestionavelmente maior do português europeu em termos de construções e formas verbais que podem ser utilizadas para exprimir o valor condicional em relação ao esloveno. Esta plasticidade de construções portuguesas em comparação com as eslovenas33 Veja-se quanto a esta questão também o capítulo Os paradigmas verbais em esloveno em contraste com português europeu (Muller 2013: 83-100) em: Markic, Nunes Correia: Descrições e contrastes. pode ser ilustrada por meio das seguintes tabelas com as formas verbais dos verbos fazer (A) e ser (B). (A) Situações linguísticas Português europeu (PE) Esloveno construídas com valor de presente e de futuro (1) Eu faria este favor. (2) Não sei se iria fazer este favor. (3) Tu fazias este favor para mim? (4) Ias fazer este favor para mim? (5) Se eu fizesse este favor para ti... (6) Se eu fizer este favor para ti... (1) Jaz bi naredil to uslugo. (2) Ne vem, ce bi naredil to uslugo. (3) Ali bi mi naredil to uslugo? (4) Ali bi mi naredil to uslugo? (5) Ce bi naredil to uslugo zate… (6) Ce naredim/bom naredil* to uslugo zate... Situações linguísticas Português europeu (PE) Esloveno construídas com valor de passado (1) Eu teria feito este favor para ti se tivesse chegado a tempo. (2) Eu tinha feito este favor para ti se tivesse chegado a tempo. (3) Se eu tivesse feito este favor, agora ficarias contente. (1) Jaz bi ti (bil*) naredil to uslugo, ce bi prišel pravocasno. (2) Jaz bi ti (bil*) naredil to uslugo, ce bi prišel pravocasno. (3) Ce bi (bil*) naredil to uslugo, bi bil ti zdaj zadovoljen. (B) Situações linguísticas Português europeu (PE) Esloveno construídas com valor de presente e de futuro, situações realizáveis (1) Seria bom se me dissesses a verdade. (2) Era bom se me dissesses a verdade. (1) Bilo bi dobro, ce mi poveš resnico. (2) Bilo bi dobro, ce mi poveš resnico. construídas com valor de passado, situações irrealizáveis (1) Teria sido bom se me tivesses dito a verdade. (2) Tinha sido bom se me tivesses dito a verdade. (1) Bilo bi dobro, ce bi mi povedal resnico. (2) Bilo bi dobro, ce bi mi povedal resnico. Neste sentido, seria conveniente levantarmos questões relativas à tradução desse tipo de construções do português para o esloveno e vice-versa. É possível garantir e conservar o mesmo grau de valor condicional na passagem de uma língua para outra? Será que a variedade de construções que no português europeu marcam o valor condicional pode ser substituída por outros meios linguísticos em esloveno que não sejam verbais, tal como advérbios epistémicos e adjetivais? 8 Algumas conclusões provisórias Como podemos ver, o português europeu dispõe de muitas construções gramaticais e as respetivas formas verbais para marcar o conceito da condicionalidade, enquanto em esloveno, a nível de construção verbal, existe apenas uma hipótese de o fazer, através da construção bi + particípio passado do verbo, ou supostamente duas, visto que em raros contextos mais arcaicos também é aceitável a utilização do condicional passado por meio da construção verbo auxiliar bi + particípio passado do verbo ser + particípio passado do verbo principal. Mesmo assim, é impossível afirmar que o esloveno tenha uma variedade modal menor ou que disponha de menos meios linguísticos para marcar o valor condicional em contraste com o português europeu. Numa língua, existem meios linguísticos não verbais, como mecanismos pragmáticos e até extralinguísticos que, substituindo a abundância predicativa, podem marcar os mesmos valores noutra língua. A extensão e a complexidade do tempo e modo gramatical nas línguas românicas é indubitável e faz com que às vezes fiquemos com a impressão de que outras línguas – como o esloveno, uma língua eslava – não conseguem veicular os mesmos valores de forma tão variada e pormenorizada. Porém, de vez em quando esquece-se que a realidade linguística vai para além das ocorrências verbais e pode tomar cargo de outras funções morfosintáticas, desempenhando distintos valores de forma equivalentemente pertinente e variada. Neste ponto, é preciso acrescentar que as construções acima apresentadas, que marcam o valor condicional, são apenas algumas das possíveis formas e hipóteses de exprimir o conceito da condicionalidade nas duas línguas. É desejável que este tema venha a ser elaborado e desenvolvido num próximo estudo e que este seja apenas uma introdução na investigação desta área linguística. Bibliografia Afonso, A. C. G. (2018): O Condicional/Futuro do Pretérito, entre tempo e modalidade. Dissertação de Mestrado em Linguística. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa. Brocardo, M. T., Barros, A. L. (2016): Estudos sobre o verbo em português: valores, marcas e construções. João Pessoa: Ideia. Comrie, B. (1985): Tense. Cambridge: Cambridge University Press. Cunha, C., Cintra, L. (2005): Nova Gramática do Português Contemporâneo. Lisboa: Edições João Sá da Costa. Gosselin, L. (2008): «De la distinction entre la dimension temporelle de la modalité et la dimension modale de la temporalité» Em: Cahiers de praxématique (47). Montpellier: Pulm, 21-52. Kunst-Gnamuš Kunst-Gnamuš, O. (1994): Performativni glagoli v opisni slovnici slovenskega jezika. Jezik in slovstvo, 189-198. Marques, R. (2013): «Modo». Em: Eduardo Buzaglo Paiva Raposo et al.: Gramática do português. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 673-693. Merle, J. M. (2001): «Le conditionel: temps ou mode» Em: Étude du conditionnel français et de ses traductions en englais. Linguistique contrastive et traduction (n° spécial), 10-23. Muller, B. (2013): «Os paradigmas verbais em esloveno em contraste com português europeu». Em: Jasmina Markic, Clara Nunes Correia: Descrições e contrastes. Tópicos de gramática portuguesa com exemplos contrastivos eslovenos. Ljubljana: Znanstvena založba FF UL. Oliveira, F. (2003): «Os tempos gramaticais». Em: M. Helena Mateus et al.: Gramática da Língua Portuguesa (7.ª ed.). Lisboa: Edições Caminho, 153-166. Oliveira, F. (2013): «Tempo verbal». Em: Eduardo Buzaglo Paiva Raposo et al.: Gramática do português. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 509-553. Oliveira, F., Mendes, A. (2013): «Modalidade». Em:Eduardo Buzaglo Paiva Raposo et al.: Gramática do português. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 623-669. Oliveira, T. (2001): «O futuro e o condicional como marcadores de mediativo». Em: Actas do XVI Encontro Nacional da Associação Portuguesa de Linguística, 403-414. Toporišic, J. (1992): Enciklopedija slovenskega jezika. Ljubljana: Cankarjeva založba. Toporišic, J. (2000): Slovenska slovnica. Maribor: Založba Obzorja. Žele, A. (2012): Pomensko-skladenjske lastnosti slovenskega glagola. Ljubljana: ZRC SAZU. Žele, A. (2023): Naklon kot morfoskladenjska kategorija v slovenšcini. Jezik in slovstvo, 68 (1), 35 –51. Considerations regarding the conditional value in European Portuguese and Slovenian with possible challenges in the area of translation Keywords: tense and mode, conditional value, constructions, European Portuguese, Slovenian The initial chapters of the study emphasize the issue of the conditional as a mode and tense in European Portuguese (EP) and Slovenian. Furthermore, the study reveals some considerations regarding the conditional value and grammatical constructions that are used in the two languages to fulfil this modal value. The study aims to present the contexts and values of the conditional and to exemplify the variety and complexity of grammatical constructions through a contrastive analysis. This contribution can also be relevant for future research in the area of translation, as it raises possible questions and challenges that may arise during the translation from one language to another. Further research that conducts a contrastive analysis between European Portuguese and Slovenian would be of great importance for the promotion of this fresh field of studies in the Slovenian academic environment. Nekaj premislekov o pogojni vrednosti v evropski portugalšcini in slovenšcini ter možni prevajalski izzivi Kljucne besede: cas in naklon, pogojna vrednost, konstrukcije, evropska portugalšcina, slovenšcina Uvodna poglavja pricujocega prispevka obravnavajo pogojnik kot naklon in cas v evropski portugalšcini in slovenšcini. V nadaljevanju je izpostavljenih nekaj premislekov o pogojni vrednosti in slovnicnih konstrukcijah, ki se v obeh jezikih uporabljajo za oznacevanje pogojnosti. Cilj študije je opozoriti na posamezne kontekste in vrednosti pogojnika ter s kontrastivno analizo ponazoriti raznolikost in kompleksnost nekaterih slovnicnih konstrukcij. Prispevek ima lahko pomembno vlogo v okviru bodocega raziskovanja na podrocju prevodoslovja, saj odpira vprašanja in izzive, ki se lahko pojavijo ob prehajanju iz enega jezika v drugega, pa tudi na podrocju kontrastivne analize med jezikoma v slovenskem akademskem prostoru. Edvin Derviševic Edvin Derviševic é leitor de língua portuguesa na Faculdade de Letras da Universidade de Liubliana, onde também é doutorando em Linguística. As principais áreas de interesse dele são a fonologia e a morfologia do português, particularmente em contraste com a língua eslovena. Também é tradutor e professor de italiano e esloveno. Endereço Univerza v Ljubljani Filozofska fakulteta Oddelek za romanske jezike in književnosti Aškerceva 2 1000 Ljubljana Slovenija Correio eletrónico: edvin.dervisevic@ff.uni-lj.si Beatriz Oliveira DOI: 10.4312/vh.31.1.57-80 Universidade de Aveiro Samuel Figueira-Cardoso Uniwersytet Warszawski Expressões dêiticas em textos jornalísticos sobre a Covid-19 em português europeu e português do Brasil Palavras-chave: dêixis, linguística textual, português europeu, português do Brasil, Covid-19 A dêixis constitui um processo central na interação entre falantes, ao tratar-se de um conjunto de referências a elementos do contexto comunicativo materializados em diferentes categorias gramaticais (pronomes, demonstrativos, advérbios, locuções adverbiais etc.). Nos estudos linguísticos tradicionais, estas categorias codificam ou gramaticalizam aspetos pessoais, espaciais e temporais do contexto numa dada situação comunicativa - o eu, tu, aqui e agora – e a sua interpretação depende do momento específico da enunciação. Mediante uma análise quantitativa ancorada por uma reflexão qualitativa, o presente estudo descreve e analisa, paralelamente, o uso, frequência e função textual-discursiva de expressões dêiticas em português europeu e português do Brasil em textos jornalísticos sobre a pandemia de Covid-19. Para isso, foi recolhido um corpus constituído por textos escritos, em particular, textos jornalísticos, retirados de jornais online de grande circulação em Portugal e no Brasil, o Expresso e a plataforma G1, respetivamente. A escolha deste género textual prende-se com a sua brevidade, clareza e linguagem com marcas de oralidade, para além da sua função social e informativa. Espera-se, com este estudo exploratório, evidenciar uma compreensão do fenómeno dêitico como estratégia textual-discursiva fundamental para a construção do texto, enquanto contribui para alcançar o projeto de dizer por parte do autor do texto. 1 Introdução Este artigo examina o fenómeno da dêixis em textos jornalísticos que versam sobre a pandemia de Covid-19, escritos em português europeu e português do Brasil (doravante PE e PB, respetivamente). Destacamos que a dêixis se refere ao fenómeno de como a linguagem se associa com o contexto comunicativo em que é utilizada. Pode manifestar-se em várias categorias gramaticais, como pronomes, demonstrativos, advérbios ou locuções adverbiais, que, por sua vez, desempenham um papel fundamental na codificação de aspetos pessoais, sociais, espaciais, temporais, textuais, entre outros, no contexto de comunicação – o eu, tu, aqui e agora. Estas referências são fundamentais para a coerência e coesão textual, bem como para a construção de sentido do texto. Etimologicamente, o termo dêixis deriva do verbo em grego clássico, deíknymi, com o significado de apontar ou indicar. Concomitantemente, este termo pode referir-se à função de unidades gramaticais na frase, sob a forma de dêixis, tendo em conta as coordenadas constitutivas (espácio-temporais e pessoais) do momento de enunciação, i.e., o momento em que o locutor transforma a língua em discurso. Karl Bühler (1934) foi um dos primeiros a sistematizar a dêixis, associando-a à noção de campo mostrativo da linguagem, com a origem no enunciador, no local e no tempo da enunciação. Esta preocupação com o traço ostensivo da linguagem fica marcada nos tipos de dêiticos propostos pelo autor: a dêixis ad oculos refere-se a um objeto presente no campo de visão do falante e a dêixis am phantasma remete para algo na memória dos participantes sem que esteja presente no campo de visão do interlocutor. Nesta abordagem do fenómeno mais tradicional-gramatical, os sentidos são dados e conhecidos; o conceito de dêixis relaciona determinados constituintes linguísticos com o processamento da comunicação. Este campo inclui elementos que supõem uma indicação da situação comunicativa, como pronomes e advérbios que, pelos seus aspetos de ostensão, posteriormente revestem-se de deiticidade e estabelecem uma ligação com a situação de enunciação. Seguindo a perspetiva buhleriana, Fillmore (1997) afirma que os marcadores dêiticos servem como um sistema de coordenadas que ajuda o falante a posicionar a sua perspetiva no momento da enunciação. Estes marcadores ativam um sistema de orientação que permite aos participantes da comunicação interligarem referências pessoais, temporais e espaciais criadas no evento comunicativo. Dos Santos e Morais (2017: 42) acrescentam que, nesta perspetiva, um elemento linguístico só pode ser considerado dêitico se for possível tomar o locutor como a origo e determinar a sua localização no tempo e no espaço do contexto discursivo. Os estudos de Benveniste (1966; 1976; 2014), fundamentados na sua teoria da enunciação, definem a dêixis como propriedades formais de enunciados que são interpretadas no momento específico da enunciação (vertente na qual a perspetiva adotada neste estudo se apoia para responder às perguntas de pesquisa). Desde o ponto de vista da pragmática (cujo objeto de estudo é o uso da linguagem em contexto), a dêixis envolve a relação entre a estrutura da linguagem e o contexto no qual é usada. Esses elementos incluem a identidade dos interlocutores numa situação de comunicação, designada por dêixis de pessoa, o(s) lugar(es) onde se encontram esses indivíduos, denominada dêixis de lugar e o tempo em que o evento comunicativo acontece (Fillmore, 1997), ou dêixis temporal. Nesta lógica, o papel da dêixis «não é o de fazer referência à realidade objetiva, mas fornecer o instrumento de uma conversão: a da língua em discurso (Ciulla, 2020: 207). Ciulla e Martins (2017) enfatizam que, embora a questão formal seja importante para identificar e definir a dêixis, não é suficiente reconhecer o uso do pronome eu. É necessário compreender o papel desempenhado pelo sujeito da enunciação e todos os aspetos complexos que isso implica. Assim, a subjetividade é um fenómeno de grande complexidade e não se limita a uma questão formal de se referir às pessoas envolvidas no discurso. Ancorados na perspetiva enunciativa do estudo da dêixis, o nosso principal objetivo é ampliar a compreensão da dêixis em géneros pouco explorados na literatura. Ao mesmo tempo, analisamos linguístico-discursivamente os usos e as escolhas lexicais engendradas pelos autores dos textos jornalísticos selecionados e as implicações pragmáticas da dêixis na (co)construção de sentidos, para alcançar um projeto de dizer. Por outras palavras, iremos observar de que forma no texto se pode estabelecer uma relação entre o universo dos signos linguísticos e a realidade do falante. 2 Método de pesquisa Partimos de uma revisão do estado da arte sobre a noção de dêixis e sua tipologia nos estudos de Levinson (1983: 2004), Fonseca (1989), Cavalcante, Custódio Filho e Brito (2014), bem como de Oliveira e Figueira-Cardoso (2023). A principal questão investigativa que guia o nosso estudo é a seguinte: como se dá o fenómeno da dêixis em notícias em PB e PE, considerando a sua tipologia, frequência e função textual-discursiva? E o que esses usos podem revelar sobre as estratégias textuais-discursivas e argumentativas do autor do texto? Com estas questões em mente, descreveremos, a seguir, os procedimentos metodológicos implicados, além de apresentarmos o corpus de estudo. Reunimos um corpus em PE e PB que consiste em n=24 textos jornalísticos retirados de jornais de grande circulação em Portugal e no Brasil, o Expresso e a plataforma G1, pertencente à Rede Globo. O jornal semanal Expresso foi criado em 1973 por Francisco Pinto Balsemão com a pretensão de aproximar o jornalismo português ao jornalismo britânico, ao estilo do The Sunday Times e The Observer. O jornal tem cerca de 585.400 leitores. O G1 reúne a produção jornalística de todos os jornais afiliados à empresa, abrangendo todo o território nacional do Brasil, seguindo um padrão editorial. Neste sentido, o jornal e a plataforma foram escolhidos devido ao seu elevado número de leitores, disponibilidade em formato digital e acesso gratuito a grande parte do conteúdo, no caso do Expresso, e na íntegra, no caso das reportagens vinculadas no G1. Para a recolha de dados, foram considerados 24 textos que versam sobre a pandemia de Covid-19, pertencentes ao domínio discursivo11 No entendimento de Marcuschi (2008: 194), os domínios discursivos «operam como enquadres globais de superordenação comunicativa, subordinando práticas sociodiscursivas orais e escritas que resultam nos géneros». jornalístico, publicados entre 1 de fevereiro de 2020 e 28 de fevereiro de 2022. Mediante a ferramenta de pesquisa on-line dos jornais, procurámos as seguintes palavras-chave: Covid-19, corona vírus, pandemia. A preferência pelo texto jornalístico para a análise contrastiva deve-se ao facto de apresentar uma linguagem informativa, clara e, no caso de entrevistas e notícias, com marcas da oralidade, sob a forma de discurso direto. É também detentor de uma função social, na medida em que, para além de informar e difundir o conhecimento, pode ser determinante nas transformações da sociedade ao contribuir para a reflexão, formação de opinião e pensamento crítico da sociedade (Baltar, 2006). Partimos do pressuposto de que a realidade mundana não está segmentada da forma como a concebemos, e as coisas não estão no mundo da maneira como as dizemos aos outros; construímos as coisas discursivamente (Figueira-Cardoso, 2022a; 2022b). Esta perspetiva não pressupõe um mundo objetivo, imutável e estável, mas sim uma intersubjetividade construída, pelo que trata o discurso como um processo dinâmico em vez de um produto estabilizado. Para a análise quantitativa, recorremos ao programa Lancsbox 6.0. desenvolvido pela Universidade de Lancaster, no Reino Unido. Trata-se de um software de nova geração gratuito que inclui uma grande variedade de ferramentas relevantes para a análise de dados da linguagem. Para além de estatísticas, oferece a possibilidade de identificar, com precisão, o número de ocorrências de determinados termos, bem como gerar gráficos relacionados com eles. Dessa forma, escolhemos duas ferramentas para auxiliar na análise dos dados: Key Word In Context (KWIC), para a procura de termos contextualizados nos arquivos que constituem o corpus (Brezina, Weill-Tessier & McEnery, 2021), facilitando a identificação dos dêiticos sob análise no texto como um todo e Graphcoll, para a criação de redes de colocações linguísticas. 3 Fenómenos dêiticos em textos jornalísticos Georges Kleiber aponta que a dêixis esteve na «origem de duas importantes evoluções em linguística: a anulação do dogma saussuriano língua-discurso, com ênfase dada à enunciação, e o surgimento da pragmática, pela ampliação da semântica vericondicional às frases que contêm dêiticos» (Kleiber, 2013: 268). Estes deslocamentos são possíveis na medida em que são utilizadas abordagens interdisciplinares no tratamento dos dêiticos. Como explorado de forma mais exaustiva num estudo recente de Oliveira e Figueira-Cardoso (2023) sobre os desdobramentos dos estudos da dêixis, observa-se que existem duas perspetivas na compreensão desse fenómeno: uma mais tradicional, com foco na gramática, e outra fundamentada na análise enunciativa. Nesta última, a dêixis é tratada como uma estratégia textual discursiva de construção de objetos de discurso. Para além disso, em ambas as correntes, são propostas classificações de dêiticos com base em diferentes critérios e que, em alguns casos, se sobrepõem. A classificação mais tradicional e difundida da dêixis – pessoal, espacial e temporal – é atribuída a Lyons (1977) e Fillmore (1997), às quais mais tarde Levinson (1983: 2004) acrescenta a social e textual/discursiva. Nas pesquisas linguísticas mais recentes de base sociocognitiva e interacionista tem-se a seguinte classificação: pessoal, social, espacial, temporal e memorial (Calvalcante et al., 2014; Martins, 2019). A dêixis pessoal refere-se à identidade dos interlocutores numa determinada situação comunicativa, permitindo a distinção entre o falante, o ouvinte e as demais entidades que estão presentes na situação comunicativa, mas que não fazem parte do par emissor/recetor (Trask, 1999). Em PE expressa-se mediante: - Pronomes pessoais da 1ª pessoa (semântica22 Raposo et al. (2013: 897-900) distingue a pessoa semântica da pessoa gramatical. ) do singular (eu, me, mim, comigo) e plural (nós, a gente, nos, se, connosco); - Pronomes pessoais da 2ª pessoa (semântica) do singular (tu, você, te, o, a, se, lhe, ti, si, contigo, consigo) e plural (vós, vocês, vos, se, vós, convosco); - Pronomes pessoais da 3ª pessoa do singular (ele, ela, o, a, se, lhe) e plural (eles, elas, os, as, se, lhes) quando assinalam um terceiro participante no evento comunicativo ou, de acordo com Benveniste (1966), uma «não pessoa», i.e., aquilo/aquele(s) de que/quem se fala; - Determinantes e pronomes possessivos (meu, minha, teu, tua, seu, sua, nosso, nossa, vosso, vossa); - Morfemas verbais, sendo o português uma língua de sujeito nulo (Queres um café?); - Vocativos (João, vem aqui!). Por motivos de espaço, quanto aos dêiticos pessoais centramo-nos apenas em pronomes pessoais da 1ª e 2ª pessoa semântica (eu, tu, você, nós, a gente, vocês). No corpus de PE, o dêitico eu regista n=63 ocorrências e aparece associado de forma mais próxima ao pronome relativo que (cf. Figura 1). O mesmo acontece em PB que conta com n=23 ocorrências do dêitico de 1ª pessoa, também associado ao pronome relativo que (cf. Figura 2). Figura 1: Dêitico eu em PE. Figura 2: Dêitico eu em PB. Em PE, não verificámos o uso dos dêiticos tu e você. Em vez do uso explícito dos pronomes no discurso direto entre o jornalista e o entrevistado, prefere-se empregar a elipse do sujeito, indicando-o no morfema verbal, tal como se transcreve em seguida: (1) «O que recorda do primeiro doente que vos chegou?» (EX01MAR20)33 Para a análise quantitativa, codificamos o corpus da seguinte forma: Nome do jornal (EX para Expresso ou PG para plataforma G1) + Número do texto + Mês + Ano de publicação. Por exemplo: EX01MAR20. (2) «Que ensinamentos retira daqui?» (EX04DEZN20) O corpus em PB não inclui o dêitico tu, nem é usado o morfema verbal de segunda pessoa. Dá-se preferência ao uso explícito do pronome pessoal você, que conta com n=35 ocorrências (cf. Figura 3). Contudo, cabe ressaltar que, em PB, o pronome tu ainda mantém alguma prevalência em determinadas regiões e situações, embora se apresente menos comum quando comparado à utilização de você. Adicionalmente, nas variedades do PB que preservam a conjugação específica para tu, o morfema verbal de segunda pessoa também se encontra presente. É o que evidencia Castilho (2010), ao apontar a crescente substituição do pronome tu por você, ao analisar o corpus do Projeto NURC, que compilou dados de cinco capitais brasileiras (Recife, Salvador, São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre), entre 1970 e 1978. Neste estudo, identificou-se somente 0,25% de ocorrências do pronome tu, especialmente concentradas em falantes de Porto Alegre, contra 99,75% de ocorrências do pronome você. Segundo o autor, esta evidência demonstra que o uso do tu foi praticamente erradicado nas capitais brasileiras (Castilho, 2010). Não obstante, cumpre salientar que a aplicação destas observações de maneira universal para todo o PB é inviável. A adoção do pronome tu e do morfema verbal de segunda pessoa pode oscilar com base em aspetos regionais, contextuais, sociolinguísticos e referenciais. Este último é objeto de discussão em Zilli (2009), para quem tais pronomes podem assumir diferentes referências ou significados. Por outras palavras, podem ser empregados para aludir ao interlocutor, a um conjunto definido, específico ou genérico, conforme o contexto. Em estudos anteriores de Duarte (1993), Rumeu (2013), Othero (2013), entre outros, observou-se que a incorporação do pronome você ao paradigma pronominal do PB surgiu por volta de 1930 e rapidamente se consolidou na função de sujeito, e o seu uso já era uma característica amplamente difundida no Brasil desde o século XVIII. Figura 3: Dêitico você em PB. No corpus em PE, a expressão a gente não tem função de dêitico, mas é usada como um nome (sinónimo de as pessoas), acompanhado do quantificador toda, a saber: (3) «nem a pensar muito nos outros. Toda a gente parece muito preocupada só com a sua» (EX02AGO20) (4) «de doentes. Equipámo-nos à frente de toda a gen­te. A doente parecia uma relíquia. Ficou internada» (EX03JUN20) (5) «que é a China, de onde toda a gente sai e para onde toda a gente» (EX04DEZ20) Já em PB, a expressão dêitica a gente conta com n=85 ocorrências em 11 dos 12 textos selecionados, o que representa quase a totalidade da amostra. Verificou-se que o uso da expressão a gente é dado a partir do uso de discurso direto do entrevistado, uma característica principalmente das notícias nas quais o jornalista usa a palavra do outro a fim de corroborar o seu relato dos factos. (6) «explicou Mandetta. “Quando a gente confirma o caso, imediatamente isso é comunicado» (PG01FEV20) (7) «uma jornalista disse ao presidente: “A gente ultrapas­sou o número de mortos da China» (PG02ABR20) (8) «jurídica. “A linguagem é muito técnica, e a gente fica sem entender qual é o próximo» (PG04DEZ21) (9) «esse mundo, ele topou a ideia, mas a gente também queria ter um filho biológico”, explica.» (PG04DEZ21) (10) «cerca de 70 pacientes em estado crítico. “A gente fi­cou períodos sem relaxante» (PG05DEZ21) Em PE, prefere-se o uso de nós em vez de a gente, tal como é possível observar nas suas n=27 ocorrências (cf. Figura 4). Em PB, o uso de nós é reduzido em comparação com a expressão a gente, na medida em que conta apenas com n=16 ocorrências. (cf. Figura 5). Figura 4: Dêitico nós em PE. Figura 5: Dêitico nós em PB. No corpus de PE, de 12 textos, em apenas 2 aparece o pronome pessoal vocês, empregado pelo jornalista ao questionar o interlocutor. De n=4 ocorrências, n=3 são de um único texto. Por conseguinte, não podemos fazer generalizações relativamente a vocês devido ao número baixo de ocorrências. O que acontece de forma semelhante nos textos em PB, aparecendo apenas n=5 vezes, em 4 dos 12 textos. Os dados descritos apontam que a dêixis pessoal aparece numa transposição do discurso do outro/entrevistado/interlocutor para o texto jornalístico, i.e., o autor do texto jornalístico usa fragmentos recolhidos nas entrevistas, transpondo-os sob a forma de discurso direto, o que contribui para alcançar o seu projeto de dizer (Koch, 2021). O que se enquadra na função social da notícia de informar ou descrever um facto de forma imparcial. Nesse sentido, ao falar da dêixis pessoal, Benveniste (1976), transpondo a teoria de Bühler para uma conceção enunciativa da linguagem, argumenta que somente os pronomes pessoais eu e tu/você podem tomar a palavra, pertencendo a uma dimensão subjetiva da linguagem, com a função de remeter para a situação enunciativa. Com efeito, Essa referência constante e necessária à instância de discur­so constitui o traço que une a eu/tu uma série de indicadores que pertencem, pela sua forma e pelas aptidões combinatórias, a classes diferentes – uns pronomes, outros advérbios, outros ainda locuções adverbiais. São, em primeiro lugar, os demons­trativos: este etc. na medida em que se organizam correlati­vamente com os indicadores de pessoa, como no lat. hic/iste (Benveniste, 1976: 279). Benveniste aprofunda as ideias de Bühler, distinguindo dois níveis de significação: o nível semiótico, correspondente ao signo ou palavra e a significação interlinguística dentro do sistema onde a chave é distinguir e o nível semântico, correspondente à frase e à situação dentro do discurso e onde o mais importante é compreender. Na teoria do autor, o enunciador é considerado como ponto de referência, pressupondo que para cada eu há um tu pressuposto, e ambos se opõem à não pessoa, referindo-se ao objeto sobre o qual se fala. Neste sentido, tem-se como princípio definidor da dêixis a remissão à instância de discurso que contém eu. Já os dêiticos são traços que unem o eu/tu a outros indicadores no momento da enunciação, como os pronomes demonstrativos este/esse, por remeter para a instância de discurso que contém o eu. Esta teoria pressupõe que cada enunciado é único e irrepetível e, consequentemente, tem como principal foco de estudo o funcionamento da língua num ato individual de utilização, ou seja, quando um indivíduo em concreto se apropria da língua. Além disso, o autor Benveniste (2014: 143) sublinha que, [a]s an individual realization, the enunciation can be defi­ned in relation to language as a process of appropriation. The speaker appropriates the formal apparatus of the language and sets out his/ her position as speaker by specific indices on one hand, and by incidental methods on the other. O sistema linguístico e o processo comunicativo são intrinsecamente ligados, visto que certos elementos da língua apenas adquirem significação ao serem utilizados pelo falante no momento da enunciação. De acordo com o autor, a capacidade do locutor para se propor como sujeito está na subjetividade que tem na língua as suas marcas indicadoras como se determina pelo status linguístico de pessoa. Por conseguinte, os interlocutores, o tempo e o lugar do enunciado identificam-se mediante a sua relação (inter)subjetiva com a situação comunicativa e o contexto de enunciação. Assim, Benveniste (1976: 286) enfatiza que é por meio da linguagem e através dela que o ser humano se constitui como sujeito, pois é a linguagem que fundamenta a realidade e o conceito de ego. A partir da teoria de Benveniste, é possível ampliar o conceito de subjetividade para uma noção de intersubjetividade, uma vez que os papéis de eu e tu na enunciação são assumidos pelos sujeitos, que utilizam a linguagem para marcar a si mesmos e ao outro, alternando entre si esses papéis no momento na enunciação. Nessa abordagem, o traço de ostensão não é o que define a dêixis, embora possa estar presente em muitos casos em que há dêixis. A característica distintiva de um elemento dêitico em relação a outros elementos da língua é sua capacidade de se autorreferir, isto é, de refletir a instância de discurso que contém o eu. A dêixis temporal diz respeito à forma como o tempo dos eventos referidos no discurso (tempo de referência) interage com o tempo da própria frase (tempo de codificação) e o tempo em que a mensagem é recebida (tempo de descodificação) (Fillmore, 1997). Realiza-se em português mediante advérbios e locuções adverbiais de tempo, tais como: ontem, hoje, amanhã, anteontem, depois de amanhã, na semana passada, (n)esta semana, na próxima semana, na semana que vem, etc. (Lopes, 2018: 47). De acordo com Cavalcante et al. (2014), os dêiticos temporais, assim como os espaciais, são considerados indicadores de ostensão, uma vez que apontam para um local específico e estabelecem limites temporais e espaciais com base na posição do falante no momento da enunciação. Em PE, a expressão ontem conta com apenas n=1 ocorrência. Em PB ontem não ocorre em nenhum dos textos. (11) «e absoluta nos artistas e nos técnicos. Ontem fizeram um ensaio geral que parece ter» (EX11MAR22.docx) Analisando a expressão temporal hoje em PE, constatou-se n=10 ocorrências que aparecem em 6 textos (cf. Figura 6). Observámos que esses termos aparecem no discurso direto dos entrevistados, ou seja, parte do discurso transcrito pelo autor da reportagem, assim como acontece na dêixis pessoal. Considerando que uma notícia tem uma data de publicação específica, que geralmente aparece no cabeçalho, no momento da construção do texto, o autor faz uso do discurso do outro e não considera as escolhas linguísticas do entrevistado, privilegiando o seu projeto de dizer. Em PB, hoje ocorre n=17 vezes (cf. Figura 7), sendo em alguns dos excertos sinónimo de atualmente. Figura 6: Dêitico hoje em PE. Figura 7: Dêitico hoje em PB. Enquanto em PE o dêitico amanhã não possui ocorrências, em PB apenas é utilizado n=1 vez. (12) «“pessoas idosas”, disse. “Mas é a vida. Amanhã vou eu.» (PG02ABR20) Expressões temporais que incluem a palavra ano e que constituem dêiticos temporais aparecem 4 vezes em PE: (13) «Mas pode ser importantíssima se para o ano houver um novo surto.» (EX04DEZ2) (14) «da Saúde 24 há mais de um ano, em plena pandemia.» (EX09JAN22) (15) «além disso, afirmou, acrescentaram-se no final do ano passado as dificuldades para encontrar mão de» (EX12MAR22) (16) «Isto é, “quem contratou no ano passado os preços de energia [luz] nomeadamente» (EX12MAR22) Em PB, expressões temporais com a palavra ano consideradas dêiticos. (17) «Rafael Fortuna, de 49, estão há um ano e meio aguar­dando para serem pais.» (PG04DEZ21) (18) «de casos de covid-19 no início deste ano e afirmou que é a primeira vez» (PG08JAN22) (19) «que a gente já desenhou desde o ano passado junto com a Secretaria de Saúde.» (PG09JAN22) Em PE, as expressões temporais com a palavra mês são apenas duas. Curiosamente, no excerto do texto EX12MAR22, o autor recorre a parênteses retos para localizar o leitor temporalmente, o que aponta para uma estratégia textual do autor de explicitar o tempo no qual se dá a enunciação. Isto deve-se ao facto de que uma expressão temporal só será considerada um exemplo de dêixis temporal se fizer referência ao momento em que o locutor se encontra numa dada enunciação. (20) «A Ómicron apareceu na Europa há um mês.» (EX08DEZ21) (21) «postos cá fora até ao final deste mês [março], porque senão a hotelaria tem» (EX12MAR22) Em PB registam-se n=2 ocorrências, sendo que um dos dêiticos vem acompanhado de uma expressão temporal específica separada entre vírgulas. (22) «“vamos aguentar”. O anestesista diz que, nes­te mês, o fluxo finalmente voltou a patamares semelhantes»(PG05DEZ21) (23) «No entanto, há pouco menos de 1 mês, em 25 de ja­neiro, a mesma taxa» (PG12FEV22) Em PE o termo semana (há uma semana, daqui a uma semana, na semana passada, esta semana) aparece da seguinte forma: (24) «que hoje está certo, daqui a uma semana pode ter de ser diferente.» (EX04DEZ20) (25) «Organização Mundial da Saúde (OMS) há uma sema­na» (EX04DEZ20) (26) «A OMS ainda há uma semana dizia que não havia prova nenhuma que» (EX04DEZ20) (27) «pode não o ser daqui a uma semana. E não foi erro.» (EX04DEZ20) (28) «Há coisas que estavam certas há uma semana e uma semana depois já não estão.» (EX04DEZ20) (29) «Na semana passada o jornal francês “Libération” convidou vários» (EX04DEZ20) (30) «Ainda assim, esta semana o Governo voltou a autori­zar a interrupção» (EX05NOV20) (31) «23 anos, deixou de vez há uma semana os atendimen­tos.» (EX09JAN22) (32) «Sandrina Pereira. Há uma semana, Pedro abandonou a linha.» (EX09JAN22) Já no PB o termo semana aparece somente n=1: (33) «Nesta semana, pela primeira vez desde a primeira onda» (PG05DEZ21) A característica definidora de um dêitico é a sua capacidade de estabelecer uma relação entre o contexto e o ato comunicativo, envolvendo os participantes da comunicação. Ora, só podemos identificar a entidade a que ele se refere se soubermos, mais ou menos, quem está a enunciar a expressão dêitica e o local ou o tempo em que esse enunciador se encontra, tratando-se, assim, de uma relação eminentemente intersubjetiva (Benveniste, 1976), (co)construída no momento da interação. Esta é uma característica interessante dos textos analisados, já que se afasta dos pressupostos de Benveniste. O uso da dêixis, no nosso corpus, aparece no discurso do outro e não como parte da enunciação de origem; isto porque, da mesma forma que os dêiticos espaciais indicam uma localização, os dêiticos temporais também funcionam como marcadores de orientação, pois indicam um lugar e estabelecem um limite temporal com base na posição do falante no momento da comunicação, o que não acontece nos textos analisados. A dêixis espacial refere-se à expressão linguística da perceção do falante da sua posição num espaço tridimensional (Fillmore, 1997). Ela denota a relação espacial de elementos em relação ao falante numa dada situação comunicativa, ou como um falante se localiza espacialmente num local físico. Este tipo de dêixis é manifestado por meio de demonstrativos: este(s), esse(s), aquele(s), esta(s), essa(s), aquelas(s), isto, isso, aquilo e advérbios de lugar: aqui, cá, aí, ali, lá (Lopes, 2018: 54). A dêixis espacial diz respeito às coordenadas de lugar da situação enunciativa. Diferentemente da dêixis pessoal e da dêixis social, não se refere aos participantes da situação, mas, sim, a um determinado referente construído, tomando o locutor como ponto de origem. Quanto à dêixis espacial, neste artigo iremos contabilizar apenas a classe dos advérbios de lugar, nomeadamente os termos aqui, cá, aí, ali, lá. Aqui regista o maior número de ocorrências, incluindo n=28 ocorrências em 9 textos do corpus de PE (cf. Figura 8) e n=13 em PB (cf. Figura 9). Figura 8: Dêitico aqui em PE. Figura 9: Dêitico aqui em PB. O advérbio cá conta com n=8 ocorrências em 3 textos em PE e n=0 em PB. O aí regista n=7 ocorrências em 3 textos de PE e apresenta n=5 ocorrências em 5 textos do PB. No entanto, nem sempre funcionam como dêitico espacial. Já o advérbio ali ocorre n=3 vezes nos textos em PE e n=0 no corpus em PB. O advérbio lá em PE conta com n=17 ocorrências em 6 textos (cf. Fig. 10). Atendendo aos objetivos do nosso estudo, centraremos a nossa análise no advérbio lá com função deítica e não de marcador discursivo. Figura 10: Dêitico lá em PE. Em PB, foram identificadas n=5 ocorrências em 3 textos, predominantemente em fragmentos de discurso direto: (34) «da primeira onda da pandemia até agora. “Lá em 2020, na primeira onda, a maioria» (PG05DEZ21) (35) «gente entrava nas UTIs e quem estava lá eram pessoas da nossa idade, pais de» (PG05DEZ21) (36) «já vai estar decaindo, aí você vai lá e toma a vacina» (PG11JAN22) (37) «posto de saúde, a criança já está lá, então, facilita mui­to a logística» (PG11JAN22) (38) «a disseminação estava em alta no país. “Lá em 2 de janeiro deste ano» (PG12FEV22) A dêixis espacial consiste nas coordenadas de localização na situação de discurso, diferindo-se das dêixis pessoal e social, que se referem aos participantes do discurso. Em vez disso, a dêixis espacial refere-se a um referente específico, considerando o locutor como o ponto de origem. Sem autorreferência, a dêixis espacial é pressuposta, pois faz referência a uma entidade não pessoal, i.e., um objeto de discurso posicionado a partir do locutor. De acordo com as classificações mais atuais (Fonseca, 1998; Levinson, 2004; Cavalcante et al., 2014; Martins 2019), incluem-se ainda a dêixis social, dêixis discursiva ou textual, a dêixis de memória, a dêixis fictiva e a dêixis modal. No entanto, estas categorias não foram identificadas no corpus em PE e PB, pelo que as deixaremos como objeto de estudo em pesquisas futuras. 4 Considerações finais A dêixis é responsável por importantes avanços e deslocamentos nos estudos linguísticos, que se ocupam de como o falante usa a linguagem para a construção de texto e sentido e as relações entre linguagem e contexto. Defendemos, neste artigo, a importância deste fenómeno na construção textual dos sentidos, com atenção a textos jornalísticos, explorando aspetos pouco estudados pelos estudiosos interessados no tema. A principal pergunta à qual procurámos responder no nosso trabalho foi de que forma se dá o fenómeno da dêixis em textos jornalísticos em PB e PE publicados em formato digital, considerando a sua tipologia, frequência e função textual-discursiva. Tentámos examinar igualmente como é que os dêiticos contribuem para a construção textual e de sentidos. Com o objetivo de responder a estas questões, concentrámo-nos numa análise qualitativa, recorrendo a instrumentos de natureza quantitativa, a saber: a ferramenta de análise de dados linguísticos LancsBox, para analisar a frequência de expressões dêiticas. Adicionalmente, explorámos o posicionamento e contexto frásico, observando as implicações na progressão textual e no projeto de dizer do autor do texto. Os resultados das análises apontam que: i. Enquanto em PE se dá preferência à elipse de dêiticos pessoais sob a forma de pronomes pessoais, nomeada­mente da 2ª pessoa semântica (tu e você/s), em PB regis­taram-se ocorrências dos dêiticos você e a gente, sendo que este último surge no discurso direto do entrevistado, confirmando o relato do jornalista. Importa relembrar que, ao contrário de PB, em PE, a expressão a gente não possui a função de dêitico. Em vez dela, emprega-se o pronome pessoal nós. ii. Foram registadas ocorrências de dêiticos temporais nas duas variantes, nomeadamente o advérbio hoje, que, tal como acontece com a dêixis pessoal, surgem no discur­so direto dos entrevistados, privilegiando o seu projeto de dizer e a situação comunicativa real. Por conseguin­te, no momento de leitura, as coordenadas temporais do leitor não irão coincidir com as coordenadas transcritas no diálogo do entrevistado e, possivelmente, com a data de publicação do texto que, geralmente, é incluída no ca­beçalho. Apenas se verificou uma ocorrência de um dêi­tico temporal – mês, sucedido do mês em questão entre parênteses retos, de forma a explicitar o tempo no qual se dá a enunciação e localizar o leitor temporalmente. iii. No que diz respeito à dêixis espacial, o advérbio aqui oco­rre com maior frequência no corpus de ambas as varian­tes, predominando, tal como a dêixis pessoal, temporal e espacial no discurso direto do entrevistado. De facto, os dados apontam que, nos textos jornalísticos analisados, os autores usam com frequência transcrições diretas daquilo que foi dito pelos entrevistados, sob a forma de discur­so direto. Neste seguimento, a notícia desempenha a sua função social, que passa por informar ou descrever um facto (de forma imparcial), porém atende ao projeto de dizer do autor do texto. Como vimos, esta é uma caracte­rística curiosa, já que se afasta dos pressupostos teóricos de Benveniste. iv. Por último, não foram registadas no corpus ocorrências da dêixis de tipo social, textual, de memória, fictiva e mo­dal, em ambas as variantes. A nossa hipótese é de que a presença destas categorias pode estar condicionada pelo género textual-discursivo e tipo de sequência textual. Em trabalhos futuros, pretendemos prosseguir um estudo contrastivo mais exaustivo sobre a dêixis, tanto entre as duas variantes do português, como entre outras línguas, direcionando-o para o contexto de português como língua adicional, em diferentes géneros discursivos e multimodais. Referências bibliográficas Baltar, M. (2006): Competência discursiva e gêneros textuais: uma experiência com o jornal de sala de aula. Caxias do Sul: EDUCS. Benveniste, E. (1966): «Problèmes de linguistique générale, 1 vol». Les Etudes Philosophiques, 21(3). Benveniste, E. (1976): Problemas de Linguística Geral I. São Paulo: Editora Nacional. Benveniste, E. (2014): «The formal apparatus of enunciation». 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Through a quantitative analysis supported by qualitative reflection, the present study describes and analyses, in parallel, the use, frequency, and textual-discursive function of deictic expressions in European and Brazilian Portuguese within journalistic texts about the Covid-19 pandemic. For this purpose, a corpus consisting of written texts, particularly journalistic texts, taken from widely circulated online newspapers in Portugal and Brazil, namely Expresso and the G1 platform, respectively, was collected. The choice of this genre is due to its brevity, clarity, and language with marks of orality, in addition to its social and informative function. With this exploratory study, we aim to highlight an understanding of deixis as a fundamental textual-discursive strategy for text construction, while contributing to the achievement of the author’s communicative intention. Deikticni izrazi v novinarskih besedilih o Covidu-19 v evropski in brazilski portugalšcini Kljucne besede: deiksis, besedilno jezikoslovje, evropska portugalšcina, brazilska portugalšcina, Covid-19. Deiksis je eden temeljnih procesov v interakciji med govorci, saj gre za nabor sklicevanj na elemente komunikacijskega konteksta, ki se uresnicujejo prek razlicnih slovnicnih kategorij (zaimki, kazalni zaimki, prislovi, prislovne besedne zveze itd.). V tradicionalnih jezikoslovnih študijah te kategorije kodirajo ali slovnicno oznacujejo osebne, prostorske in casovne vidike konteksta v vsaki komunikacijski situaciji – jaz, ti, tukaj in zdaj –, njihova interpretacija pa je odvisna od specificnega trenutka izjavljanja. Pricujoci prispevek s kvantitativno analizo, podprto s kvalitativno refleksijo, opisuje in vzporedno analizira rabo, pogostost in besedilno-diskurzivno funkcijo deikticnih izrazov v evropski in brazilski portugalšcini v novinarskih besedilih o pandemiji Covida-19. V ta namen je bil zbran korpus pisnih besedil, zlasti novinarskih, povzetih iz zelo razširjenih spletnih casopisov na Portugalskem in v Braziliji, in sicer Expresso oziroma platforma G1. Ta žanr smo izbrali zaradi njegove kratkosti, jasnosti ter socialne in informativne funkcije. S tem raziskovalnim prispevkom želimo osvetliti razumevanje deikticnih izrazov kot temeljne besedilno-diskurzivne strategije, ki sodeluje pri tvorjenju besedila, hkrati pa prispeva k uresnicevanju avtorjevega sporocilnega namena. Beatriz Oliveira44 ORCID: 0000-0001-6173-8605 Beatriz Oliveira, doutoranda em Ciências da Linguagem, investigadora do Centro de Línguas, Literaturas e Culturas (CLLC) e docente de Português Língua Estrangeira na Universidade de Aveiro. Atualmente realiza um estudo contrastivo do Português Europeu e do Espanhol, nas áreas da Pragmática Intercultural e Interlinguística. Tendo lecionado Português como Língua Estrangeira na Universidade Carolina de Praga (República Checa) e na Universidade de Ljubljana (Eslovénia), os seus interesses de investigação abrangem também a aquisição do português por falantes de línguas eslavas. Endereço: Universidade de Aveiro Campus Universitário de Santiago 3810-193 Aveiro Portugal Correio eletrónico:: beatriz.oliveira95@ua.pt Samuel Figueira-Cardoso55 ORCID: 0000-0003-0680-458X Samuel Figueira-Cardoso, doutorando em Lingüística na Escola Doutoral de Humanidades da Universidade de Varsóvia. É membro do Grupo de Pesquisa Iandé-Línguas e Culturas Brasileiras e professor do Departamento de Estudos Brasileiros do Instituto de Estudos Ibéricos e Ibero-Americanos da mesma instituição. Endereço: Uniwersytet Warszawski Instituto de Estudos Ibéricos e Ibero-americanos ul. Obozna 8 00-332 Warszawa Poland Correio eletrónico: s.figueira-ca2@uw.edu.pl Clara Nunes Correia DOI: DOI: 10.4312/vh.31.1.81-95 Universidade Nova de Lisboa NOVA FCSH / CLUNL Era uma vez... o imperfeito em Português Europeu Contemporâneo “Nas suas mãos a voz do mar dormia Nos seus cabelos o vento se esculpia (...)”1* Este texto é dedicado à Teresa Brocardo (1959-2023). Como ninguém, ela sabia o que era o tempo e que o tempo, mesmo imperfeito, não tem limites. Tal como a amizade. Porque trabalhámos em conjunto os tempos ao longo de muito tempo. Porque a lembrarei sempre como vento e mar. Trabalho financiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e Tecnologia, I.P., no âmbito do projeto UIDB/LIN/03213/2020 e UIDP/LIN/03213/2020 – Centro de Linguística da Universidade NOVA de Lisboa (CLUNL). Sophia de Mello Breyner Palavras-chave: imperfeito, imperfetividade, referência, enunciação, plano enunciativo Nos estudos dos tempos gramaticais em Português Europeu Contemporâneo as propriedades temporais e aspetuais que caracterizam as diferentes sequências linguísticas marcadas com o imperfeito do indicativo interrelacionam-se. Por essa razão, o estudo do imperfeito – tomando em consideração aqui os valores estritamente temporais e aspetuais – obriga a ativar um conjunto de suportes que parecem ser importantes para a compreensão dos seus diferentes valores. De acordo com propostas teóricas como as que se integram numa perspetiva enunciativa, o imperfeito caracteriza-se por permitir a interseção de diferentes planos enunciativos. Estes planos relacionam-se através de adverbiais temporais e/ou aspetuais que os ‘ligam’, permitindo, assim, a interpretação das diferentes sequências. Deste modo, se observarmos uma sequência como esta só se torna um enunciado (validado como tal) se coocorrer, com essa sequência, um adverbial temporal, ou um adverbial aspetual com valor de iteratividade. Havendo em português outras formas verbais disponíveis para marcar anterioridade e imperfetividade, neste trabalho, visa-se descrever alguns valores que o imperfeito do indicativo exibe, relacionando-o com tempos marcadores de anterioridade (como o pretérito perfeito simples (pps)) ou tempos (como o presente ou o pretérito perfeito composto (ppc)), que podem igualmente evidenciar uma leitura iterativa e não perfetiva. 1 Introdução A maioria das histórias infantis em português inicia-se, de uma forma geral, pela construção ‘Era uma vez...’. Assim, desde muito novos, os falantes apreendem que a Branca de Neve, a Bela Adormecida, e todas as histórias de encantar se desenrolaram num tempo que já passou, e numa outra dimensão espácio-temporal, difícil de fixar, impossível de delimitar. E esta capacidade de se falar de algo que existia num espaço e num tempo que não interceta este em que eu estou a falar é-nos dada pelas formas do imperfeito do indicativo. Possivelmente é também essa possibilidade de construção de um plano outro que não o do plano da enunciação que permite compreender por que razão o imperfeito é considerado, habitualmente como o tempo da ‘descrição’. 2 O imperfeito do indicativo: valores temporais e aspetuais Nos estudos dos tempos gramaticais em Português Europeu Contemporâneo (PEC) as propriedades temporais e aspetuais que caracterizam as diferentes sequências linguísticas marcadas com o imperfeito interrelacionam-se. Por essa razão, o estudo deste tempo gramatical – tomando em consideração aqui as suas aceções estritamente temporais e aspetuais22 Em PEC, o imperfeito do indicativo pode assumir valores temporais-aspetuais (o objeto de estudo deste trabalho), mas também leituras modais, sendo nestes casos designado, de forma mais informal, como imperfeito de delicadeza. Exemplos como “Eu queria um café, por favor.’’ / “O senhor podia chamar o João, por favor?”. Em PEC esta forma pode ser intermutável pelo presente do indicativo, sendo marca de uma maior delicadeza se se usar o imperfeito. Embora também possível em PEC, verifica-se que, no Português do Brasil, este valor de delicadeza é feito de forma mais natural através de formas do futuro do pretérito, em situações de interação de 1ª/2ª pessoas: “O senhor /você poderia, por gentileza, chamar o João?”. – obriga a ativar um conjunto de suportes que parecem importantes para a compreensão dos seus diferentes valores. A afirmação de Oliveira (2015: 9) em que mostra que “o imperfeito [...] apresenta a possibilidade de associar à informação do passado a informação de que a predicação deixou de se aplicar ou de ser relevante no tempo da enunciação [...]”, poderá ser reformulada: as sequências com o imperfeito só ganham relevância no momento da enunciação, porque incorporam na sua definição sequências linguísticas - como os adverbiais temporais e aspetuais - que permitem interpretar essas sequências. Assim, e de acordo com esta proposta, que se pode inscrever numa perspetiva enunciativa (cf., e.o., Sousa (2007), para o português, e Lebaud (1993), para o francês), o imperfeito caracteriza-se por desencadear – conjuntamente com os adverbiais presentes no enunciado – a interseção de dois planos enunciativos disjuntos. Essa interceção é definida a partir de uma operação de translação, funcionando os adverbiais temporais e/ou aspetuais como operadores dessa operação. Deste modo, e seguindo essa proposta, se observarmos uma sequência como , esta só será interpretada como um enunciado33 Entende-se aqui enunciado como uma sequência linguística formalmente definida e não como um ato de fala, ou uma locução. Assim, um enunciado é uma sequência linguística sintática e semanticamente bem formada, localizada em relação ao sistema referencial. Nesta aceção distingue-se um enunciado, exemplificado como: < quando era pequena, a Joana cantava logo que acordava>, de um enunciável: , de um não-enunciado: < #A Joana e a Maria cantava amanhã>. (validado como tal) se existir um adverbial temporal que a localize em relação ao tempo da enunciação (T0), ou um adverbial aspetual que lhe confira uma leitura de iteratividade. 3 O imperfeito e os outros tempos 3.1 O pretérito perfeito simples e pretérito perfeito composto A partir da observação de sequências construídas (baseadas na validação dos falantes), na descrição que me proponho realizar, escolhi – pelas suas propriedades estáveis – a manipulação controlada de predicações com verbos como e , analisados como verbos que podem exemplificar situações consideradas eventos ou atividades, na terminologia de Vendler (1967), quer situações estativas, construídas com predicados como . É importante sublinhar que, em ambos os casos, – e com estes predicados – C044 Assume-se neste trabalho, e seguindo de perto, e.o., Pereira (2009), C0 como o argumento ‘externo’ do verbo, tendo, regra geral a função de sujeito e C1 o argumento interno, cuja função sintática é, para verbos transitivos, a de complemento de objeto direto. é preferencialmente agentivo, ou pelo menos [+animado]. Note-se que, consoante a ocorrência de C1, tanto pode desencadear situações interpretadas como evento prolongado­ , quer como atividade < a Joana canta ópera>. Em (1) Pode observar-se como se comporta quando, no imperfeito, existe uma interpretação de evento prolongado (como em 1.a) ou de atividade (como em 1.b): (1.a) A Joana cantava uma canção e depois adormecia (1.b) Quando era nova / antigamente /..., a Joana cantava || a Joana cantava bem /mal|| a Joana cantava ópera || a Joana cantava na Gulbenkian /... Quando o predicado é estativo, aparentemente existe a obrigatoriedade da coocorrência nessa predicação de adverbiais temporais com valor de anterioridade, como se observa em (2): (2) ? A Joana gostava de peixe || Quando era nova / antiga­mente /..., a Joana gostava de peixe... Note-se que, tanto em (1.b), como em (2), a interpretação privilegiada, tendo em conta a ocorrência do imperfeito, é a de que, no momento da enunciação, , e < a Joana já não gosta de peixe>. Sendo ambos os predicados, tal como Carlson (2012) referiu, predicados de indivíduo (cf., e.o., Carlson (2012) e Oliveira (2015)) a ocorrência do imperfeito na oração principal permite mostrar, de forma satisfatória, o que se disse anteriormente: com o imperfeito dá-se a construção de um outro plano enunciativo, que se liga ao plano da enunciação através de adverbiais temporais que localizam o estado de coisas construído, permitindo, desse modo, a interpretação do enunciado. Essa localização é, no entanto, e de alguma forma ‘imprecisa’. Essa não precisão resulta, de certo modo, da articulação com adverbiais temporais marcadores de anterioridade, mas que apontam para um intervalo de tempo preferencialmente não dêitico, e sobretudo não inclusivo. Numa primeira análise, poder-se-á dizer que o imperfeito, nestes casos, desencadeia uma leitura temporal de anterioridade, mas porque não há delimitação do acontecimento linguístico construído, obriga a uma leitura aspetual não delimitada. Note-se que, se reorganizarmos a informação com o recurso a predicados de fase, vamos encontrar alguma resistência interpretativa: , mas . Esta observação permite afirmar-se que, na construção de sequências do português com o imperfeito, estas podem ser interpretadas como a descrição de acontecimentos já realizados (em relação ao momento da enunciação), apresentando, no entanto, algumas particularidades que importa sublinhar: sempre que há a construção de uma sequência com o imperfeito – qualquer que seja a natureza do predicado – existe a necessidade de se recorrer a um localizador (temporal) que permita estabelecer a ancoragem em relação ao momento da enunciação. Esse localizador tem o estatuto de adverbial temporal. Se quisermos sintetizar algumas características das propriedades das predicações com imperfeito, poderemos dizer que (i) na inter-relação com predicados estativos necessitam existir ajustamentos de natureza semântica, consoante os predicados são permanentes ou transitórios; (ii) numa sequência em que a situação construída apresen­ta um predicado cuja leitura preferencial é de atividade (), a leitura aspetual sobre­põe-se à leitura temporal. Neste caso, a paráfrase espera­da seria: . Se se seguir o conjunto de possibilidades da ocorrência do imperfeito em sequências do português e se se realizar a sua intersubstituição com outros tempos gramaticais – nomeadamente com o pretérito perfeito simples (pps) (1.c) e o pretérito perfeito composto (ppc) (1.d)55 Sobre os valores em português do pps, ver, e.o., Correia (2016). Sobre os valores do ppc, v. sobretudo, Campos (1997). , poderemos delimitar – por aproximação e por afastamento – algumas propriedades que julgamos importante sublinhar. Observe-se os exemplos abaixo: (1.b) A Joana cantava [ópera] /? ultimamente / antigamente / quando era pequena (1.c) A Joana cantou [ópera] ultimamente / antigamente / quando era pequena (1.d) “A Joana tem cantado [ópera] ultimamente /# antiga­mente / #quando era pequena (2.a) A Joana gostava de peixe /? ultimamente / antigamen­te / quando era pequena (2.b) A Joana gostou de peixe # ultimamente/ antigamente / quando era pequena (2.c) A Joana tem gostado de peixe ultimamente / # antiga­mente //# quando era pequena A partir do paradigma construído acima, poderemos observar que, preferencialmente, no seu uso não transitivo, parece poder ocorrer quer com o imperfeito, quer com o pps. Em ambos os casos a leitura é tipicamente de anterioridade, i.e. as sequências são interpretadas como acontecimentos que já não ocorrem no presente. Como seria expectável, com o ppc, (exemplos de (1.d)), o acontecimento linguístico construído inclui o momento da enunciação na sua definição66 Note-se que, para cada caso serão utilizados exemplos em que se apresentam apenas situações construídas com verbos que desencadeiam – pelas suas propriedades – situações construídas como ‘eventos’ ou como ‘estados’. Sempre que necessário, chamar-se-á a atenção para situações em que esta oposição possa ser relevante. . Com predicados de natureza estativa, e tal como podemos observar nos exemplos de (2.a) a (2.c), a manipulação do enunciado com a alteração dos tempos gramaticais exige ajustamentos de adverbiais, por um lado, e, por outro, do objeto que lhe está associado. Assim, tem uma leitura diferente, dependendo essa leitura do tempo gramatical em que está flexionado. Assim, a não possibilidade de associar ao ppc adverbiais de natureza inclusiva bloqueia a coocorrência com esses adverbiais. Será igualmente importante referir que a ordem das palavras é também aqui relevante: a estranheza de , pode desaparecer se o adverbial ocorrer no início do enunciado: , pressupondo-se, neste caso, que, subjacente a essa leitura possa existir uma não aceitação da informação por parte do interlocutor: “Estranho que me digas que ela afirme que não gosta de peixe”. Um outro aspeto que importa referir é o efeito de quando coocorre com formas do imperfeito. Veja-se, a título de exemplo, os exemplos de (3.a) e (3.b): (3.a) A Joana já cantava / já cantou / já tem cantado [ópera] na Gulbenkian (3.b) A Joana já gostava de peixe || A Joana já gostou de peixe || A Joana já tem gostado de peixe Nos exemplos acima, , quando coocorre com o imperfeito, e sem que coocorra com outro qualquer adverbial explicitamente localizador77 . Sobre os valores de ‘já’, v., sobretudo, Campos (1997). , vai adquirir um valor modal (de natureza apreciativa), não delimitando, significativamente, as sequências sob o ponto de vista temporal-aspetual. Nas ocorrências com o pps e o ppc, assume os valores temporais e aspetuais descritos tradicionalmente. Assim, e com predicados como e quando flexionados no imperfeito, a leitura de desencadeia um juízo de valor que poderá ser interpretado como: || . Importa ainda referir que o uso reiterado de , como se pode observar em , e sem que haja recurso a qualquer adverbial, pode ser interpretado como a construção de um valor de intensificação de um dado estado de coisas. Note-se que esta interpretação é possível se C0 se associar a um acontecimento passado, acontecimento esse que não necessita de ser explicitado pelo enunciador porque faz parte de um dado conhecimento partilhado pelo co-enunciador. Neste caso, a localização espácio-temporal deixa de ser relevante; a leitura aspetual de iteratividade torna-se, por isso, mais saliente. 3.2 O imperfeito e o presente Como tem sido apontado (cf., p.e., Oliveira (2013), (2015), Sousa & Araújo (2012)), o presente do indicativo, em português, desencadeia temporalmente valores muito heterogéneos, podendo construir, sob o ponto de vista temporal, leituras de simultaneidade, anterioridade, de posterioridade, ou de atemporalidade, sobretudo quando o presente ocorre em enunciados genéricos, gnómicos ou habituais. Na interação com o imperfeito poderemos verificar algumas características de aparente proximidade: (4.a) A Joana gosta de peixe ||? # A Joana gostava de peixe. (4.b) A Joana [já] gosta de peixe || A Joana [já] gostava de peixe. (4.c) # ? Quando vive em Paris a Joana gosta de peixe || Quando vivia em Paris, a Joana gostava de peixe. (4.d) # Quando é nova, a Joana gosta [muito] [de peixe] || Quando era nova, a Joana gostava [muito] de peixe. (4.e) A Joana gosta de peixe # todas as manhãs / habitual­mente / sempre || A Joana gostava de peixe # todas as manhãs / habitualmente / sempre A observação dos dados presentes no paradigma apresentado acima leva-nos a defender que a plasticidade do presente do indicativo permite uma sobreposição na aceitabilidade com algumas sequências que ocorrem no imperfeito, no entanto, os valores construídos não são sobreponíveis. Veja-se, só como exemplo, o que se pode observar em relação aos exemplos de (4.a) e (4.e): em (4.a) a leitura atemporal da situação expressa pelo presente não é possível com o imperfeito; em (4.e) ambos os tempos gramaticais parecem não aceitar a iteratividade, mas ambos permitem uma leitura que exibe valores de habitualidade (marcada aqui com adverbiais como ou ). Note-se, no entanto, que em (4.b), por exemplo, ambas as hipóteses são possíveis (quer com o presente, quer com o imperfeito), mas as interpretações que obtemos são diferentes: com o presente, constrói uma leitura resultativa, assumindo-se uma mudança de estado (antes não gostava | agora já gosta); com o imperfeito, e como se referiu anteriormente, , sem qualquer adverbial que lhe esteja associado na predicação, marca uma leitura de natureza apreciativa. Se ocorre com um adverbial localizador (como, p.e., uma oração adverbial temporal), o valor temporal de é reforçado. 4 O imperfeito nos textos Nos pontos anteriores foram apresentadas algumas características do imperfeito. Essa apresentação, de forma muito sucinta, assentou, essencialmente, numa exemplificação baseada em sequências frásicas construídas, procurando-se, com essa análise, detetar, de forma controlada, uma descrição e uma explicação para alguns dos valores do imperfeito em PE. Contudo, uma outra forma de entender os valores das diferentes formas e construções que incluem o imperfeito poderá ser a de se ter em conta a sua ocorrência integrada numa dimensão mais complexa, a dimensão textual88 Não sendo o lugar adequado para discutir o conceito de ‘texto’ e qual o lugar do texto na análise linguística, assumirei aqui, de uma forma geral, as propostas de Coutinho (2019). . Assim, e aceitando como válidas as propostas de Bronckart (1997), e.o., verifica-se que ao se observar a ‘arquitetura’ de um texto poderemos encontrar uma inter-relação de planos /camadas que se sobrepõem e se interligam. De acordo com Coutinho (2019: 42) “[...] os mecanismos de posicionamento enunciativo, os mecanismos de textualização (conexão, coesão nominal e coesão verbal), e a infraestrutura geral dos textos [...]” são os ‘constituintes’ dessas ‘camadas’. Assim, se se desejar estudar a ocorrência (e a predominância) de um dado tempo gramatical num dado texto, verificar-se-á que essa predominância está dependente de todos os outros macro elementos que permitem a sua interpretação. A proposta desenvolvida sobre os tipos de discurso99 Sobre a discussão e enquadramento dos ‘Tipos de discurso’, v., sobretudo, Coutinho (2019: 47-50). , em certo sentido, constitui-se como o suporte que importa reter nesta análise. Seguindo esta perspetiva, considera-se existir uma clara relevância das formas linguísticas na e para a compreensão dos diferentes textos, aceitando-se que em cada um dos segmentos selecionados, existe a predominância do tipo de discurso do domínio do ‘narrar’. Seguindo esta proposta, ao observarmos os três exemplos apresentados abaixo1010 Os excertos escolhidos são da autoria, respetivamente, de Eça de Queirós (A), de Sophia de Mello Breyner (B) e de Almada Negreiros (C). Cf. Fontes no final deste texto. , poderemos verificar que os valores que o imperfeito desencadeia em cada um desses exemplos torna-se crucial para uma melhor compreensão quer dos seus valores, quer do papel que, em cada um dos casos, parece desencadear. Assim, a observação dos exemplos selecionados aponta para três formas diferentes de podermos olhar para cada um desses excertos: a descrição de um espaço (A), a descrição de uma personagem (B), a descrição de um cenário (C). Em cada um dos casos, o destaque dado pelo imperfeito permite que possamos delimitar a interpretação de cada uma destas sequências, mesmo quando não ocorrem localizadores temporais ou dêicticos (espaciais e/ ou temporais): (A) “As melhores salas do Ramalhete abriam para essa ga­leria. No salão nobre [...], havia uma bela tela de Cons­table, [...]. Uma sala mais pequena, ao lado, onde se fazia música, tinha um ar de século XVIII [...]: duas ta­peçarias de Gobelins, [...], cobriam as paredes de pas­tores e de arvoredos. Defronte era o bilhar, [...] onde, por entre a desordem de ramagens verde-garrafa, es­voaçavam cegonhas prateadas. E, ao lado, achava-se o fumoir, a sala mais cómoda do Ramalhete [...]” (B) “[...] O Bu´zio era como um monumento manuelino: tudo nele lembrava coisas mari´timas. A sua barba branca e on­dulada era igual a uma onda de espuma. As grossas veias azuis das suas pernas eram iguais a cabos de navio. O seu corpo parecia um mastro e o seu andar era baloic¸ado como o andar dum marinheiro ou dum barco. [...]” (C) “O luar desmaiava mais ainda uma máscara caida nas esteiras bordadas. E os bambús ao vento e os crysanthe­mos nos jardins e as garças no tanque, gemiam com elle a advinharem-lhe o fim. Em róda tombávam-se ador­mecidos os idolos coloridos e os dragões alados. [...]” Se analisarmos as ocorrências das diferentes predicações presentes nos exemplos, verificamos que apenas nos exemplos de (B) existe a explicitação de grupos nominais que preenchem a posição de sujeito e que exibem os traços [+humano]. Em (A) e (C), por sua vez, as sequências construídas definem um espaço – o Ramalhete – ou uma ‘paisagem’. A sequencialidade das formas de imperfeito (com predicados de natureza diferente) conferem a cada um dos excertos uma sucessividade de propriedades que anunciam uma narração que se prepara, mas que ainda não aconteceu. Quem leu o romance Os Maias sabe que todos aqueles espaços vão ser centrais no desenrolar da história. Funcionando como marca distintiva de um status que caracteriza a família (alta burguesia, culta e viajada do séc. xix português), e constituindo-se como o lugar físico que suporta a história que vai ser contada. A descrição de o Búzio, em (B), define a personagem de forma quase fotográfica. As formas verbais escolhidas assentam quer em verbos predicativos como ou , quer em verbos cognitivos , reforçando o imperfeito a construção de um ‘tempo’ em rutura com o tempo da enunciação. Em (C), por outro lado, é-nos apresentada uma paisagem cujos elementos apontam para um universo distante, mas que se pode reconstruir em qualquer momento. Temos, assim, em qualquer destas sequências planos disjuntos do plano enunciativo onde nos situamos como enunciadores. A precisão temporal – fixada no tempo cronológico – só nos é dada, em (A), através do único adverbial temporal autónomo que nos situa a história no tempo (1875). Já no conto Homero (B), a referência temporal e a personagem são-nos dadas pelo 1º § com se inicia o conto: “Quando eu era pequena, passava às vezes pela praia um velho louco e vagabundo a quem chamavam o Búzio (...)”, e é esse o ponto localizador que permite a interpretação do todo o conto.1111 Note-se que existem no conto outros adverbiais igualmente relevantes para a interpretação da personagem, mas que não são relevantes nesta discussão, até porque não coocorrem com o imperfeito. Sobre uma análise deste conto mais completa, v. Coutinho & Correia (2013). Assim, na descrição da personagem, o imperfeito assume um valor aparentemente só descritivo, fixando no tempo (e no espaço) uma personagem que só existe nesse tempo e nesse espaço. A análise das sequências de (C) mostra, por sua vez, de que forma o imperfeito permite que se reconstrua uma dada situação, sem que haja qualquer evidência de uma localização temporal que o ligue, temporalmente, ao plano da enunciação. O excerto escolhido exemplifica, de forma clara, aquilo a que podemos aqui chamar paralelismo enunciativo, evidenciado, tal como acontece nos contos de fadas tradicionais, a estrutura temporal e aspetual que os caracteriza: o imperfeito define uma sequencialidade de situações, assente numa sucessividade de acontecimentos que, numa primeira leitura, apontam para um grau zero do movimento: “o luar desmaiava”, “as garças gemiam [...]”, “os ídolos tombavam”. Este efeito é ainda reforçado, pela ausência total de dêixis, ou de outras formas linguísticas que permitam que exista qualquer localização em relação ao sistema referencial construído e reconstruído na e pela enunciação. 5 Algumas conclusões O imperfeito em português – nos seus usos temporais e não modais – caracteriza-se por desencadear um conjunto muito diverso de valores, dependendo esses valores das propriedades semânticas dos predicados e da interação que as formas verbais estabelecem com diferentes adverbiais temporais e aspetuais. Com este artigo pretendeu-se delimitar alguma desses valores, procurando-se mostrar por um lado, de que forma os valores assumidos pelo imperfeito são, ou não, permeáveis à sua substituição por outros tempos gramaticais como o presente, o pps e o ppc; por outro lado procurou-se verificar como interagem as formas de imperfeito em sequências textuais mais complexas. Para isso foram analisados pequenos excertos de um romance e de dois contos. Ao identificar-se, em cada um deles, a predominância de formas do imperfeito em três situações descritivas diferentes – a descrição de um espaço, a descrição de uma personagem e a descrição de uma paisagem – permitiu verificar-se que as situações construídas com o imperfeito poderão ser disjuntas em relação ao plano da enunciação, (excerto (C)) ou, interagirem com o plano da enunciação através da coocorrência de adverbiais temporais (excerto (A)), ou de adverbiais temporais-aspetuais (excerto (B)). Estes adverbiais funcionam como localizadores das diferentes predicações o que permite a sua interpretação. Referências Bronckart, J.-P. (1997): Activite´ langagie`re, textes et discours. Pour un interactionisme socio-discursif. Paris: Delachaux et Niestle´. Campos, M. H. C. (1997): Tempo, Aspecto e Modalidade, Estudos de Lingui´stica Portuguesa. Porto: Porto Editora. Carlson, G. (2012): «Habitual and Generic Aspect». In: Robert Binnick (ed.) (2012), The Oxford Handbook of Tense and Aspect. 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According to the theoretical proposals, such as those integrated into an enunciative perspective, the imperfeito is characterized by allowing the intersection of different enunciative plans. These plans are inter-related by temporal and/or aspectual adverbials that “connect” them, allowing for the interpretation of the different sequences. Thus, if we have a sequence like “Joana used to sing” it only becomes an utterance (validated as such) if a temporal adverbial, or an aspectual adverbial with iterative value, co-occurs with that sequence. Because there are other verbal forms available in Portuguese to mark anteriority and [-perfectivity], this paper aims at describing some values that are exhibited by the imperfeito, relating it with the simple past perfect from a temporal point of view. On the other hand, the imperfeito relates with the present or with the compound perfect tense, because it can also correspond to an iterative and non-perfective meaning. Era uma vez... Imperfekt v sodobni evropski portugalšcini Kljucne besede: imperfekt, nedovršnost, referenca, izjavljanje, raven izjavljanja V študijah o gramatikalnih casih v sodobni evropski portugalšcini so casovne in vidske lastnosti, ki oznacujejo razlicne jezikovne sekvence in ki jih oznacuje imperfekt/»imperfeito«, med seboj tesno prepletene. Zaradi tega razmišljanje o imperfektu – upoštevajoc le casovne in vidske vrednosti – zahteva aktiviranje nabora podpornih komponent, ki se zdijo kljucne za razumevanje razlicnih vrednosti tega glagolskega casa. V skladu s teoreticnimi predlogi, denimo tistimi, ki se gibljejo znotraj perspektive teorije lingvistike izjavljanja, je za imperfekt znacilno, da dopušca obstoj presecišca razlicnih ravni izjavljanja. Te so med seboj povezane s casovnimi in/ali vidskimi prislovi, ki jih »povezujejo«, kar omogoca interpretacijo razlicnih jezikovnih sekvenc. Sekvenca jezikovnih znakov, kot je , torej postane izjava (in je potrjena kot taka) šele pod pogojem, da je v tem zaporedju prisoten casovni prislov ali vidski prislov z iterativno vrednostjo ponavljanja. Ker je v portugalšcini na voljo vec drugih glagolskih oblik za oznacevanje preddobnosti in nedovršnosti, je namen tega prispevka opisati nekatere vrednosti, ki jih izkazuje »imperfeito«, in ga povezati z glagolskimi casi, ki oznacujejo preddobnost (kot je enostavni preteklik/pretérito perfeito simples), ter z glagolskimi casi, ki lahko prav tako kot imperfekt izkazujejo ponavljajoce se in nedovršne vrednosti (kot je sedanjik/presente ali sestavljeni preteklik/pretérito perfeito composto). Clara Nunes Correia Clara Nunes Correia é Professora Associada na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (NOVAFCSH). Doutorada em Linguística (Semântica), tem desenvolvido investigação e publicado trabalhos nos domínios da Determinação Nominal e da Determinação Verbal. É investigadora do Grupo Gramática & Texto do Centro de Linguística da Universidade Nova (CLUNL). Desenvolve atualmente um projeto sobre o Verbo em Português. Endereço: Departamento de Linguística Faculdade de Ciências Sociais e Humanas Universidade Nova de Lisboa Avenida de Berna, n.º 26-C 1069-061 Lisboa Portugal Correio eletrónico: claranc@fcsh.unl.pt Bálint Urbán DOI: 10.4312/vh.31.1.97-118 Eötvös Loránd Tudományegyetem Uma estética de força – os Apontamentos para uma estética não aristotélica e o pensamento estético de Fernando Pessoa Palavras-chave: estética, Modernismo, Fernando Pessoa, Álvaro de Campos, Aristóteles O presente estudo centra-se na teoria estética de Fernando Pessoa e na posição dos Apontamentos para uma estética não aristotélica do heterónimo Álvaro de Campos no sistema estético do autor português. Partindo da questão da diversidade do pensamento estético de Pessoa, procura-se, por primeiro situar o texto no corpus pessoano de reflexões teóricas sobre a arte, para depois apresentar como é que o curto ensaio entra em contato tanto com o ideal estético de Nietzsche, como com a estética de choque das vanguardas, subvertendo as categorias principais da Poética. Apontamentos para uma estética não aristotélica, sem qualquer dúvida, constitui um dos textos axiais do pensamento estético de Fernando Pessoa que, nas palavras de Jacinto do Prado Coelho, nos enfrenta com uma «excecional individualidade» (1994: xvii), tendo em conta não só a complexidade e a diversidade do ideário estético pessoano, mas também as suas ambiguidades e incongruências inerentes. O presente estudo, partindo da questão da ambivalência das reflexões pessoanas sobre a arte e a literatura, procura, em primeiro lugar, situar o ensaio Apontamentos para uma estética não aristotélica no discurso do pensamento estético do poeta português para depois analisar a genealogia das filiações literário-filosóficas do texto e comparar a sua argumentação com os princípios básicos da Poética. 1 O sistema estético pessoano Alexandra M. Pires, num estudo intitulado Strength, Contemplation, and Disquiet: Towards a Corporeal Aesthetic of the Heteronyms (2007: 52), realça que a diversidade das doutrinas estéticas do corpus pessoano tem a ver principalmente com o fato de que o pensamento estético do poeta segue a lógica da própria heteronímia – ou seja, como os heterónimos não só representam linguagens e discursos poéticos diferentes, mas, ao mesmo tempo, correspondem a cosmovisões e posturas filosóficas divergentes, verifica-se também uma certa variedade no terreno das ideologias estéticas. Desta forma até se pode falar de vários sistemas estéticos [aesthetic systems] dentro da obra pessoana que, muitas vezes, se caracterizam por discrepâncias marcantes e representam um certo tipo de incompatibilidade. Na leitura de Georg Rudolf Lind, até se pode descobrir uma conceção estética de certa unidade em Pessoa. Porém, falta uma sistematização totalizante das ideias, dado que os textos que se concentram nas possibilidades da criação e da receção artísticas se encontram não só cronologicamente dispersos na obra, mas também divididos entre vários heterónimos e Pessoa ortónimo (1994: x-xi). Considero problemática a tese da «unidade escondida do pensamento estético de Fernando Pessoa», exposta por Lind (1994: x), dado que é mesmo a falta da unidade e o caráter contraditório que faz desse pensamento um discurso excecional que combina com o princípio da pluralidade desconcertadamente moderna da ideia e da prática da heteronímia (Vila Maior, 2023: 212). Acho igualmente discutível a afirmação de Jacinto do Prado Coelho, segundo a qual «a doutrina estética do autor não corresponde à perturbante modernidade da sua poiesis, onde a palavra e o ser estão permanentemente em jogo» (1994: xxxiv), dado que, no meu ver, a doutrina estética pessoana espelha com a sua heterogeneidade a própria modernidade perturbante da heteronímia. Como a obra pessoana, enquanto universo da alteridade, da multiplicidade e da divergência permanente, está repleta de antagonismos – basta só pensar nos binómios nacionalismo/cosmopolitismo, futurismo/neoclassicismo, racionalismo/loucura, imanência/transcendência – o pensamento estético do autor também não pode ser isento de incongruências internas. Grosso modo, podemos distinguir duas linhas principais nos sistemas estéticos pessoanos. Em primeiro lugar, verifica-se a presença de uma visão estética racionalista e intelectualista que, por um lado, se alimenta da tradição interpretativa da Poética cuja história vai desde a antiguidade até à Renascença e ao Classicismo e Neoclassicismo. E, por outro lado, baseia-se no discurso da estética como disciplina moderna e autónoma e das suas primeiras grandes sistematizações nas obras de Baumgarten, Kant e Hegel. Estes filósofos do idealismo alemão não só contribuíram para a emancipação da estética – como ramo autónomo e autêntico da filosofia ocidental, ajudando a definição da sua metodologia e dos seus objetivos –, mas também elaboraram, à base da lógica sistematizadora do Iluminismo, os primeiros sistemas estéticos modernos com as suas respetivas taxonomias e terminologias.11 O fato de que os três autores publicaram tratados holísticos que levam como título o próprio nome da disciplina – estética ou, no caso de Kant, Crítica da Faculdade de Julgar – corrobora a sua posição fundadora no cânone do pensamento moderno sobre a arte. Em segundo lugar, descobre-se uma tendência alternativa que, de uma certa forma, constitui o próprio contraponto da primeira, e cujas origens remontam às reflexões dos românticos – principalmente os irmãos Schlegel e Novalis –, ao ideário estético de Kierkegaard e, sobretudo, de Nietzsche, representando uma abordagem menos racional que questiona os princípios da razão moderna. O desmoronamento da razão instrumental e categorial que se verifica na obra destes filósofos e, mais marcadamente em Nietzsche, implicou a defesa de uma (ir)racionalidade alternativa, mais vital, mais paradoxal e mais poética – e tudo isso reverberou em Pessoa e em vários textos seus, tanto poéticos como filosófico-estéticos (Cardiello, 2016: 106). A propósito dessa dualidade do pensamento estético pessoano, João Ferreira sugere que é possível aplicar a dicotomia nietzschiana do apolíneo e dionisíaco do Nascimento da Tragédia para a estética do autor português, uma vez que essa se divide numa abordagem mais intelectualista-racionalista e numa tendência vitalista e não intelectualista (1995: 71). Se aceitarmos as propostas de Ferreira, além do binómio apolíneo-dionisíaco talvez seja mais oportuno aplicar o dualismo pensamento aristotélico e não aristotélico para a estética pessoana. Porém, a semântica dos termos aristotélico e não aristotélico tem de ser entendida dentro de um sentido metonímico, ou seja, como uma trans­ferência de denominação. Ao falar de estética aristotélica e não aristotélica, Fernando Pessoa não está fazendo, rigorosamente, uma exegese de textos aristotélicos e sim, metonimicamente, estabelecendo uma relação de sentido entre a tendência históri­ca de teor intelectualista (…) e a tendência dele contemporânea, (…) de teor vitalista não intelectualista. (Ferreira, 1995: 71) Ora, a linha aristotélica da ideologia estética pessoana tem a ver com uma forte vontade de ultrapassar o romantismo com seus os excessos estilísticos e a subjetividade transbordante da literatura romântica. Na famosa carta escrita a José Osório de Oliveira, Pessoa reconstrói o processo da sua evolução intelectual, destacando as tendências e os autores mais marcantes na história do seu próprio Bildung literário. Em minha infância e primeira adolescência houve para mim, que vivia e era educado em terras inglesas, um livro supremo e envolvente — os «Pickwick Papers», de Dickens; ainda hoje, e por isso, o leio e releio como se não fizesse mais que lem­brar. Em minha segunda adolescência dominaram meu espíri­to Shakespeare e Milton, assim como, acessoriamente, aqueles poetas românticos ingleses que são sombras irregulares deles; entre estes foi talvez Shelley aquele com cuja inspiração mais convivi. No que posso chamar a minha terceira adolescência, passada aqui em Lisboa, vivi na atmosfera dos filósofos gregos e alemães, assim como na dos decadentes franceses, cuja acção me foi subitamente varrida do espírito pela ginástica sueca e pela leitura da «Dégénérescence», de Nordau. (Pessoa, 1986: 325) O Romantismo e a continuação da sua herança nas tendências finisseculares, apesar de ter desempenhado um papel considerável na formação literária de Pessoa, constitui um horizonte paralisante que tem de ser ultrapassado para chegar à modernidade. Num texto provavelmente de 1917, Pessoa fala sobre os verdadeiros perigos do Romantismo e explica que graças à popularização da ideia do génio criador e ao culto generalizado, e em consequência corrompido e pervertido, da genialidade criativa todos os indivíduos que compartilham certos critérios dessa genialidade – por exemplo ânsia, angústia, inapetência – facilmente se convencem da sua própria superioridade artística, sem possuir conhecimentos adequados e sem conhecer a própria tradição. Ao culto do falso individualismo dos românticos, que invade de um modo desenfreado não só a autoperceção do artista, mas também os discursos poéticos, Pessoa contrapõe a disciplina e o profissionalismo da criação poética da antiguidade. Na teoria clássica não era assim. O discípulo dos antigos apoia­va a sua crença em que era poeta em faculdades de construção e de coordenação, em uma disciplina interior que não é tão fácil a qualquer presumir, para si mesmo, que possui. Não é tão fácil, em relação às pretensões que são a base do romantis­mo, do sentimento romântico. Há basta gente que pode crer-se, falsamente, dotada de qualidades construtivas em arte; mas toda a gente, e não alguma, pode julgar-se artista, quando as qualidades fundamentais exigidas são um sentimento de vácuo nos desejos, um sofrimento sem causa, e uma falta de vonta­de para trabalhar- — característicos que mais ou menos todos possuem, e que nos degenerados e nos doentes do espírito as­sumem um relevo especial. (Pessoa, 1994: 147) A polémica pessoana com o Romantismo, portanto, baseia-se na rejeição da idolatria da expressão descontrolada da subjetividade, na recusa da falta da disciplina organizadora e na articulação da escassez da intelectualização dos sentimentos. 2 António Mora e o princípio aristotélico Quem defende mais assiduamente a legitimidade dos princípios de uma estética aristotélica e as forças revigorantes da tradição antiga é o heterónimo António Mora. O heterónimo-filósofo, que se autodefiniu nos seus escritos como um autêntico «médico da cultura», desenvolveu uma forte crítica da tradição europeia judeo-cristã e da modernidade que se alicerçou em certos aspetos e valores dessa tradição, e propagou um novo movimento estético-religioso, denominado neopaganismo. O neopaganismo propõe «um plano de resgate e modernização do panteão grego e latino e, ao mesmo tempo, uma superação quer do racionalismo iluminista, quer do romantismo» (Cardiello, 2016: 110). Para poder sair da decadência e do niilismo da civilização atual, portanto, é preciso regressar à cultura helenística, tendo em conta que, segundo Mora, «da Grécia Antiga vê-se o mundo inteiro» (Pessoa, 1966: 117). As consequências estéticas deste programa de «regresso aos Deuses», apesar de a filosofia do neopaganismo ser longe do racionalismo, se resumem parcialmente pela recuperação de vários dos princípios fundamentais da Poética de Aristóteles. No fragmento Regresso dos Deuses: Estética, Mora contrapõe o artista objetivo ao artista subjetivo. Este último acredita firmemente que o fim da arte não é outra coisa senão a expressão direta e imediata das suas emoções, o que sem qualquer dúvida constitui um dos princípios da ideologia estética do Romantismo. O artista objetivo não aceita esta convicção, dado que, no seu entender, a arte verdadeira não se define pela simples exteriorização das emoções. A arte objetiva, que segundo Mora é a arte propriamente dita, é «uma coisa realizada» (Pessoa, 1994: 19). Embora o defensor do neopaganismo não defina o que é que entende na expressão «uma coisa realizada», as passagens a seguir deixam-nos claro que se refere à intelectualização e à elaboração das emoções e à subsequente submissão destas a certas regras e normas objetivas da representação. «Uma obra de arte é um objecto exterior; obedece, portanto, às leis a que estão subordinados os objectos exteriores, no que objectos exteriores.» (Pessoa, 1994: 19) Continua referindo-se às normas que a expressão artística deve respeitar. Falando sobre os princípios basilares da arte, Mora enfatiza a importância da generalidade e da universalidade que nos conduz ao nono capítulo da Poética, em que Aristóteles estabelece uma distinção entre poesia e historiografia, sendo a tarefa do primeiro representar o que poderia acontecer, o que é possível segundo as leis da verossimilhança e da necessidade. Assim, enquanto a história se responsabiliza por representar o particular, a poesia refere principalmente o universal (Aristóteles, 1984: 451). Em dois fragmentos diferentes, concebidos provavelmente no ano glorioso do Orpheu, Mora escreve que «o fim da arte é imitar a Natureza» (Pessoa, 1994: 21) e que «procura a arte imitar a Natureza; mas imitá-la completamente» (ibid. p. 23), ideias que evocam diretamente um dos conceitos centrais da Poética, nomeadamente a mimese.22 Um outro conceito fulcral da Poética, o da catarse, é evocado num outro texto – The aim of art, escrito em inglês – em que se lê que «The aim of art is to elevate» (Pessoa 1994: 26). Este fragmento não é atribuído a António Mora, porém, como Maria Manuela Brito Martins ressalta, existe uma certa afinidade entre o pensamento estético de Mora e Pessoa, sobretudo no que diz respeito à sua relação com a tradição da Poética (2015: 81). No mesmo fragmento lê-se que «a arte, como a ciência, supõe a eliminação do fator pessoal. Não viram isto os artistas modernos» (Pessoa 1994: 24), o que nos reconduz à crítica do Romantismo e das estéticas individualistas que se alimentam da herança romântica. Num outro excerto, Mora critica explicitamente o Romantismo e declara que a tendência artística não constituiu nenhuma renovação da arte, pelo contrário, representou, antes de mais, uma incapacidade de renovar. O heterónimo avança na sua argumentação com uma pergunta retórica: «Tinham-se gasto as fórmulas clássicas?», à qual responde que essas fórmulas não se tinham gasto, visto que «o que se tinha gasto era a inspiração adentro delas» (Pessoa, 1994: 25). A tarefa e o desafio da estética do neopaganismo é, portanto, encher de nova inspiração as fórmulas clássicas, ou seja, superar a modernidade vaga através da reativação inovativa dessas fórmulas antigas. O ideal grego que, desta forma, precisa ser revisitado, na formulação agora já de Pessoa baseia-se em três princípios claramente aristotélicos – nomeadamente no do equilíbrio, no da harmonia e no do fasto (Pessoa,1966: 169). O retorno às referidas formas clássicas supõe, desta forma, uma retomada nítida das premissas da Poética, assim, as reflexões acima-expostas de António Mora e Pessoa sobre a arte, segundo Maria Manuela Brito Martins, podem ser interpretadas como «uma possível resposta a uma teoria estética da modernidade» (2015: 84-85). O fato de que a maioria dos textos citados em defesa de uma estética de cunho aristotélico foi produzida durante os anos do Orpheu e da emergência dos principais ismos pessoanos que se definem, por sua vez, por uma evidente vontade de se inscrever no discurso do moderno, enfrenta-nos com a pluralidade chocante da obra pessoana em que várias poéticas e políticas se sobrepõem. E isto confere uma modernidade perturbadora ao pensamento pessoano, para o qual a humanidade, na opinião de Alain Badiou, ainda não está completamente preparada (2005: 36).33 «We must therefore conclude that philosophy is not-at least not yet-under the condition of Pessoa. Its thought is not yet worthy of Pessoa.» (Badiou 2005: 36) 3 A crise da modernidade e um novo conceito de beleza no pensamento de Álvaro de Campos Se aceitarmos a tese de que a estética aristotélica de António Mora e de Fernando Pessoa deve ser interpretada como uma possível resposta às tendências estéticas da modernidade, a estética não aristotélica de Álvaro de Campos também pode ser entendida como uma outra resposta possível ao mesmo fenómeno sociocultural. O período do fim do século 19 e do início do século 20, época da formação e da criação da vasta obra pessoana, foi caracterizado por uma crise geral provocada pela lógica da modernidade num processo de autossuperação permanente. Testemunhou-se a crise da ideologia burguesa, a crise do cientificismo positivista-racionalista baseado na crença incondicional nas forças reformadoras da ciência, o desmoronamento do conceito tradicional do homem ocidental e da ideologia do humanismo, o declínio de sistemas filosóficos de origem cartesiana e o colapso das estéticas românticas e realistas, enraizadas ou na expressão incondicional da subjetividade ou na tradição do código mimético. Na opinião de Dionísio Vila Maior (2023: 10), a obra de Fernando Pessoa, com a criação da heteronímia e dos vários ismos literários, basicamente responde a esta crise geral e apresenta uma alternativa para incorporá-la e superá-la. Ora, no que diz respeito à crise do pensamento estético no período em questão, com o despontamento dos vários ismos modernos, as categorias tradicionais da estética – como a obra, a beleza, a estrutura, o autor, a receção, o género, a representação mimética, etc. – revelaram-se inadequadas à modernidade da criação artística coetânea, o que obrigou os autores e filósofos a repensar os conceitos fundamentais da estética. Quanto ao pensamento estético de Pessoa, as reflexões de cariz aristotélico representam uma rejeição da crise total do homem moderno e da inadequabilidade das categorias estéticas tradicionais quando defendem o regresso às formas clássicas, enquanto as ideias não aristotélicas, pelo contrário, anunciam uma reação afirmativa para a experiência existencial e estética da modernidade. Nos mesmos anos em que Pessoa e António Mora elaboram as suas reflexões aristotélicas sobre a arte, Álvaro de Campos começa a engendrar os contornos de uma abordagem alternativa, isto é, uma estética de caráter não aristotélico. Definindo-se como o maior defensor da modernidade, para quem a transformação permanente e as inovações tecnológicas constituem o horizonte primordial da existência, Campos tenta libertar-se das formas clássicas e das categorias estéticas tradicionais. Na Ode Triunfal, contrapõe um novo conceito de beleza – a beleza das máquinas, das fábricas e da eletricidade – à ideia antiga do belo como algo equilibrado, estruturado, harmonioso, estável, metafísico e trans-historicamente imutável. A nova conceção de beleza é «totalmente desconhecida dos antigos» (Pessoa, 2006: 44) e, com ela, Campos enfatiza a novidade radical das suas ideias estéticas. Na oposição de um novo ideal de beleza que se inspira no Zeitgeist moderno e no próprio l’esprit moderne, reconhece-se a dicotomia de beleza elaborada por Baudelaire no seu estudo sobre o pintor pré-impressionista, Constantin Guys. O poeta francês, referindo a polémica seiscentista da consciência estética moderna em formação – a famosa Querelle des Anciens et des Modernes –, fez uma distinção nítida entre um novo conceito de beleza profundamente moderna que, por sua vez, é transitória, é fugitiva e contingente, e constitui uma metade da arte, e a outra metade da tradição artística, que é de origem clássica e se define por ser eterna e imutável (Baudelaire, 2006: 21). Campos tematiza essa oposição já com o título do seu poema quando escolhe um género poético que vem da antiguidade, trazendo consigo uma tradição literária milenar. O texto, porém, nas palavras de Eduardo Lourenço, é um «hiperbólico hossana como tal confessado à explosiva e premente novidade do mundo e sobretudo aos seus aspetos mais agressiva e perturbadoramente modernos, é uma antítese sensível do espaço morto e do tempo de morte onde Reis se recorta» (2003: 74). Na Ode Triunfal encontram-se espalhadas várias referências ao mundo estético da antiguidade. E há Platão e Virgílio dentro das máquinas e das luzes eléctricas Só porque houve outrora e foram humanos Virgílio e Platão, E pedaços do Alexandre Magno do século talvez cinquenta, Átomos que hão-de ir ter febre para o cérebro do Ésquilo do século cem, Andam por estas correias de transmissão e por estes êmbolos e por estes volantes, […] (Campos, Pessoa: 44) No entanto, como no Manifesto Futurista de Marinetti (1909), essas referências antigas sempre aparecem em contraposição aos elementos constituintes da experiência moderna – que não só se sobrepõem a essas referências, mas são colocadas numa relação hierárquica com essas, sendo os elementos modernos evidentemente os mais belos, mais dignos e mais valiosos. O programa de revolução modernista das Odes é continuado e alargado no Ultimatum para um plano complexo de modernização nacional (Vieira, 2010: 130). Na segunda parte, mais programática e sistemática do manifesto, Campos expõe a necessidade de uma «intervenção cirúrgica anticristã» que se concretizará através da «eliminação, dos três preconceitos, dogmas ou atitudes que o cristianismo fez que se infiltrassem na própria substância da psique humana.» (1981: 33). O programa evidentemente nietzschiano e vanguardista de forjar uma nova humanidade e uma nova civilização deve começar com a abolição do dogma da personalidade (romântico-burguesa), continuar com a libertação política dos sistemas políticos vigentes, para ser concluído com a transformação das artes através da Abolição do dogma da individualidade artística. O maior ar­tista será o que menos se definir, e o que escrever em mais géneros com mais contradições e dissemelhanças. Nenhum ar­tista deverá ter só uma personalidade. Deverá ter várias, orga­nizando cada uma por reunião concretizada de estados de alma semelhantes, dissipando assim a ficção grosseira de que é uno e indivisível. (Campos, 1981: 34) Segundo Maria João Mayer Branco, com essas abolições Campos basicamente visiona a emergência não só de um novo homem, mas também de um novo poeta, um novo artista, o artista não aristotélico, profundamente moderno, que consegue libertar-se de uma forma radical de todas as amarras da tradição estética e elabora um novo ideal artístico mais conveniente para as práticas contemporâneas e a sua receção. O artista aristotélico, pois, seguindo as propostas do Ultimatum, de uma maneira claramente nietzschiana «assumirá um processo de despersonalização tal que, deixando de ser um – deixando de ser um sujeito, deixando de ser uno e idêntico a si mesmo – possa ser vários.» (Branco 2016: 312-313). 4 Apontamentos para uma estética não aristotélica Antes de entrar na análise de como este processo de despersonalização é proposto nos Apontamentos para uma estética não aristotélica, cabe verificar o contexto em que o texto foi publicado, posto que, no meu ver, as condições da publicação podem também contribuir para a compreensão do ideário não aristotélico de Pessoa/Campos. Os Apontamentos para uma estética não aristotélica foram publicados em duas partes no terceiro e no quarto número da revista Athena, entre dezembro de 1924 e janeiro de 1925. Depois da gloriosa catástrofe do Orpheu, Pessoa começou a elaborar o plano de uma revista, intitulada Athena: A Journal of Pagan Reconstruction, que teria como editor António Mora e contaria com a colaboração de Pessoa, Alberto Caeiro e Ricardo Reis – ou seja, todos os heterónimos principais, com a exceção de Álvaro de Campos, cujo futurismo e modernidade radical não convinham ao perfil neopaganista do periódico planeado. A ideia não concretizada ressurgiu alguns anos mais tarde, em 1918, e, segundo um esboço do arquivo pessoano, já levava os títulos dos ensaios de António Mora, Ricardo Reis e Pessoa, indicando que contaria igualmente com vários poemas de Alberto Caeiro. Como Richard Zenith salienta, «the goal of Athena, and the dream of Pessoa, was to instill the ethos of pagan antiquity in comtemporary Portugal» (2022: 561). Porém, a revista que finalmente foi lançada em 1924, com a direção literária de Pessoa e com a direção artística de Ruy Vaz, revela um perfil diferente, tendo em conta que já não se define como um foro exclusivamente reservado para a teorização do neopaganismo. A revista, com os seus cinco números publicados, tornou-se, antes de mais, num palco autêntico do drama em gente da heteronímia onde Álvaro de Campos, Ricardo Reis, António Mora e Diniz Silva revelaram as suas composições poéticas e ensaísticas.44 A revista contou igualmente com a contribuição de José de Almada Negreiros, António Botto, Mário de Sá-Carneiro, Henrique Rosa (irmão do padrasto de Fernando Pessoa), e a tradução de The Raven de Edgar Allan Poe, feita por Pessoa. Assim, «Athena was not only an impressive showcase for writing by Pessoa and his heteronyms – the largest and most varied display to be published in his lifetime – but also a carefully curated exposition of a personal, literary utopia.» (Zenith 2022: 649). A revista teve uma importância destacada para Pessoa, tendo em conta que dez anos depois do escândalo revolucionário do Orpheu, cujo plano foi arquitetado por ele e Mário de Sá-Carneiro, encontrou-se finalmente mais uma vez no lugar de diretor literário, desfrutando as vantagens e a liberdade que tal posição lhe conferiu para continuar o seu projeto modernista. Desta forma, a revista estava longe de ser um projeto ideológica e esteticamente homogéneo, como o primeiro esboço de 1915 com o seu foco exclusivo na teoria do neopaganismo estava a sugerir. A escolha do título ainda ecoa uma certa orientação neopaganista, porém, no meu ver, contém também uma clara referência à vontade da continuação do projeto modernista do Orpheu. O título da revista, por primeiro, como a nota introdutória de Pessoa deixa claro, não só remete o leitor para a deusa da razão, da sabedoria e da justiça, mas contém em si uma teoria estética enraizada na cultura grega. O texto, depois de anunciar que os gregos ainda nos governam nos tempos modernos de além dos próprios túmulos, argumenta que na Grécia antiga o processo da produção artística era dominado por dois deuses, e dois princípios: por um lado, Apolo, que unia de um modo instintivo a sensibilidade com o entendimento; e, por outro lado, Athena, que representava a harmonização da arte com a ciência «em cujo efeito a arte (como também a ciência) tem origem como perfeição» (Pessoa, 1924: 5). Para fazer arte, portanto, não é suficiente ter inspiração e sensibilidade – o processo artístico supõe sempre uma abordagem mais racional, quase científica. Pessoa, desta forma, cria uma certa união entre a conceção platónica da poesia (e da arte), que se define pela dominância da inspiração (.....s.asµ..), e a teoria aristotélica, segundo a qual a criação artística é fruto de um profundo saber profissional e, por isso, supõe um processo de planeamento e construção racional (t....). Onde não houver harmonia, equilíbrio de elementos opostos, não haverá ciência nem arte, porque nem haverá vida. Representa Apolo o equilíbrio do subjetivo e do objetivo; figura Athena a harmonia do concreto e do abstrato. A arte suprema é o resultado da harmonia entre a particularidade da emoção e do entendimento, que são do homem e do tempo, e a universalidade da razão, que, para ser de todos os homens e tempos, é de homem, e de tempo, nenhum. O produto assim formado terá vida, como concreto; organização, como abstrato. Isto estabeleceu Aristóteles, uma vez para sempre, naquela sua frase que é toda a estética: um poema, disse, é um animal. (Pessoa, 1924: 8) O aristotelismo evidente da argumentação pessoana é corroborado por uma referência direta ao estagirita. Athena, pois, por primeiro, representa a razão universal e a organização harmoniosa da obra de arte, ou seja, princípios claramente aristotélicos. Por segundo, na palavra Athena vibra de uma forma metonímica a cidade de Atenas, centro da cultura helenística e, ao mesmo tempo, berço da democracia e da liberdade de expressão. Ora, em termos estéticos o ideal democrático significa a liberdade incondicional da expressão artística, sem limitações históricas ou restrições normativas, o que nos conduz para a própria ideia do moderno e para a sua radicalidade estética. Por terceiro, e em consonância com o ideário modernista da liberdade estética, a figura de Athena entra em contato direto com o discurso literário e artístico do modernismo internacional, tendo em conta que a sua personagem e os mitemas relacionados a ela aparecem em inúmeras obras de arte e textos literários, desde Oscar Wilde, William Butler Yeats e Max Klinger até Sigmund Freud, Isadora Duncan e Ernst Ludwig Kirchner.55 Nem mencionando o fato que, depois da Revolução Francesa, a figura de Athena começou a substituir, na estatuária pública, as obras de caráter religioso, simbolizando a vitória da razão e da liberdade sobre o obscurantismo e o despotismo milenar. A figura de Athena, nesta perspetiva, associa-se a um ideário revolucionário que, por sua vez, se considera uma das características fundamentais dos movimentos modernistas. Por último, podemos estabelecer um paralelismo entre a figura de Athena e a do Orpheu, cujo mito também foi reelaborado por vários poetas, artistas e escritores modernistas – paralelismo este que se torna mais pertinente se levamos em consideração o fato de que Pessoa pensava na revista Athena como um foro autêntico que continua o legado do projeto do Orpheu. No texto de abertura de Pessoa, podemos detetar também essa ambiguidade entre um ideal estético aristotélico e um conceito mais modernista. Nos últimos parágrafos do ensaio, Pessoa sai das coordenadas do aristotelismo dominante do texto. Dividindo as artes em três categorias – arte inferior, arte média e arte superior –, comenta as funções, os objetivos e os efeitos de cada forma artística. Enquanto a arte inferior simplesmente entretém e a arte média embeleza, o fim da arte suprema é elevar o leitor/espectador. Por isso toda arte superior é, ao contrário das outras duas, pro­fundamente triste. Elevar é desumanizar, e o homem se não sen­te feliz onde se não sente já homem. É certo que a grande arte é humana; o homem, porém, é mais humano que ela. Ainda por outra via a grande arte nos entristece. Constantemente ela nos aponta a nossa imperfeição: já porque, parecendo-nos perfeita, se opõe ao que somos de imperfeitos; já porque, nem ela sendo per­feita, é o sinal maior da imperfeição que somos. (Pessoa 1924: 8) Nesta passagem, parece óbvio que Pessoa não usa o termo elevar naquele sentido aristotélico sob a égide do qual a palavra aparece no fragmento acima citado, The aim of art. Elevar, em vez da semântica clássica que implica ensinar, edificar, instruir, educar e enobrecer, aqui significa desumanizar, ou seja, verifica-se uma saída radical das coordenadas da estética aristotélica segundo a qual no processo de receção da obra de arte sempre está presente o elemento do mathesis (µ...s..), isto é, o espectador/leitor sempre aprende alguma coisa e a sua identidade é enriquecida por novos conhecimentos (Hubbard 1972: 86). A desumanização, porém, sugere uma experiência totalmente diferente e mais radical do encontro com a obra de arte e conduz-nos aos Apontamentos para uma estética não aristotélica e ao ideário profundamente nietzschiano do texto. 5 A teoria estética nietzschiana e os Apontamentos Sem qualquer dúvida, a maior referência cultural dos Apontamentos, é a teoria estética nietzschiana e as ideias radicais sobre os efeitos da obra de arte, elaborados pelos movimentos da vanguarda – e sobretudo pelo futurismo – à base do pensamento vitalista de Bergson e de Nietzsche. Foi nos finais dos anos 1980 que Eduardo Lourenço chamou a atenção aos paralelismos axiomáticos entre a obra pessoana e a filosofia de Nietzsche (Lourenço, 1989: 247-263). Apesar das correlações mais do que evidentes entre o pensamento dos dois autores, como é sabido, Pessoa não era um leitor assíduo do filósofo alemão e, segundo as pesquisas de Jerónimo Pizarro, não leu diretamente muitas obras dele (Pizarro, 2006: 96). Porém, como Marta Faustino e Antonio Cardiello (2016) ressaltam, tinha um conhecimento relativamente profundo sobre os conceitos nietzschianos de fontes indiretas, isto é, de monografias e tratados escritos sobretudo em francês. O livro que provavelmente teve o maior impacto em Pessoa foi o estudo de Jules de Gaultier, intitulado De Kant à Nietzsche. A verificação do exemplar guardado no arquivo da Casa Fernando Pessoa revela que o que captou mais a atenção de Pessoa foi o capítulo sobre o Nascimento da Tragédia, ou seja, a apresentação do ideal estético nietzschiano (Faustino – Cardiello, 2016: 321-322). Como já tinha sido indicado antes, quem foi influenciado mais profundamente pelo ideário estético e filosófico de Nietzsche dentro do sistema heteronímico foi Álvaro de Campos, cujo personagem, na opinião de Bartholomew Ryan, até pode ser visto como um «avatar mutilado» do pensador alemão (2016: 58) e que, com o seu caráter exageradamente histérico «revela um cariz marcadamente dionisíaco» (Zenith, 2016: 135).66 Nem falando do fato que, segundo a famosa carta a Adolfo Casais Monteiro, ele nasceu no mesmo dia – 15 de outubro – que o próprio filósofo. Ora, no que diz respeito aos Apontamentos para uma estética não aristotélica, a filiação nietzschiana parece ser evidente desde o incipit do texto. Pessoa/Campos começa a sua argumentação com uma comparação: como desde a revolução científica da modernidade oitocentista existem geometrias não euclidianas que questionam os princípios milenares da geometria ocidental, é possível e preciso elaborar, seguindo a lógica subversiva dos novos sistemas científicos, estéticas não aristotélicas, que, por sua vez, destroem as normas da tradição estética radicada na teorização da Poética. O conceito euclidiano da geometria baseia-se num modelo linear e racional e supõe uma correlação direta entre o espaço abstrato das calculações e o espaço real. A metodologia da geometria clássica, elaborada à base dos teoremas e axiomas do matemático grego, estava em vigor durante vários milénios e só foi questionada ao longo do século 19. Nietzsche, como o maior filósofo da reavaliação e da «transmutação de todos os valores» (1997: 47), propôs não só a desestabilização das coordenadas tradicionais da moral, da arte, da estética, da verdade e do pensamento filosófico do Ocidente, mas apoiava também o questionamento das premissas históricas das ciências, fenómeno que já estava decorrendo no discurso científico desde o surgimento das ideias revolucionárias de János Bólyai, Hermann Ludwig Helmholtz, Carl Gustav Jacob Jacobi e Ernst Mach no terreno da matemática, da geometria e da física (Schiemann, 2014: 46-47).77 Na opinião de Gregor Schiemann, Nietzsche foi um dos únicos filósofos do século 19 que não só reconheceu a transformação profunda na estrutura das ciências, mas atribuiu uma importância fulcral ao processo de redefinição. «Er is wohl der einzigenamhafte Philosoph des 19. Jahrhunderts, der den Umbruch im Wissenschaftverständnis, da er seine Tragweite erkannte, ins Zentrum seines Denken stellte. Dabei blieben seinde Reflexionen insofern der Zeit des Wandels verhaftet, als in ihnen neue Bestimmungen der Wissensachtlichkeit teilweise noch neben traditionelle Vorstellungen zu finden sind. Elemente dieser für einen Umbruch typischen Zwischenstellung teilte Nietzsche – und darin drückt sich eine bemerkenswerte geistige Nähe zur Transformation der Wissenschaften aus – bezeichnenderweise mit den Forschern, die aktiv am Wandel selbst teilnahmen.» (Schiemann, 2014: 47) Na obra Vontade de Poder, Nietzsche até faz uma menção à geometria euclidiana, chamando atenção para o poder condicionante da teoria e para a verdade ilusória e metafísica do conceito. As categorias só são «verdades» no sentido de que condicionam a vida para nós: como o espaço euclidiano é uma tal «verdade» condicionante. (Dito sem rodeios: ninguém sustentará a necessidade de os homens existirem, por isso a razão é, assim como o espaço euclidiano, uma mera idiossincrasia de uma determinada espécie de animal, uma entre muitas outras...). (Nietzsche, 2011: 270) Esta suspeita epistemológica quanto às metodologias tradicionais da ciência permeava igualmente as práticas artísticas da vanguarda. Com a redefinição dos axiomas fundamentais da matemática e da física, ciência e arte tornaram-se aliadas num projeto comum de captar e representar os novos conceitos espácio-temporais. Dos movimentos de vanguarda, que no início do século 20 chegaram com as suas políticas complexas inspiradas em certos aspetos pela filosofia nietzschiana para remodelar não só a cultura senão toda a humanidade, foi o cubismo e o futurismo que se mostraram mais sensíveis para com o discurso científico. Segundo Paula Cristina Costa, durante o período das vanguardas, ciência e arte tornaram-se extremamente recetivos e motivados a «repensar espaço e tempo à luz de todo o dinamismo e mudança de ritmo do novo século» (Costa, 1990: 219). Almada de Negreiros por exemplo escreveu num dos artigos publicados no Portugal Futurista que «A arte de hoje está definida, é uma ciência concreta. Tem os seus deveres, os seus deveres de educação. A arte de hoje é um método matemático para aproveitar ou multiplicar as energias humanas em favor da Civilização Europeia.» (1981: 2). Ora, o fato que Pessoa/Campos elabora a proposta da estética não aristotélica, em analogia com as geometrias não euclidianas, relaciona-se, por um lado, com a suspeita nietzschiana perante todas as «verdades» morais, históricas e científicas da Europa, e, por outro lado, com a aliança que se criou entre a arte e a ciência para repensar as coordenadas do espaço e do tempo. Depois de estabelecer um paralelo entre geometrias não euclidianas e estéticas não aristotélicas, Pessoa/Campos avança com a definição dos pressupostos da sua própria estética não aristotélica. Porém, antes de entrar nos detalhes, anuncia que «Há muito tempo que, sem reparar que o fazia, formulei uma estética não aristotélica. Quero deixar estes apontamentos para ela […]» (Campos,1980: 251). Campos não especifica quando é que no passado criava de acordo com os princípios da estética não aristotélica, mas é muito provável que se está referindo às Odes publicadas no Orpheu – que, aliás, no último parágrafo dos Apontamentos são definidas como umas das três manifestações autênticas da estética não aristotélica, junto com os poemas de Walt Whitman e Alberto Caeiro – e ao Ultimatum escrito para a revista já mencionada de Almada de Negreiros, Portugal Futurista. Tanto as Odes como o Ultimatum já tinham sido evocados anteriormente a propósito da contraposição do moderno com o antigo e do programa nietzschiano-vanguardista de superar a civilização e a subjetividade humanas. O paralelismo entre os textos escritos durante os anos gloriosos do Modernismo português e os Apontamentos, concebidos quase uma década mais tarde, parece-me mais do que óbvio. Pessoa/Campos, assim, de uma forma retrospetiva, cria um novo sistema estético adequado para o Modernismo. Logo no início, o texto estabelece uma separação nítida entre estética aristotélica e não-aristotélica. «Chamo estética aristotélica à que pretende que o fim da arte é a beleza, ou, dizendo melhor, a produção nos outros da mesma impressão que a que nasce da contemplação ou sensação das coisas belas. Para a arte clássica — e as suas derivadas, a romântica, a decadente, e outras assim — a beleza é o fim.» (Campos,1980: 251). A estética não aristotélica, porém, em vez de se basear na beleza, e no conceito tradicional do belo, define-se, antes de mais, pela noção da força. Na segunda parte do texto, Pessoa/Campos dá uma explicação mais detalhada do sistema estético tradicional, alicerçado na conceção da beleza. Desta forma, a estética convencional «baseia-se naturalmente na ideia de beleza, porque se baseia no que agrada; baseia-se na inteligência, porque se baseia no que, por ser geral, é compreensível e por isso agradável; baseia-se na unidade artificial, construída e inorgânica, e, portanto, visível, […] e por isso é apreciável e agradável» (ibid. p. 257). A referência direta desta passagem é, sem qualquer dúvida, o sétimo capítulo da Poética, em que Aristóteles escreve sobre a construção interna da tragédia e estabelece os critérios da ação que tem de ser completa, tem de constituir um todo, tem de ter uma certa grandeza e tem de obedecer às regras da estruturação lógica (princípio – meio – fim), respeitando as normas da causalidade (Aristóteles, 1984: 449). O estagirita continua a argumentação sobre os critérios formais abrangendo a explicação para a categoria mais geral do belo natural e artificial/artístico. Seguindo a lógica da mimese, o belo – tanto o orgânico da natureza como o artificial, criado pelo artista –, deve ter partes ordenadas e uma determinada grandeza que não pode ser qualquer. Porque o belo consiste na grandeza e na ordem, e portanto um organismo vivente pequeníssimo, não poderia ser belo (pois a visão é confusa quando se olha por tempo quase impercetível); e também não seria belo grandíssimo (porque não faltaria a visão do conjunto, escapando à vista dos espectadores a uni­dade e a totalidade, imagine-se, por exemplo, um animal de dez mil estádios…). Pelo que, tal como os corpos e organismos viventes devem possuir uma grandeza, e esta bem percetível como um todo, […] (1984: 449-450) O conceito do belo do período helenístico, portanto, tinha como princípios centrais e orientadores a questão da extensão, da proporção e da organização harmoniosa dos elementos constituintes, ou seja, dependia particularmente do equilíbrio e perfeição formal (Ross, 1995: 295). Logo, a beleza aristotélica, na formulação de Pessoa, agrada ao espectador, enquanto o programa não aristotélico «baseia-se naturalmente na ideia de força, porque se baseia no que subjuga» (1980: 257). Ora, a ideia da força e da subjugação inscrevem diretamente a argumentação pessoana no discurso da estética e da filosofia nietzschiana. Como Gilles Deleuze observa, o conceito da força e uma série de noções ligadas a ela, como a vitalidade, a energia vital, a criatividade, a vontade de poder e a dominação, constituem os focos principais do pensamento nietzschiano (2002: 3). É o «conceito vitorioso» da força orgânica que alimenta a vontade de poder que se manifesta em todos os seres vivos como o instinto vital mais primordial. Cada entidade, cada pessoa está permeada por um «insaciável ansiar por mostrar poder; ou emprego, exercício de poder, pulsão criadora» (Nietzsche, 2011: 319). Esta obsessão nietzschiana com a força como elemento central da afirmação da vida contra o ideal ascético que trabalha em detrimento da vida, da natureza e da energia criativa, revelou-se na primeira obra do filósofo, O Nascimento da Tragédia, onde expôs a primeira formulação do seu ideal estético. Segundo a argumentação deste estudo influente, na obra de arte mais perfeita, na própria tragédia grega, manifesta-se uma certa dialética entre dois princípios primordiais da existência: o princípio apolíneo e o princípio dionisíaco. Enquanto Apolo representa, através da escultura e das artes figurativas, o mundo das formas claras, bem definidas e equilibradas, a composição harmoniosa ancorada numa subjetividade fixa e delimitada, Dionísio, deus da loucura, do êxtase e da embriaguez, considera-se fonte autêntica das energias vitais, irracionais e caóticas que questionam o universo das formas estabelecidas e destroem tanto o domínio da razão como a superioridade da subjetividade. Na tragédia grega, é através da intervenção apolínea que a dor, a tortura, a miséria, o sofrimento e o caos dionisíaco da vida pura passa por uma transformação figurativa e acaba por ganhar uma forma estética que permite que o espectador possa entrar em contato com o elemento dionisíaco, e afirmar uma vida repleta de desordem e tragicidade (Nietzsche, 1999: 27-48.). Ora, nos Apontamentos, Pessoa/Campos, partindo da premissa profundamente nietzschiana que a arte é «como toda a actividade, um indício de força» (Campos, 1980: 252), faz uma separação entre forças de integração e desintegração, cuja dialética considera-se fundamental para a própria existência. «Sem a coexistência e equilíbrio destas duas forças não há vida, pois a pura integração é a ausência da vida e a pura desintegração é a morte.» (ibid.). Nas artes, a força da integração manifesta-se como o elemento responsável pela coesão e pela unidade da obra, enquanto a força da desintegração representa a dinâmica da rutura, o que obriga «o corpo se cindir, se quebrar, deixar de ser corpo» (Campos, 1980: 253). A tendência integrativa tem a ver com a subjetividade, enquanto a tendência desintegrativa é fruto da vontade que rompe com a estrutura da subjetividade. As analogias entre as forças de integração e desintegração e o princípio apolíneo e dionisíaco parecem-me mais do que óbvias e, tanto para Nietzsche como Pessoa, o encontro com a obra de arte subverte a lógica aristotélica da mimese/mathesis, tendo em conta que supõe uma tensão constante entre as formas nítidas e «um estado de desindividuação ou de de-subjectivação, o estado dionisíaco de privação ou suspensão dos limites individuais» (Branco, 2016: 310). O fato que o artista não aristotélico, em vez de agradar pretende subjugar o seu público,88 Theodor W. Adorno, no Ästhetische Theorie, faz uma distinção nítida entre o conceito do Kunstgenuss (prazer artístico) e do Erschütterung (abalo, choque) que pode facilmente ser relacionado com a dicotomia pessoana de uma arte aristotélica que agrada e uma arte não aristotélica que subjuga. Enquanto o Kunstgenuss característico do paradigma burguês pensa na obra de arte como um produto cujo fim é agradar e entreter o sujeito, a experiência estética do Erschütterung – que caracteriza as vanguardas – confronta a subjetividade com a suspensão e a perda da sua identidade. (1970: 363-364) na minha perspetiva, relaciona-se com essa mesma política de de-subjectivação e desumanização bem caraterístico nos movimentos de vanguarda, mas sobretudo no futurismo.99 Günter Berghaus, na sua monografia Futurism and Politics: Between Anarchist Rebellion and Fascist Reaction, explica detalhadamente a influência das ideias nietzschianas no pensamento e na estética de Marinetti (1996: 25-26). O artista verdadeiro, ou seja, o artista não aristotélico, na formulação de Pessoa «é um foco dinamogéneo» (Campos,1980: 256), o que nos reconduz ao imaginário futurista, fortemente presente na já referida Ode Triunfal. Assim, a estética não aristotélica inspirada tanto no pensamento nietzschiano como na estética de choque das vanguardas parece ser uma abordagem adequada para o modernismo chocante do projeto literário de Fernando Pessoa, que quebra a estrutura da subjetividade cartesiana e abre tanto o poeta como o leitor para o universo fascinante da pluralidade. Bibliografia Adorno, Th. W. (1970): Ästhetische Theorie. Frankfurt: Suhrkamp. Almada Negreiros, J. de (1981): «Os Bailados Russos em Lisboa». Em Portugal Futurista (edição facsimilada). Lisboa: Contexto. 2-4. Aristóteles (1984): Poética. São Paulo: Victor Civita. Badiou, A. (2005): Handbook of Inaesthetics. Stanford: Stanford University Press. Baudelaire, Ch. (2006): O pintor da vida moderna. Lisboa: Vega. Berghaus, G. 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An aesthetics of force –Notes for a Non-Aristotelian Aesthetics and the aesthetic thought of Fernando Pessoa Keywords: aesthetics, Modernism, Fernando Pessoa, Álvaro de Campos, Aristotle This article focuses on Fernando Pessoa’s aesthetic theory and the position of Notes for a Non-Aristotelian Aesthetic, a pivotal reflection on the question of the arts by the heteronym Álvaro de Campos, in the Portuguese author’s aesthetic system. Departing from the question of the diversity of Pessoa’s ideas on arts, I first situate the essay in the large corpus of his theoretical writings and then I seek to demonstrate how it subverts the traditional categories of Aristotle’s Poetics and how it can be related to the philosophy of Friedrich Nietzsche and the revolutionary aesthetic strategies of the avant-garde movements. Estetika sile – nekaj opomb k nearistotelski estetiki in estetska misel Fernanda Pessoe Kljucne besede: estetika, modernizem, Fernando Pessoa, Álvaro de Campos, Aristotel Clanek se osredotoca na estetsko teorijo Fernanda Pessoe in pomembnost dela Zapiskov za nearistotelsko estetiko, delo, ki je kljucno za heteronimna razmišljanja o vprašanju umetnosti Álvara de Camposa v estetskem pogledu tega portugalskega avtorja. Ce izhajamo iz vprašanja raznolikosti Pessojevih idej o umetnosti, avtor esej najprej umesti v obsežen korpus njegovih teoretskih spisov, nato pa skuša pokazati, kako spodkopava tradicionalne filozofske kategorije Aristotelove Poetike in kako ga je mogoce povezati s filozofijo Friedricha Nietzscheja in revolucionarnimi estetskimi strategijami avantgardnih gibanj. Bálint Urbán Bálint Urbán possui mestrado em Literatura Portuguesa, Teoria de Artes e Metodologia de Ensino da Universidade Eötvös Loránd (ELTE) de Budapeste, e obteve o seu doutorado em literatura portuguesa contemporânea na mesma instituição académica em 2016. Entre 2017 e 2019 trabalhou como professor visitante na Universidade Estadual do Ceará. Desde 2019 é professor auxiliar do Departamento de Português da Universidade Eötvös Loránd. O seu livro intitulado Enterrar El-Rei Sebastião: A Reinterpretação e A Reescrita do Mito de D. Sebastião na Ficção Pós-25 de Abril foi publicado em 2019 pela EdUECE.   Endereço: Eötvös Loránd Tudományegyetem  Bölcsészettudományi Kar  Romanisztika Intézet – Portugál Nyelvi és Irodalmi Tanszék  Múzeum körút 4/C (149-es szoba)  1088 Budapest  Hungary Correio eletrónico: urban.balint@btk.elte.hu  Cláudia Maria de Souza Amorim DOI: 10.4312/vh.31.1.119-129 Universidade do Estado do Rio de Janeiro Descolonizar a terra, o corpo, a palavra: uma leitura de Caderno de memórias coloniais, de Isabela Figueiredo Os modos principais ou mais difundidos da dominação mo­derna são o capitalismo, o colonialismo e o patriarcado. Os dois últimos existiam antes do capitalismo, mas este reconfigu­rou-os de maneira profunda, a fim de garantir uma exploração sustentável do trabalho humano e da natureza. A exploração da mão de obra livre não se sustenta sem uma mão de obra extremamente desvalorizada, ou uma mão de obra não paga, provida por corpos racializados (colonialismo) e sexualizados (patriarcado). Boaventura de Sousa Santos Palavras-chave: Pós-colonialismo, narrativa portuguesa contemporânea, Isabela Figueiredo O artigo analisa a narrativa Caderno de memórias coloniais, de Isabela Figueiredo, observando a corporeidade como eixo central da narrativa. A chave de leitura que dá relevo ao corpo está explícita na narração da jovem Isabela que passa em revista os anos vividos em Moçambique e de como o pai exercia o poder colonial, sendo a representação metonímica do domínio português sobre os nativos. Observando o seu próprio corpo, o corpo dos pais e o corpo aparentemente submisso dos negros e negras, a jovem contesta o colonialismo, desenvolvendo com o pai uma relação ambígua em que entram em cena o afeto por ele e a recusa ao que ele representava. Nesse domínio do corpo se associam o colonialismo e o patriarcalismo, como sistemas de opressão. Através da ironia, a personagem-narradora expõe o caráter brutal do colonialismo português em África ao mesmo tempo em que toma consciência de seu corpo e de sua singularidade que passa ainda pelo exercício da escrita. 1 Introdução “No princípio eu era de carne e estava na terra. Começou assim. Não pensei em mim como rapariga nem como branca nem como rica ou pobre. Não pensei porque não era preciso. Eu era de carne e estava na terra.” (Figueiredo, 2015: 7). Com essa observação após um poema de Manuel António Pina, Isabela Figueiredo inicia o prefácio “Palavras Prévias”, apenso ao livro Caderno de memórias coloniais, cuja primeira edição vem a lume em 2009, pela Editorial Caminho, em Portugal. Nesse prefácio, encontram-se expostas as razões pelas quais Isabela Figueiredo escreveu o Caderno. Ele surge muitos anos depois de sua partida de Moçambique e expõe algumas das tensões que marcaram o passado colonial nesse país, onde a autora viveu até os 13 anos, a sua relação ambígua com o pai – um homem colonialista e racista, cujos valores serão contestados pela filha adolescente durante o período mais difícil da vida de sua família na capital Lourenço Marques (atual Maputo), e a sua crítica a um sistema opressor em cadeia, no qual os homens brancos oprimiam as mulheres brancas, ambos oprimiam os homens e mulheres negros, e homens negros oprimiam as mulheres negras. Nesse sistema opressor, sem desprezar os outros componentes da sociedade colonialista e patriarcal, é nítido que a violência do branco europeu sobre o negro africano constitui a face mais cruel da colonização. Tal violência é o fio condutor da denúncia que o Caderno nos traz. Ao aludir, nesse prefácio, a uma espécie de autorretrato essencial – “eu era de carne e estava na terra” – a autora associa a vida (a carne) à terra (o chão onde se pisa), ratificando a ideia de que o corpo não se separa da terra, àquela altura a terra africana, terra onde nascera filha de pais brancos portugueses e colonos. Nessa declaração, uma espécie de Gênesis de sua origem, já se nota o aspecto da corporeidade que singulariza a narrativa. A menina Isabela cresce observando dos corpos as marcantes diferenças, que, na infância, com os pés na terra, lhe eram irrelevantes. À medida que cresce, as diferenças se tornam evidentes e são muitas: as que separam um corpo negro de um branco; o corpo masculino do feminino, o corpo das crianças do dos adultos. 2 O corpo que atravessa a obra Como uma chave de leitura, o corpo como espaço próprio e espaço de dominação atravessa toda a obra de Isabela Figueiredo. Não se trata apenas do seu corpo e do corpo do outro, mas de um corpo territorial (Moçambique) dominado pelo regime colonialista decadente, um corpo doente do Império que os colonos insistiam em defender. Como observou Madalena Vaz Pinto (2022: 34), no artigo “Caderno de memórias coloniais: corpo, linguagem, inacabamento”, O lugar central que o corpo ocupa nesta narrativa também contri­bui para lhe conferir um lugar particular na literatura portuguesa. [...]. Ainda sem linguagem, Isabela sente, observa. O corpo dela e dos outros. As diferenças. As liberdades e os interditos. O corpo como lugar do desejo, o corpo como espaço de poder. O corpo dos portugueses, o corpo dos africanos; os corpos dos homens, os corpos das mulheres. O corpo do pai, o corpo da mãe [...]. Interessa-nos observar a ideia central do corpo na narrativa, focalizando, primeiramente, o conflituoso processo de descolonização11 Embora se use continuamente o sintagma “processo de descolonização”, Eduardo Lourenço observa se é correto assim nomeá-lo, uma vez que não existiu um projeto de conversão do antigo estatuto colonial para outro tipo de organização social. (Laranjeiro, 2015). de Moçambique englobando o tempo anterior à Revolução dos Cravos e à independência do país, bem como os anos subsequentes a esses acontecimentos históricos, que acentuam a crise e propiciam a saída em massa de colonos portugueses da África. Nesse sentido, a terra africana é o corpo dominado pelo Império, ainda que imaginário22 Ribeiro (2004: 27) observa que “Todos os impérios são, em grande parte, imaginários ou ficções políticas de nações que se excedem a si mesmas. Um império é, por definição, uma nação que se espalhou por terras longínquas do seu berço inicial e, nessa medida é um território em processo simultâneo de desterritorialização e de reterritorialização”. , que persiste na insustentabilidade da política imperialista nos moldes como Portugal a desenvolvia àquela altura. Em seguida, como um círculo concêntrico, que parte do social ao particular, focalizam-se os corpos tensionados no contexto colonial pelo racismo e pelo patriarcalismo, quase sempre conjuntos em suas ações violentas, pela perspectiva de uma jovem branca, que contesta os valores sociais comungados pela sua família e fortemente defendidos por seu pai. Por fim, objetiva-se pensar a escrita como um corpo, uma escrita que ganha forma a partir da elaboração subjetiva de Isabela, a personagem-narradora, como uma vivência do luto (luto pelo pai, apesar de sua representação metonímica do colonialismo), luto também por um tempo em que Isabela “era de carne e estava na terra.”. No prefácio acima referido, Isabela Figueiredo define o que é o Caderno, segundo sua percepção: [...] o Caderno transcende as questões de poder colonial, racial, social e de género, transformando-se, também, numa narrati­va de amor filial conturbado e indestrutível. Segue o percurso sensual e iniciático da menina que descobre o seu corpo e os alheios. É uma história de perda, na qual uma rapariga cujo percurso autónomo se adivinha, sente e mostra a necessida­de de desenvolver a resistência máxima, e de crescer depressa, para garantir a sobrevivência, testada ao atravessar a realidade hostil da colonização e da descolonização em Portugal, para onde é enviada sozinha. (Figueiredo, 2015: 9) Se o amor filial se faz presente na obra, também ganha relevo logo nas primeiras páginas da narrativa a imagem do pai como um colono que “gostava de foder” (Figueiredo, 2015: 42). Ele e os demais brancos “iam às pretas” (Figueiredo, 2015: 38), sem qualquer constrangimento, como uma apropriação do corpo alheio que não pudesse ser questionada. Sobre esse aspecto da dominação sexual, observa Paulina Chiziane (2015: 18) no prefácio à obra de Figueiredo: O corpo das mulheres brancas ou negras, o corpo da terra afri­cana, só o homem branco podia usar, tocar abusar e violentar. Aqui o continente africano é também representado no femi­nino, que só o homem branco podia usar, abusar e violentar. Acionando a memória da infância, a narradora vai tecendo, nas entrelinhas dos discursos dos pais e dos colonos brancos com quem convivia, um questionamento a esse discurso, que lhe aparece inicialmente como estranhamento. A repetição das falas dos familiares e colonos, especialmente a do pai, em contraste com a opinião da narradora, compõe o tecido crítico da narrativa, delineado desde os primeiros questionamentos ingênuos da menina Isabela até o discurso da jovem, contestatório e irônico, ao projeto colonialista português. É por meio da observação e da leitura, práticas habituais de Isabela, que essa crítica se consolida como uma tomada de consciência. Os livros mostravam-me que na terra onde vivia não existia re­denção alguma. Que aquele paraíso de interminável pôr-do-sol salmão e odor a caril e terra vermelha era um enorme campo de concentração de negros sem identidade, sem a propriedade do seu corpo, logo, sem existência. (Figueiredo, 2015: 52). O questionamento de Isabela em relação às posições do pai se acentua de tal modo, ao longo da narrativa, que a jovem, ao deixar Moçambique para morar em Portugal com alguns familiares, recusa-se a ser a portadora da mensagem dos colonos sobre o conflito violento que se passava em Moçambique após a Independência, quando os brancos colonos começam a ser duramente assassinados pelos nativos africanos ligados aos movimentos independentistas. 3 A recepção do Caderno e os confrontos com o passado colonial A sua versão dos fatos, no caminho oposto àquele que os seus pais esperavam que fizesse, se concretiza, anos depois, na escrita do Caderno, no qual desnuda as mazelas do colonialismo em Moçambique, e denuncia, pelo viés da ironia, o discurso que o sustentou. No contexto em que surge o Caderno, é surpreendente, para a própria escritora, que ele tenha causado tanto impacto em um país democrático, que passava em revista crítica os duros anos do salazarismo como também a guerra colonial. Tal impacto acaba por resultar numa espécie de descrédito tanto da autora, quanto da obra: “Desenvolveram-se esforços para descredibilizar o Caderno com argumentos relacionados com a minha tenra idade e desconhecimento, a minha origem social, o facto de ter vivido no Alto-Maé e na Matela, lugares habitados por brancos menos instruídos.” (Figueiredo, 2015: 10). Contudo, a obra foi bem recebida nos círculos acadêmicos e obteve novas edições, o que denota o interesse de uma parcela da sociedade portuguesa em rever os difíceis temas da história recente do país. Portanto, o corpo “morto” do sistema colonial, que se quis enterrar, por vezes, após a Revolução dos Cravos, ressurge nos anos subsequentes através da revisão crítica e histórica do colonialismo. A narrativa de Isabela Figueiredo emerge nesse contexto, em que a necessidade de revisar a história parece se impor. Como observa Ribeiro (2020: 128, grifos nossos), na virada do século, o debate sobre o passado colonial começa a se fazer mais presente tanto na literatura, quanto em outras áreas do conhecimento na sociedade portuguesa. À parte os romances que retratavam a realidade do que tinha sido a Guerra Colonial, o silêncio foi a marca dos anos 80 e 90 do século passado, relativamente a este passado recente português. Hoje, o que vemos na verdade não é o regresso do passado co­lonial, mas o início do debate entre esse tempo marcado pela dominação colonial e as relações sociais contemporâneas em sociedades herdeiras desses passados coloniais na Europa. Se­jam debates sobre a continuidade de um olhar colonial euro­peu, sobre o reconhecimento público da memória da escrava­tura e do colonialismo, [...]. 4 A cisão na África colonial e no corpo do sujeito Voltando ao Caderno, vemos que, ao observar a família, as pessoas de sua convivência, inclusive os empregados do pai, os nativos habitantes de Lourenço Marques, a personagem-narradora, à medida que cresce, percebe-se parte de um mundo cindido. E essa cisão experimenta-a no seu próprio corpo. Como observa José Gil (2015: 24), em um prefácio à obra: O filho de colono nasce em estado de cisão. Múltipla cisão: entre o mundo material e elementar de África, com os seus espaços imensos, o excesso de tudo, no sol, no calor, na chuva, nas cores, nos ruídos, nos perigos – e o mundo cultural de Portugal, recitado na escola, veiculado por uma língua inapta para captar a geografia, a fauna e a flora africanas que as línguas indígenas conheciam tão bem; [...]. A singularidade da vida na África, o aprendizado da terra, despertava na personagem um entrelaçamento com o mundo natural que a rodeava, um mundo em que o corpo é parte da natureza. “A terra era boa, mas era boa porque estava nua. A picada, a machamba, o mato. Todos nus.” (Figueiredo, 2015: 63). Essa vivência com a natureza e as pessoas que a cercavam a levará a dedicar uma certa afeição ao “filho do vizinho preto” (Figueiredo, 2015: 79), um garoto da sua idade. Tinham ambos dez anos. Eu tinha medo do filho mulato que já devia estar a crescer na minha barriga, de certezinha. Agradava-me o rapaz, e já tinha percebido que quando um homem e uma mulher gostavam um do outro, nascia uma criança. Se eu tivesse grávida do preto, o meu pai podia matar-me, se quisesse. (Figueiredo, 2015: 80). A descoberta da sexualidade, normalmente reprimida na sociedade patriarcal, fazia-se assim entre a curiosidade em relação ao próprio corpo e o campo do interdito para a jovem Isabela. A personagem-narradora, ainda criança, sente medo do castigo do pai, porque imaginava um “filho mulato” crescendo em seu corpo. Como se sabe “a mestiçagem foi por muito tempo uma ameaça às potências coloniais e imperialistas” (Michel, 2012: 658) e a personagem experimenta intuitivamente o temor de subverter a ordem ao imaginar-se miscigenada aos nativos e à história local. Reforçando a ameaça da mestiçagem e o exercício de dominação, a distância dos corpos dos negros e dos brancos era abissal, mesmo entre os mainatos (os empregados que viviam nas casas dos colonos). Essa distância traduzia-se por vezes no andar cabisbaixo dos nativos que não deveriam ousar olhar os brancos. O império colonial impunha o domínio dos corpos, que deveriam se tornar dóceis e submissos, como incapazes de qualquer reação. Contudo, essa domesticação do corpo alheio não impedia ações e/ou expressões que denunciavam as tensões existentes, quando a jovem Isabela flagra nos olhos de um dos trabalhadores de seu pai o “frio fervente de ódio e miséria suja, dependência e submissão, sobrevivência e conspurcação” (Figueiredo, 2015: 52), mostrando-lhe que “não havia olhos inocentes”. (Figueiredo, 2015: 52). A Revolução dos Cravos e as ações que se seguem à chegada da notícia do que ocorria em Portugal operam uma reviravolta nas relações de poder nas colônias e os conflitos se tornam intensos. Os pais de Isabela resolvem mandar-lhe para Portugal. Uma semana antes da partida, percebendo que “a vida de um branco em Lourenço Marques tinha-se tornado um jogo de sorte ou azar” (Figueiredo, 2015: 37), a jovem relata o episódio em que jogou esse jogo, “sem perdas de maior” (Figueiredo, 2015: 137) ao ser alvo de uma abordagem violenta por parte de um jovem negro que [...] esmagou o meu corpo contra si, arrebanhando com a mão direita o meu monte de Vénus, apertando-o com força, como espremeria um caju para sumo. Olhou-me nos olhos, muito perto, sem temor, sem culpa. Largou-me sem palavra, e conti­nuou rápido, sem se voltar. (Figueiredo, 2015: 138). A cena descrita, em que a agressão sexual se desenha, inverte o lugar de poder dos corpos, num contexto em que a violência se volta contra o corpo do colonizador, seja a de caráter sexual, seja a do domínio da guerra, quando muitos colonos são brutalmente assassinados e têm seus corpos mutilados pelos guerrilheiros. 5 A ambiguidade na narrativa Caderno de memórias coloniais estampa a “verdade nua e brutal do colonialismo português em Moçambique” (Gil, 2015: 23), não sem trazer em seu tecido narrativo a ambiguidade das relações de Isabela com o pai, que a jovem tenta, a despeito de tudo, “proteger [...] da fácil e tentadora diabolização que sobre ela é possível desenhar” (Figueiredo, 2015: 13). O Caderno, sublinha a autora, “existe por ele e para ele. [...] e esta obra é a carta que quis deixar-lhe” (Figueiredo, 2015: 13). Como observa Anita Moraes (2010: 243), A centralidade da figura paterna é importante para a econo­mia do livro, configurando-se numa espécie de protagonista e mes­mo num in­terlocutor subentendido (lembremos que o livro é dedicado a sua memória). O trânsito geral/particular/geral na composição dessa personagem-central torna-se decisivo: as ações e características do pai podem ser tomadas como pró­prias de todo o grupo de que faz parte (os colonos brancos). Se as relações entre a filha e seu pai são marcadas pela ambiguidade no campo dos afetos, outra ambiguidade se faz presente também na estrutura da narrativa em que, para além da “verdade nua e brutal do colonialismo”, portanto da verdade testemunhal, encontra-se o trabalho de elaboração poética, que faz dessa narrativa um texto heterogêneo. Isso não quer dizer que o componente testemunhal sem dimensão literária não seja ele mesmo também fonte de trabalho com a linguagem. Como observa Seligman-Silva (2006: 46-47), O testemunho coloca-se desde o início sob o signo da sua si­multânea necessidade e impossibilidade. Testemunha-se um excesso de realidade e o próprio testemunho enquanto na­rração testemunha uma falta: a cisão entre a linguagem e o evento, a impossibilidade de recobrir o vivido (o “real”) com o verbal. O dado inimaginável da experiência concentracio­nária desconstrói o maquinário da linguagem. Essa linguagem entravada, por outro lado, só pode enfrentar o “real” equipada com a própria imaginação: por assim dizer, só com a arte a intraduzibilidade pode ser desafiada – mas nunca totalmente submetida. 6 Conclusão Não há dúvida de que nessa narrativa em primeira pessoa, em que a voz da personagem-narradora é simultaneamente a voz da autora da obra, o caráter testemunhal e autobiográfico são fatores incontestes, o que dificulta a própria definição da obra no campo dos gêneros literários. Como observou Madalena Vaz Pinto (2022: 231), “talvez importe menos situar o texto, arrumá-lo em um gênero definitivo, e antes enfatizar sua indecibilidade radical como potencial abertura a insuspeitadas leituras.”. Como escrita, a narrativa marca-se por um rico hibridismo, ao compor-se de fragmentos, de fotografias em grande parte pessoais33 A obra é composta de nove fotografias: duas delas são da paisagem urbana de Alto Maé, onde morava a família de Isadora Figueiredo, a outra de Lourenço Marques. Há uma em que aparecem os nativos em uma espécie de feira, e outra em que Isabela está ao lado de familiares e de uma criança e uma mulher negra. As demais mostram centralmente Isabela criança e já adolescente. , de acontecimentos que evocam a biografia de Isabela Figueiredo. Em contrapartida, também se estendem ao domínio da criação literária, da elaboração poética, da ficção. Disso resulta um corpo de escrita no qual a personagem-narradora reconstitui e revê criticamente o corpo do colonialismo, metonimizado por seu pai, e a tensão dos corpos subjugados em suas relações. Referências Chiziane, P. (2015): “Sobre Caderno de memórias coloniais”. Em: Isabela Figueiredo. Caderno de memórias coloniais. 6ed. Lisboa: Editorial Caminho, 15-22. Figueiredo, I. (2015): Caderno de memórias coloniais. 6ed. Lisboa: Editorial Caminho. Gil, J. (2015): “Sobre Caderno de memórias coloniais”. Em: Isabela Figueiredo. Caderno de memórias coloniais. 6ed. Lisboa: Editorial Caminho, 23-28. Laranjeiro, C. (2015) “Recensão crítica ao livro Do colonialismo como nosso impensado. Prefácio de Margarida Calafate Ribeiro e Roberto Vecchio. Lisboa: Gradiva”. Revista crítica de Ciências Sociais. Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, 182-185. Marzano, M. (org.) (2012). Dicionário do corpo. Tradução: Lúcia Pereira de Souza et al. 1ed. 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Observing her own body, her parents’ bodies and the apparently submissive bodies of black men and women, the young woman contests colonialism, developing an ambiguous relationship with her father in which her affection for him and her rejection of what he represents come into play. In this domain of the body, colonialism and patriarchalism are associated, as systems of oppression. Through irony, the narrator-character exposes the brutal nature of Portuguese colonialism in Africa at the same time that she becomes aware of her body and its singularity, which also involves the exercise of writing. Dekolonizacija zemlje, telesa, besede: branje knjige Caderno de memórias coloniais Isabele Figueiredo Kljucne besede: postkolonializem, sodobna portugalska pripoved, Isabela Figueiredo Clanek analizira pripoved Caderno de memórias coloniais portugalske pisateljice Isabele Figueiredo, opazujoc telesnost – ki tvori osrednjo os njene pripovedi. Kljuc za branje, poudarjena vloga telesa, je eksplicitno izražen v pripovedi mlade Isabele, ki pogleduje na leta, ki jih je preživela v Mozambiku, in na nacine, kako je njen oce vladal v tej kolonialni državi, saj imamo opraviti z metonimicnim prikazom portugalskega vladanja nad lokalnim prebivalstvom. Ob opazovanju lastnega telesa, teles svojih staršev in navidezno pokorjenih teles temnopoltih moških in žensk mlada ženska oporeka kolonializmu in razvija dvoumen odnos z ocetom, v katerem se prepletata njena naklonjenost do njega in zavracanje vsega, kar predstavlja. Telesa so obmocje, kjer se kolonializem in patriarhalizem povezujeta kot sistema zatiranja. Pripovedovalko zaznamuje ironija – kajti protagonistka razkriva brutalno naravo portugalskega kolonializma v Afriki, hkrati pa se zaveda svojega telesa in njegovih posebnosti, kar vkljucuje tudi akt pisanja. Cláudia Maria de Souza Amorim Cláudia Maria de Souza Amorim é professora associada de Literatura Portuguesa da UERJ, onde atua na graduação, especialização e pós-graduação do Programa de Pós-Graduação em Letras. Membro do PPG - UERJ desde 2008, orientou dissertações e teses e supervisionou estágios de pós-doutoramento especialmente em Literatura Portuguesa Contemporânea. É autora de ensaios de crítica literária e de artigos científicos publicados em periódicos especializados no Brasil e no exterior. Atualmente, desenvolve pesquisa, com financiamento institucional, sobre a narrativa portuguesa do século XXI, que versa sobre os temas do pós-colonialismo, dos retornados de África e da guerra colonial. Endereço: Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Rua São Francisco Xavier, 524 - Maracanã, Rio de Janeiro – RJ 20550-013 Brasil Correio eletrónico: claudia.amorim@uol.com.br Ana Zwitter Vitez DOI: 10.4312/vh.31.1.131-149 Univerza v Ljubljani The Lusophone World in French Political and Internet Discourse Keywords: Lusophony, French language, political discourse, internet discourse, corpus linguistics The paper aimed to examine the terms related to the concept of Lusophony in the French political and internet discourse to better understand the role of the Lusophone world in French-speaking society. We conducted a grammatical and contextual analysis of the words Portugal, Brésil, and lusophonie (and their adjectives) as they are used in the Europarl corpus and the FrTenTen corpora. The results show interesting differences between the two discourse genres. In political discourse, the examined words are related mostly to discussions about the economy, environmental issues, and food exports. On the other hand, in online discourse the analysed terms are most frequently applied to the topic of football, but also to discussions about colonization and beauty treatments (like Brazilian hair straightening). Utilizing the analysis presented in this study we could not detect the topic of culture, which is an unexpected result with regard to the global importance that Lusophone culture has in the field of music (e.g. fado and bossa nova), dance (e.g. samba and capoeira), and literature (e.g. Fernando Pessoa and José Saramago). 1 Introduction The concept of Lusophony opens an interdisciplinary research field focusing on different diachronic (Cahen, 2013) and synchronic aspects (Fernandes, 2018) of the Portuguese-speaking world. With approximately 230 million native speakers, Lusophony covers an interesting set of cultural identities, regions, communities, and countries related to the use of Portuguese, such as Portugal, Brazil, Angola, Mozambique, and so on. In France, the topic of Lusophone studies is important for two reasons: the first is the close political cooperation between France and the main Portuguese-speaking countries (Portugal and Brazil), and the second is a strong Lusophone community of around one million people living in France. The majority of these Portuguese-speaking people live in the Parisian outskirts, but also in other regions such as Corse or Normandy. Portuguese immigration in France took place mainly during the 1960s and 1970s, when many people wanted to escape António de Oliveira Salazar’s dictatorship. Another reason for migrations toward France was the economic stagnation of Brazil, a traditional destination for the Portuguese, and the measures taken by France to attract Portuguese workers. The analysis aims to examine the linguistic characteristics of the main terms representing the concept of Lusophony in political and online discourse to detect linguistic patterns that intuition alone cannot perceive, and to achieve a deeper understanding of the dimensions of the Lusophone world in French-speaking society. The study was conducted as part of the welcome for the new study programme, Portuguese language and culture, at the Faculty of Arts, University of Ljubljana. 2 Methodology We present a grammatical and contextual analysis of the words Portugal, Brésil, and Lusophonie (and their adjectives) used in French parliamentary and internet discourse. The analysis was systematically carried out at the level of the relations that the selected words have with their most frequent collocations (e.g. Portuguese presidency) and at the level of the discourse value of these words within their authentic context (e.g. The Portuguese and Slovenian presidencies must prepare intensively for what we are doing). 2.1 Corpus To examine how the concept of Lusophony operates in French online and parliamentary discourse, we have chosen the corpus approach. This approach provides empirical results that can be interpreted at both quantitative and qualitative levels, but it first requires drawing up a list of terms that most objectively represent the core concept of our study – Lusophony. The first step was to select the corpus for our analysis. We decided to benefit from the existing corpora that include parliamentary and everyday online discourse: the Europarl corpus (Koehn, 2005) and the FrTenTen Corpus (Baroni et al., 2009). The Europarl corpus brings together the deliberations of the European Parliament produced between 2007 and 2011 and translated into 21 European languages. The French section of the corpus contains more than 66 million occurrences or around two million sentences. The texts were automatically processed with the TreeTagger tool (Schmid, 1994), which enables queries to be made at the level of lemmas and parts of speech. The FrTenTen corpus is a French corpus compiled from texts collected on the internet. It belongs to the TenTen corpus family which includes more than 30 languages. The corpus currently contains 5.7 billion words and includes many varieties of the French language – European, Canadian, and African French. It has been annotated with the FreeLing tool (Padró et al., 2012). We analysed the selected corpora with the SketchEngine search tool (Kilgarriff et al., 2014), which allows us to study a chosen word at the levels of frequency, collocations, and their most frequent contexts. This enables us to establish new hypotheses about the meaning and the impact of the examined linguistic structures in different communication situations. 2.2 Analytic procedure After choosing the corpora for the analysis, we selected the relevant terms and the analytic procedure. For the selection of terms, we consulted the texts Préhistoire de la lusophonie (Rozeaux, 2019) and Histoire du Portugal et de son empire colonial (Oliveira Marques, 1998). We chose to focus our analysis on the following terms: Portugal, portugais, Brésil, brésilien, Lusophonie, and lusophone.11 On the semantic level, the terms lusophonie and lusophone are not completely analogous – the noun lusophonie refers to a political-diplomatic concept, while the adjective lusophone refers to communities of speakers of the Portuguese language. The pair Portugal and portugais was chosen because it represents the country which is at the origin of Lusophony, the pair Brésil and brésilien because it concerns the largest Lusophone community, and the pair lusophonie and lusophone because it denotes explicitly the targeted object of our analysis. The research aimed to perform a linguistic analysis of the chosen terms as they are authentically used in French political and online discourse to provide new insights into the dimensions and challenges of the contemporary Lusophone world. We analysed each of the selected terms from a grammatical and contextual point of view. To observe the grammatical behaviour of the terms, we generated their lexical profile using the Word Sketch function. This function gathers information from thousands of examples and provides their collocations, defined as words frequently used with the term in question (e.g. annual inflation). The result is a measure organized into categories following their grammatical relations between the word in question and its surrounding words (e.g. adjective: accelerating inflation, verb – to bring inflation under control, and noun: inflation rate). Figure (1) reveals the lexical profile of the word Portugal in parliamentary discourse. Figure 1. Portugal: lexical profile in the Europarl corpus. Figure 1 shows that the word Portugal is often used as a subject in structures like Le Portugal a enregistré and le Portugal connaît (Portugal is experiencing) and also object in structures like ravager le Portugal (to ravage Portugal), dévaster le Portugal (to devastate Portugal), and exempter le Portugal (to exempt Portugal). Once the lexical profiles of the selected terms had been drawn up, we analysed the context in which the words with their typical collocations were used. To do this we used the concordance function, which shows the authentic context where the examined words were used. Picture (1) shows the concordances for the structure Portugal enregistre (Portugal records) in the Europarl corpus. Picture 1. Context of the structure Portugal enregistre in the Europarl corpus. As shown in Picture (1), the syntagm le Portugal enregistre is used in the context of the economic activity which is measured by the gross domestic product (in French produit intérieur brut (PIB), as shown by example (1): (1) Or, comme vous le savez, le Portugal enregistre l’un des niveaux de PIB par habitant les plus bas de l’ Union européenne. (However, as you know, Portugal has one of the lowest levels of GDP per capita in the European Union.) The syntagm le Portugal connaît, on the other hand, is used especially in the context of negative phenomena, such as drought, as shown in example (2): (2) Monsieur le Président, Monsieur le Commissaire, Mesdames et Messieurs, le Portugal connaît une épouvantable séche­resse impliquant des pertes de récoltes, des décès d’animaux. (Mr. President, Commissioner, ladies, and gentlemen, Por­tugal is experiencing a terrible drought involving loss of crops and death of animals.) If we move to examples where Portugal functions as the grammatical object, Figure (1) shows that the predominant structure is ravager le Portugal. Picture (2) shows the concordances for this structure in the Europarl corpus. Picture 2. Concordances of the structure ravager le Portugal. Picture (2) shows that the structure ravager le Portugal is used in political discourse, especially in the context of forest fires (example 3): (3) Monsieur le Président, les graves incendies de forêts qui ont ravagé le Portugal cette année ont également touché des zones agricoles et urbaines. The structure exempter le Portugal is used especially when speaking about EU financial assistance regarding the Portugal’s difficult economic situation (example 4): (4) La décision d’exempter le Portugal de l’exigence de co­financement pour un montant de 320 millions d’euros est une décision raisonnable. (The decision to exempt Portugal from the co-finan­cing requirement for an amount of 320 million euros is a reasonable decision.) Once the lexical profiles were produced and the concordances analysed, we examined the results concerning the chosen words in the Europarl and FrTenTen corpora. The objective of this analysis was to explore if there are, for each of the two discourse genres, specifics at the linguistic level that could help to interpret the status and challenges of Lusophony in French political and everyday discourse. 3 Analysis and results After gathering the information regarding the lexical profile and contextual value of the observed terms, we were able to proceed to their analysis. 3.1 Portugal and Portugais We have already seen in Figure (1) the lexical profile of the word Portugal and the contextual value of its collocations as they are used in the European Parliament. We can now proceed to the comparison between the linguistic behaviour of the word Portugal in political (Europarl corpus) and online discourse (FrTenTen corpus). Figure (2) shows lexical profiles of the word Portugal in both discourse genres. Figure 2. Portugal: lexical profile in the Europarl and FrTenTen corpora. As shown in Figure (2), the proportion of structures where the word Portugal operates as a grammatical object is considerably higher in internet discourse than in political discourse.The most frequent verbs surrounding the word Portugal in online discourse are affronter le Portugal and battre le Portugal (examples 5 and 6). The analysis of the concordances shows that these structures are used within the discussions about football. (5) La Serbie ira affronter le Portugal ce lundi 25 mars dans le cadre du début des éliminatoires de l’Euro 2020. (Serbia will confront Portugal on Monday, March 25, as part of the start of the Euro 2020 qualifiers.) (6) La France bat le Portugal 1 à 0 et se qualifie pour la phase finale. (France beats Portugal 1-0 to qualify for the finals.) When the word Portugal functions as the subject within internet discourse, it refers to the context of football as well (remporter and affronter, examples 7 and 8): (7) Avec cette victoire au stade de France, le Portugal rem­porte son premier grand titre. (With this victory at the Stade de France, Portugal wins its first major title.) (8) Ce lundi 26 mars, le Portugal affronte les Pays-Bas en match de préparation à la Coupe du monde 2018. (This Monday, March 26, Portugal confronts the Neth­erlands in a preparation match for the 2018 World Cup.) The next term to be analysed on grammatical and discourse levels was the adjective portugais produced in French political and online discourse, as shown in Figure (3): Figure 3. Portugais: lexical profile in Europarl and FrTenTen corpora. Figure (3) shows that in political discourse the most typical nouns accompanied by the adjective portugais are présidence, gouvernement, pêcheur, ministre, and flotte, and in internet discourse the most typical nouns are colonie, technicien, entraîneur, and footballeur. The analysis of concordances reveals that in political discourse the most typical nouns are related to Portugal’s presidency of the European Union and the important field of maritime affairs activities, especially fishing (example 9): (9) Je vous remercie, M. le Président, pour votre discours et je souhaite un franc succès à la présidence portugaise. (Thank you, Mr. President, for your speech and I wish great success to the Portuguese Presidency.) In online discourse, on the other hand, the adjective portugais is used especially in the context of colonization with the words colonie and navigateur (examples 10 and 11) and in the context of football, with expressions footballeur, entraîneur, and technicien (example)12: (10) Macao – jadis une colonie portugaise, aujourd’hui une région administrative spéciale de la République populaire de Chine, qui est l’équivalent asiatique de Las Vegas. (Macao – once a Portuguese colony, now a special admi­nistrative region of the People’s Republic of China, which is the Asian equivalent of Las Vegas.) (11) Les navigateurs portugais commencèrent à explorer le monde vers le xve siècle: la découverte de l’Amérique et son occupation politique en marquèrent la grande époque. (Portuguese navigators began to explore the world around the fifteenth century: the discovery of America and its political occupation marked its great era.) (12) Cette initiative permettra aux amateurs de sport de se mesu­rer au footballeur portugais Cristiano Ronaldo. (This initiative will allow sports fans to compete against Portuguese footballer Cristiano Ronaldo.) 3.2 Brésil and brésilien The second pair to examine on grammatical and contextual levels included the words Brésil and brésilien because they represent the largest Lusophone community in the world. Figure (4) shows the lexical profile of the word Brésil in the Europarl and FrTenTen corpora: Figure 4. Brésil: lexical profile in the Europarl and the FrTenTen corpora.22 Figure (4) also shows an example of typical corpus noise where the word horizonte is As shown in Figure (4), political discourse contains a slightly higher proportion of structures where Brésil functions as the subject of the phrase than in internet discourse, where the word Brésil functions more often as the object of the phrase. The analysis of concordances in political discourse shows that the most prominent structures with Brésil functioning as the subject are Brésil continue and Brésil joue. The verb continuer is used especially in the context of negative restrictions regarding certain countries of the EU (example 13): (13) Le Brésil continue de soumettre à l’obligation de visa les ressortissants de quatre États membres: l’ Estonie, Chypre, Malte et la Lettonie. (Brazil continues to subject nationals of four Member States to visa requirements: Estonia, Cyprus, Malta, and Latvia.) Unexpectedly, in political discourse the verb jouer is not used within the topic of football but appears very frequently within the phrase jouer un rôle important (example 14): (14) M. le Président, il ne fait aucun doute que le Brésil joue un rôle commercial important sur la scène mondiale. (Mr. President, there is no doubt that Brazil plays an im­portant commercial role on the world stage.) When the word Brésil is used as a grammatical object, it is accompanied by verbs like frapper. This verb is used as a component of discussions about natural disasters, such as forest fires (example 15), which is similar to the value of the structure ravager le Portugal in online discourse concerning Portugal (picture 2). (15) Monsieur le Président, les tragédies environnementales qui ont frappé le Brésil prouvent que les règles du marché ne doivent pas être les seules lignes directrices des communautés internationales. (Mr. President, the environmental tragedies that have struck Brazil prove that market rules should not be the only guidelines for international communities.) In online discourse, when Brésil is used as subject or object the most frequent verbs are remporter, affronter, and battre, all linked to the discussions about football (examples 16, 17, and 18): (16) Le Brésil remporte la Coupe du Monde en battant l’Angleterre en demis et le Cameroun en finale. (Brazil wins the World Cup beating England in the semis and Cameroon in the final.) (17) Arrivé dans la surface, le Maestro envoie l’équipe de France à Francfort, où elle affrontera le Brésil pour des retrou­vailles dont on rêvait. (Arrived in the area, the Maestro sends the French team to Frankfurt where it will confront Brazil for a reunion we dreamed of.) (18) À cette occasion, la cote des bleus pour battre le Brésil 3-0, comme leurs compatriotes footballeurs de 1998, passe de 8,5 à 12 ! (On this occasion, the odds for French players to beat Bra­zil 3-0, like their fellow footballers in 1998, went from 8.5 to 12!) As is clear from the examples, the most common collocations regarding Brazil in the internet discourse are related to the topic of football. However, the collocation le Brésil exporte, related to the economic cooperation between Brazil and the EU, is also important, as shown in example (19): (19) Le Brésil exporte environ 40% de sa production agricole vers l’Union européenne. (Brazil exports around 40% of its agricultural production to the European Union.) In the second step, we produced a lexical profile of the adjective brésilien occurring in the French political and internet discourse (Figure 5): Figure 5. Brésilien: lexical profile in the Europarl and the FrTenTen corpora. As shown in Figure (5), the adjective brésilien in political discourse is closely related to the nouns boeuf, ressortissant, congrès, sucre, and soja, while in internet discourse this adjective is typically related to the nouns lissage, footballeur, attaquant, president, and défenseur. The analysis of concordances shows that in political discourse the nouns boeuf, sucre, and soja are related to the export of Brazilian food (example 20), while the nouns ressortissant and congrès are related to the topic of restrictions regarding the migrations between Brazil and the EU (example 21). (20) Le bœuf brésilien destiné à l’ UE n’est autorisé que lorsqu’il provient de territoires qui sont considérés comme épargnés par la fièvre aphteuse. (Brazilian beef destined for the EU is only allowed when it comes from territories that are considered free of foot-and-mouth disease.) (21) Alors que les ressortissants brésiliens peuvent se rendre sans visa dans tous les États membres de l’Union européen­ne, il reste quatre États membres dont les citoyens ont besoin d’un visa pour pénétrer sur le territoire brésilien. (While Brazilian nationals can travel visa-free to all mem­ber states of the European Union, there are still four member states whose citizens need a visa to enter Brazilian territory.) In online discourse, the most typical collocation of the adjective brésilien is related to hair care techniques (Brazilian hair straightening), although it has lost all conceptual connection with Brazil, as shown in example (22): (22) Lissage brésilien: idéal pour les cheveux colorés, décolorés, méchés. (Brazilian hair straightening: ideal for coloured, blea­ched, and highlighted hair.) Brazilian footballers are, once again, a very important topic in French online discourse (example 23): (23) Le jeune attaquant brésilien arrivera à Lille ce vendredi et s’engagera officiellement avec le LOSC après avoir satis­fait à sa visite médicale. (The young Brazilian striker will arrive in Lille this Fri­day and will officially join LOSC after having passed his medical examination.) Another important figure is the Brazilian President, whose actions are discussed even when they are not directly related to Brazilian relations with the European Community (example 24): (24) Les présidents brésilien, Luiz Inácio Lula da Silva, et vénézuélien, Hugo Chávez, ont conclu une « alliance stra­tégique » comprenant la coopération dans les secteurs du pé­trole, de l’agriculture, des produits miniers, du transport et de l’aviation militaire. (Brazilian President Luiz Inácio Lula da Silva and Ve­nezuelan President Hugo Chávez have concluded a “stra­tegic alliance” that includes cooperation in the sectors of oil, agriculture, mining, transport, and military aviation.) 3.3 Lusophonie and lusophone In the last step, we examined the specifics of the words lusophonie and lusophone as they are used in French political and online discourse. We were unable to make the lexical profile of the word lusophonie in political discourse due to the insufficient number of results found in the Europarl corpus. However, the fact that the word lusophonie is seldom used in French political discourse is already a result by itself, because this means that this concept has no strategic power in politics. In the corpus FrTenTen, we can find a larger variety of expressions related to the concept of Lusophony (Figure 6): Figure 6. Lusophonie: lexical profile in the FrTenTen corpus. As shown in Figure (6), the word lusophonie is used in online discourse together with the terms hispanophonie and francophonie and is frequently related to discussions about the possibilities of cooperation (example 25): (25) Les ressemblances entre francophonie et lusophonie ne peuvent que favoriser les relations entre ces deux ensembles, relations qui sont souhaitées de part et d’autre. (The similarities between Francophony and Lusophony can only favor relations between these two sets, relations which are desired on both sides.) The last term that we examined was the adjective lusophone in political and online discourse (Figure 7): Figure 7. Lusophone: lexical profile in the Europarl in the FrTenTen corpora. As shown in Figure (7), the most important collocation of the word lusophone in political discourse is les pays lusophones (example 26) and in online discourse the most frequent collocation is le monde lusophone (example 27). This slight but significant difference shows once again that the political goals focus on the formal aspect of Lusophony, represented by countries, and that the general community posting online is more interested in the entire community of Portuguese-speaking cultures. (26) Je parle bien évidemment du plus grand pays lusophone du monde, le Brésil. (I am obviously talking about the largest Lusophone cou­ntry in the world, Brazil.) (27) António Lobo Antunes a reçu le prix Union Latine en 2003, le prix Jérusalem en 2005 et le prix Camões, le plus presti­gieux du monde lusophone, en 2007. (António Lobo Antunes received the Latin Union Prize in 2003, the Jerusalem Prize in 2005, and the Camões Prize, the most prestigious in the Lusophone world, in 2007.) 4 Synthesis of the results To resume the results of our analysis, we turn to the most prominent conclusions concerning the discourse values of the key Lusophone terms in French political and online discourse (Table 1). Political Discourse Online Discourse Portugal environment, economy football, colonies Portugais EU presidency football, colonies Brésil economy, environment football, economy Brésilien food (meat), migrations Football Lusophonie / cooperation Lusophone countries World Table 1. Discourse values of Lusophone terms in French political and online discourse. As shown in Table (1), the Lusophone world is considered quite differently in political and online discourses. The words Portugal and portugais are related to the topics of the environment (fires and draught) and European presidency in political discourse whilst in online discourse, they are used within the topics of football and colonies. The words Brésil and brésilien are related to the economy, environment, and food (meat) in political discourse, while in online discourse they are closer to football and beauty treatments (like hair straightening). The word lusophonie is not present at all in French political discourse. The word lusophone is applied to specific countries in political discourse, and it is related to the entire Portuguese-speaking community in online discourse. 5 Discussion The differences between the use of the analysed terms in two different discourse genres, like the fact that political discourse is oriented more towards the economic issues of a country and online discourse is more interested in football, were to some degree intuitively expected. However, according to our understanding of the diachronic and synchronic aspects of Lusophony, we did not anticipate that one topic would get completely left out from the results: the topic of Lusophone cultures. This gap was an unexpected result regarding the global importance that Lusophone culture has in the field of music (e.g. fado and bossa nova), dance (e.g. samba and capoeira), and literature (e.g. Fernando Pessoa and José Saramago). One of the answers for the fact that the French (political or internet) community does not discuss Lusophone culture more prominently is probably hidden in the language barrier. While the football player Neymar can be both a national hero and a world superstar, the singer, composer, and activist Caetano Veloso can be a Brazilian superhero but his songs will never be sung worldwide by crowds, as is the case with Sting’s music. The international dissemination of José Saramago’s work, despite his Nobel Prize for Literature, depends exclusively on translators. Being very much aware of this, Saramago emphasized the importance of translators in a speech delivered in Buenos Aires in 2003: “Translators turn islands of languages that cannot understand each other into places of welcome.” References Baroni M., Bernardini S., Ferraresi A., Zanchetta E. (2009): The WaCky wide web: a collection of very large linguistically processed web-crawled corpora. Language resources and evaluation, 43/3, 209–226. Cahen, M. (2013): ‘Portugal Is in the Sky’: Conceptual Considerations on Communities, Lusitanity, and Lusophony. Imperial Migrations: Colonial Communities and Diaspora. New York: Springer. Fernandes, J. L. J. (2018): Portugal between Lusophony, the European Union and the rest of the world. Strategic challenges and multiterritoriality in the 21st century. Méditerranée, 130, consulted on the 23rd of July 2023. https://journals.openedition.org/mediterranee/10549. Kilgarriff, A., Baisa, V., Bušta, J., Jakubícek, M., Kovár, V., Michelfeit, J., Rychlý, P., Suchomel, V. (2014): The Sketch Engine: ten years on. Lexicography, 1, 7–36. Koehn, P. (2005): Europarl: A Parallel Corpus for Statistical Machine Translation. Proceedings of Machine Translation Summit X: Papers, 79–86. Phuket: ACL Anthology. Medeiros, P. de (2018): Lusophony or the haunted logic of postempire. Lusotopie, 17/2, 227– 247. Oliveira Marques, H. de (1998): Histoire du Portugal et de son empire colonial (trad. du portugais par Marie-Hélène Baudrillart). Paris: Karthala. Padró, L., Stanilovsky, E. (2012): FreeLing 3.0: Towards Wider Multilinguality.Proceedings of the Language Resources and Evaluation Conference (LREC’12). Istanbul: ELRA. Rozeaux, S. (2019) Préhistoire de la lusophonie. Les relations culturelles luso-brésiliennes au XIXe siècle. Aix-en-Provence: Le Poisson volant. Schmid, H. (1994): Probabilistic Part-of-Speech Tagging Using Decision Trees. Proceedings of International Conference on New Methods in Language Processing, 12. Manchester: University of Manchester. O mundo lusófono no discurso político e na internet franceses Palavras-chave: Lusofonia, língua francesa, discurso político, discurso na internet, linguística de corpus O artigo tem como objetivo examinar os termos relacionados ao conceito de lusofonia no discurso político francês e na internet para melhor compreender o papel do mundo lusófono na sociedade francófona. Realizamos uma análise gramatical e contextual das palavras Portugal, Brésil e lusofonia (e os seus adjetivos), tal como são utilizadas no corpus Europarl e nos corpora FrTenTen. Os resultados mostram várias diferenças interessantes entre os dois gêneros discursivos. No discurso político, as palavras examinadas estão relacionadas principalmente a discussões sobre economia, questões ambientais e exportações de alimentos. Por outro lado, no discurso online os termos analisados são mais frequentemente aplicados ao tema de futebol, mas também a discussões sobre colonização e tratamentos de beleza (como alisamento de cabelo brasileiro). Utilizando a análise apresentada neste estudo não conseguimos detetar o tema da cultura, o que é um resultado inesperado no que diz respeito à importância global que a cultura lusófona tem no campo da música (e.g., fado e bossa nova), da dança (e.g., samba e capoeira) e da literatura (e.g. Fernando Pessoa e José Saramago). Luzofonski svet v francoskem politicnem in spletnem diskurzu Kljucne besede: luzofonija, francoski jezik, politicni diskurz, spletni diskurz, korpusno jezikoslovje V clanku smo želeli preuciti izraze, povezane s pojmom luzofonije v francoskem politicnem in spletnem diskurzu, da bi bolje razumeli vlogo luzofonskega sveta v francosko govoreci družbi. Opravili smo slovnicno in diskurzivno analizo besed Portugal, Brésil in lusophonie (ter njihovih pridevnikov), kot se pojavljajo v korpusu Europarl in korpusu FrTenTen. Rezultati kažejo pomembne razlike med analiziranima diskurzivnima žanroma. V politicnem diskurzu so izbrane besede vecinoma povezane z razpravami o gospodarstvu, okoljskih vprašanjih in izvozu hrane. Po drugi strani se v spletnem diskurzu analizirani izrazi najpogosteje nanašajo na temo nogometa, pa tudi na razprave o zgodovini kolonizacije. V okviru analize konteksta izbranih besed nismo zaznali podrocja kulture, kar je nepricakovan rezultat glede na globalni pomen, ki ga ima luzofona kultura na podrocju glasbe (npr. fado in bossanova), plesa (npr. samba in capoeira) in literature (npr. Fernando Pessoa in José Saramago). Ana Zwitter Vitez Ana Zwitter Vitez holds the position of assistant professor in French. Her pedagogic work covers the fields of French grammar and Modern French. Her research interests range from the language of political discourse and the language of social networks to the field of authorship attribution. She also works as expert witness in the field of forensic linguistics offering her expertise to analyse contested texts during court proceedings. Address: Univerza v Ljubljani Filozofska fakulteta Oddelek za romanske jezike in književnosti Aškerceva 2 1000 Ljubljana Slovenija E-mail: ana.zwittervitez@ff.uni-lj.si Eduardo Martínez de Pisón Atlas literario de la Tierra: Paisajes de palabras Madrid: Fórcola Ediciones (Col. Periplos, 64), 2023, pp. 271. ISBN: 978-84-16247-10-3. Los historiadores de la literatura tal vez no hayamos prestado la suficiente atención al estudio del paisaje en la tradición de las letras contemporáneas. Y, cuando se cree haber cumplido con ello, es para advertir –más tarde o más temprano–que los resultados logrados con las cavilaciones propias del investigador no han conseguido penetrar la superficie del texto, terminando en cambio por ensimismarse en rasgos formales y evitando traspasar los límites de la corteza verbal o del plano retórico. Por su parte, quién sabe si no podríamos recriminar a quienes operan en el área de la ciencia geográfica que su mirada se haya limitado, excesivas veces, a barrer los territorios con la avidez de quien aspira a registrar los accidentes naturales, a cartografiar la orografía de un determinado lugar o a compilar inventarios con los ríos y afluentes de mayor calado que fluyen por una comarca objeto de estudio. Con la adopción de una actitud que, en definitiva, es la consecuencia natural de quien en el transcurso de su carrera profesional no ha hecho más que someterse a una metodología aséptica sin prestar atención a un examen del territorio que vaya más allá de fines vagamente utilitarios. No es este, desde luego, el caso de Eduardo Martínez de Pisón en el despliegue de su vasta labor investigadora y ensayística. Quien fue catedrático de geografía en la Universidad Autónoma de Madrid y es hoy profesor emérito de la misma institución académica, muestra al respecto un modo de proceder muy personal y a contracorriente. En sus obras –y de manera destacada en esta última que presentamos– se amalgaman y funden sus saberes de geógrafo y de humanista, a los que por otra parte se suma su compromiso militante en favor de la preservación del medio ambiente. A este respecto, no queremos pasar por alto que sigue aún en pie la defensa, en primera persona, de la oscense Canal Roya y de su lucha en favor de que este frágil enclave pirenaico, que afronta constantes amenazas por parte de las instituciones que paradójicamente debieran velar por su tutela, se erija por fin en parque natural [https://www.youtube.com/watch?v=2LQJL-iEOhk&t=186s]. En primer lugar, cabe destacar su adhesión primordial a una tradición pedagógica que arrancó con la labor de la Institución Libre de Enseñanza y la huella que, en nuestra opinión, dejaron en él las querencias de don Francisco Giner de los Ríos por la sierra de Guadarrama como laboratorio de la naturaleza al que había aproximado, en tiempos nada propicios para ello, a los pupilos adscritos a la innovadora experiencia pedagógica. Sin haber podido pertenecer a aquella cuerda por razones obvias de cronología biográfica, se ha beneficiado con toda probabilidad de sus secuelas formativas. De ahí que no sea nada fortuito, a nuestro parecer, que la introducción de este ensayo que presentamos arranque con las olvidadas Lecturas geográficas. Espectáculos de la naturaleza, paisajes, ciudades y hombres (1936) de Gloria Giner de los Ríos, sobrina del añorado fundador de la Institución Libre de Enseñanza. Juzgamos que se trata de una evocación por la que se entrevé todo un reconocimiento a la validez y vigencia de principios en los que moldear la propia labor pedagógica. Tampoco se nos antoja nada casual que la segunda de las tres partes en que se articula el ensayo del geógrafo vallisoletano lleve por epígrafe “Emoción, símbolo y pedagogía del paisaje” (pp. 37-113) y que en sus páginas condense la revelación, por la palabra, de la “esencia emotiva, simbólica y educadora” del paisaje. En este apartado se sumerge sobre todo en aquellas geografías en las que los hombres del 98 (Antonio Machado, Miguel de Unamuno, José Ortega y Gasset, a los que agrega un excursus final referido a los Pirineos por los que George Sand pasó en su juventud) dejaron jirones de piel prendidos en los arbustos de las estepas castellanas que recorrieron en sus vagabundeos, no exentos de mesuradas dosis de desasosiego existencial. Son páginas en las que el autor intenta una aproximación que, una vez más, pone de relieve su interés por el paisaje entendido como interpretación cultural de un territorio. Algo que lleva a cabo con la conciencia plena de que comprender un paisaje es, de hecho, algo más que someterse a la acción del instrumental de laboratorio de que pudiera servirse el geógrafo profesional desprovisto de cultura humanística. Con deleite del todo singular, quienes lean el presente ensayo recorrerán el inventario de lugares perdidos y encontrados que hallan cabida en la tercera y última parte del estudio: el “Atlas de paisajes literarios” (pp. 115-257) propiamente dicho y que da título al conjunto de textos contenidos en esta última entrega ensayística de Eduardo Martínez de Pisón. Dicho inventario topográfico constituye todo un retablo de cuadros paisajísticos que se erigen en invitación apasionada a la relectura de un vasto abanico de obras que indican una vía alternativa por donde penetrar en la lectura del paisaje y de la naturaleza. Si de “relectura” calificamos esta operación es debido al hecho de que en este apartado conclusivo confluyen autores de alcance universal que, en buena parte, nos han acompañado desde los años de la adolescencia y a los que, entrados ahora ya en la madurez, podemos regresar tras habernos enriquecido con las claves interpretativas que el paso de los años nos haya podido confiar. Crea con todos ellos una república de las letras en la que conviven nombres familiares para todo lector hispánico (como son los de Azorín, Miguel de Unamuno, Pío Baroja, Armando Palacio Valdés, Miguel Delibes o Pedro Antonio de Alarcón), con otros de mayor dimensión global. Entre los que descuellan: Herman Melville, Julio Verne, Edgar Allan Poe, Daniel Defoe, Arthur Conan Doyle, Hermann Hesse, Jean Giono, Valerián Albánov, Vladímir Arséniev, Antón Chéjov, Ernest Shackleton, Joseph Conrad, Pierre Benoit, Ladislau Almásy o Henry David Thoreau. Una selección que el autor ha llevado a cabo con amplitud de miras y sin anteojeras que restrinjan la visión intercultural que debiera regir la comprensión de nuestro pequeño mundo. Permítasenos una última digresión final: la admisión de que hemos leído el ensayo con la sospecha de que si en nuestra juventud hubiéramos podido disfrutar del magisterio de Eduardo Martínez de Pisón, probablemente nuestra decantación profesional hubiera sido, a partir de entonces, muy otra. No tuvimos aquella fortuna, pero en compensación gozamos ahora de sus publicaciones, que nos llegan por lo demás con una periodicidad que delata su aún intensa actividad intelectual. Sugerimos su lectura a las generaciones más jóvenes, tan sensibilizadas y comprometidas con la conservación del patrimonio medioambiental y con la preservación de nuestros paisajes. Al fin y al cabo somos seres diminutos que han tenido, eso sí, la fortuna de poder encaramarse a hombros de gigantes y, desde aquella posición privilegiada, avistar con delectación el amplio horizonte. Jorge Canals Piñas Università degli Studi di Trento Teresa S. Ferreira, Inês Cardoso, Silvia Melo-Pfeifer Gramática de Português - Língua Não Materna. Níveis A1 e A2. Porto: Porto Editora, 2019, pp. 128. ISBN: 978-972-0-40148-9 Teresa S. Ferreira, Inês Cardoso, Silvia Melo-Pfeifer Gramática de Português - Língua Não Materna. Níveis B1, B2 e C1 Porto: Porto Editora, 2019; pp. 272. ISBN: 978-972-0-40149-6 A Gramática de Português – Língua Não Materna é um manual de gramática elaborado de acordo com o Quadro Europeu Comum de Referência para as Línguas (QECR) e o Quadro de Referência para o Ensino Português no Estrangeiro (QuaREPE). Consta de dois tomos: o primeiro é dedicado aos níveis A1 e A2; e o segundo, aos níveis B1, B2 e C1. As investigadoras do Centro de Investigação Didática e Tecnologia em Formação de Formadores (CIDTFF) Inês Cardoso e Sílvia Melo-Pfeifer, em conjunto com Teresa S. Ferreira, da Universidade de Aveiro – as três autoras estão ligadas profissionalmente à didática e ao ensino de português como língua não materna (PLNM) – publicaram em 2019 este útil instrumento de trabalho que foi revisado cientificamente pelo professor Paulo Feytor Pinto. Cada manual compreende quatro grandes capítulos («Do som à escrita», «A palavra», «A frase» e «O texto»), com as unidades correspondentes numeradas de 1 a 47 sucessivamente no primeiro volume e de 1 a 66 no segundo. O tomo dedicado aos níveis A1 e A2 no primeiro capítulo, relacionado com a oralidade, explica, com exemplos e transcrições fonéticas de AFI, como se produzem os sons portugueses e como se classificam em consoantes, vogais e semivogais, ditongos, sons orais e sons nasais. Descrevem-se as sílabas, a divisão silábica, a classificação das palavras quanto ao número de sílabas e quanto ao acento. Um claro quadro explicativo mostra que muitas letras representam mais de um som, o que é um aspeto difícil para muitos estudantes estrangeiros. O alfabeto português também é comparado com outros alfabetos de outras línguas (o cirílico, o grego, o árabe). Este capítulo dedica especial atenção às regras da acentuação gráfica. As últimas unidades são dedicadas à homonímia, homofonia e homografia, às regras do uso de maiúsculas e minúsculas, aos sinais gráficos e de pontuação. O segundo capítulo, «A palavra», é o mais longo e aborda itens como os sinónimos e os antónimos, as classes de palavras e a sua formação, além de tratar detalhadamente o nome e o adjetivo (as subclasses, o género e o número, como também o grau dos adjetivos qualificativos). A parte dos pronomes, determinantes e quantificadores, abrange os pronomes pessoais (as suas formas e funções, a sua posição e as formas de tratamento, temas muito difíceis para falantes de outras línguas), os artigos definidos e indefinidos (os usos e as contrações com preposições), os determinantes e pronomes possessivos, os determinantes e pronomes demonstrativos e os interrogativos. As unidades seguintes contêm explicações sobre o verbo e a flexão verbal, as conjugações, os verbos auxiliares, o problema dos usos dos verbos ser e estar, o presente do indicativo (a conjugação regular e os usos do presente), o pretérito perfeito simples do indicativo e o pretérito imperfeito do indicativo (a formação dos dois tempos verbais e os seus usos), o imperativo e o infinitivo. A unidade 33 dedica-se aos advérbios, as suas funções e classes, como também a alguns advérbios mais usados (os advérbios em –mente, aqui, aí e ali, bem e mal, muito, tanto e tão). A contração das preposições, a colocação com os verbos e os valores típicos são alguns temas tratados na unidade seguinte, dado que o uso correto das preposições é sempre um osso duro de roer para aprendentes estrangeiros. As duas últimas unidades deste capítulo abrangem os temas das conjunções e locuções conjuncionais (coordenativas e subordinativas) e as interjeições e locuções interjetivas. O capítulo 3, «A frase», aborda tipos e formas de frases (frases declarativas, exclamativas, interrogativas e imperativas, frases afirmativas e negativas), a ordem das palavras os constituintes frásicos e as funções sintáticas (grupo verbal e grupo nominal, sujeito e predicado), a concordância, a elipse e a coordenação e a subordinação. O capítulo 4, «O texto», descreve textos em contexto e modelos e técnicas de escrita: o texto escrito e o contexto de produção, a coesão textual (frásica e interfrásica, a coesão temporal e aspetual), as cartas formais e informais e exemplos de e-mail. Em muitos casos, os conteúdos gramaticais remetem em notas de rodapé a outras unidades ou capítulos do mesmo livro ou do tomo seguinte com as páginas correspondentes. Todas as unidades são complementadas com exercícios diferenciados de acordo com os níveis de proficiência linguística A1 e A2. Cada unidade oferece também exemplos de uso, quadros representativos muito claros que salientam elementos importantes a negrito ou texto em outra cor, observações e explicações das diferenças entre o português europeu e o português do Brasil, comparações com outras línguas (ex. inglês, alemão, francês, italiano, árabe, espanhol, línguas escandinavas, línguas eslavas3Belo Horizonte: Courez notre panier cadeau de vacances en ligne vers la Belo horizonte Brésil.misclassified as a verb instead of a part of the proper name …), provérbios, anedotas, fragmentos de textos literários, poemas, letras de música, trava-línguas, receitas, piadas. Os anexos 1 e 2 contêm o alfabeto (com letras maiúsculas e minúsculas de imprensa e letra manuscrita e o nome da letra), o alfabeto fonético das vogais, semivogais e consoantes e as conjugações verbais dos tempos simples de verbos regulares, dos verbos auxiliares ter, ser, estar e a conjugação das formas não finitas simples e compostas de alguns verbos irregulares. O livro termina com as propostas de soluções de todos os exercícios. O tomo dedicado aos níveis B1, B2 e C1 segue o mesmo modelo do primeiro volume promovendo a articulação entre os níveis de proficiência. O capítulo 1, «Do som à escrita», aprofunda o tema da homonímia, homofonia, homografia e paronímia e os sinais gráficos (o hífen e os sinais de pontuação, em especial a vírgula, o seu valor e o seu emprego). No segundo capítulo, «A palavra», as primeiras unidades focalizam a palavra como unidade de sentido e tratam temas como a monossemia e a polissemia, a denotação e a conotação, a sinonímia e a antonímia e outros conceitos, a família de palavras e o campo lexical e semântico. A unidade 8 dedica-se as expressões idiomáticas, enquanto as unidades seguintes ampliam o tema das classes de palavras, descrevem a formação das palavras e aprofundam questões relativas ao nome e adjetivo (número e grau), pronomes pessoais (ex. os valores e as alterações nos pronomes pessoais complemento direto, a posição dos pronomes pessoais átonos), quantificadores numerais, quantificadores, determinantes e pronomes indefinidos e palavras relativas (determinantes, quantificadores, pronomes e advérbios). Uma parte importante é dedicada ao verbo (unidades 21 a 37), explanando de maneira clara e detalhada diferentes aspetos do verbo, a sua flexão (conjugações, pessoa e número, tempos e modos verbais, formas não finitas, estrutura dos tempos simples e compostos), o aspeto verbal, os usos dos tempos do indicativo (presente, pretéritos, futuro simples e composto, condicional simples e composto) e uso do modo conjuntivo. As formas não finitas do verbo (infinitivo, gerúndio e particípio) ocupam quatro unidades, com especial destaque de formas e usos do infinitivo pessoal que é uma caraterística específica do português. Seguem as unidades dedicadas aos advérbios e locuções adverbiais, às preposições e locuções prepositivas, conjunções e locuções conjuntivas e, finalmente, as interjeições e locuções interjetivas. A frase é o tema do terceiro capítulo, que apresenta de maneira clara e detalhada os tipos e formas da frase em português, os grupos da frase, as funções sintáticas e os tipos de sujeito, a concordância e a ordem das palavras na frase. O manual dedica uma parte importante às orações coordenadas e às orações subordinadas. O último capítulo, «O texto», explora temas relativos ao texto escrito e contexto de produção, registos da língua, coesão textual, recursos expressivos, cartas e e-mail, artigos de opinião e resumos. Todas as unidades têm muitos exemplos práticos, exercícios, indicações, quadros e imagens. Este volume também finaliza com um anexo dedicado à conjugação dos verbos e outro que corresponde às soluções dos exercícios permitindo a utilização autónoma deste manual. Todos os temas estão bem organizados e há remissões muito úteis quer para o volume anterior quer para outros temas dentro do próprio volume. Os dois manuais adequam-se ao processo de ensino-aprendizagem da língua portuguesa como língua de herança, língua segunda ou língua estrangeira como precisam as autoras na apresentação dos livros. Além dos conteúdos que abrangem todos os domínios da gramática, os dois volumes oferecem suportes atuais e diversificados em forma de textos selecionados (poemas, fragmentos literários, letras de canções, anedotas, provérbios…) que impulsionam conteúdos culturais e alargam horizontes. Trata-se de uma gramática muito bem organizada, com exemplos esclarecedores do uso atual da língua portuguesa em diferentes contextos comunicativos e explicações igualmente claras. O segundo volume, aprofundando alguns conteúdos e introduzindo conteúdos novos, promove a progressão linguística e o avanço de níveis iniciais a níveis mais avançados de proficiência. Do ponto de vista gráfico, a gramática também é muito bem-sucedida. O desenho dos dois livros é bastante atrativo, ambos contêm quadros, caixas, desenhos e fotografias e muitas imagens que complementam a informação. O volume dedicado aos níveis A1 e A2 tem a capa de cor de fúcsia com letras em verde e branco; o livro dedicado aos níveis superiores tem a capa de cor azul com letras em branco e verde. No interior, combinam-se as cores branca, rosa, vermelha e negra, no primeiro livro; e branca, azul e negra, no segundo – destacando assim elementos gramaticais importantes. Gramática de Português - Língua Não Materna. Níveis A1 e A2 e a Gramática de Português - Língua Não Materna. Níveis B1, B2 e C1 representam um instrumento de trabalho completo e de fácil consulta, uma excelente ferramenta para todos os que aprendem ou ensinam português como língua não materna, e são muito úteis também, como obra de consulta, para os luso falantes nativos. Jasmina Markic Universidade de Ljubljana Eduardo Buzaglo Paiva Raposo, Maria Fernanda Bacelar do Nascimento, Maria Antónia Coelho da Mota, Luísa Segura, Amália Mendes e Amália Andrade (org.) (2020): Gramática do Português, Vol. III. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. Pp.1115. ISBN 978-972-31-1628-1 Em maio 2020, viu a luz do dia o volume III da Gramática do Português, dirigida pela comissão organizadora, formada para este volume, composta por Eduardo Buzaglo Paiva Raposo, Maria Fernanda Bacelar do Nascimento, Maria Antónia Coelho da Mota, Luísa Segura, Amália Mendes e Amália Andrade, com a colaboração de Graça Vicente e Rita Veloso. O volume III continua tematicamente os dois primeiros volumes publicados em 2013. Os três volumes da Gramática do Português, chamada também de Gramática Gulbenkian, são uma importante obra de referência de descrição do português contemporâneo. O projeto realizou-se no Centro de Linguística da Universidade de Lisboa, por iniciativa da Fundação Calouste Gulbenkian – que apoiou e publicou os três volumes. A Gramática foi redigida segundo as normas do Acordo Ortográfico de 1990. Os autores são 40 professores e investigadores de 12 universidades portuguesas e estrangeiras. Os três volumes da Gramática dividem-se em cinco grandes temas: História e Geografia do Português; Léxico; Sintaxe e Semântica; Morfologia; e Fonologia e Fonética. O volume I abrange as partes 1 («História e Geografia do Português»), 2 («Léxico»), 3A («Sintaxe e Semântica – Propriedades gerais da frase»), 3B («Sintaxe e Semântica – Tempo, aspeto, modalidade e modo») e 3C («Sintaxe e Semântica – Classes lexicais e sintagmáticas»). O volume II é dedicado inteiramente à sintaxe e à semântica e compreende os blocos 3C («Sintaxe e Semântica – Classes lexicais e sintagmáticas»), 3D («Sintaxe e Semântica – Frase composta e frase complexa»), 3E («Sintaxe e sSemântica – Construções sintáticas») e 3F («Sintaxe e sSemântica – Fenómenos de omissão e elipse»). A imagem da sobrecapa dos três volumes é a fotografía (feita por Mário da Oliveira) do óleo sobre tela Alfabeto I, do pintor português João Vieira. O volume III da Gramática do Português divide-se em quatro partes temáticas. Cada uma delas ramifica-se em diferentes capítulos escritos por 20 professores e investigadores, especialistas nos temas tratados e procedentes das universidades de Lisboa, de Coimbra, do Porto, do Minho, do Algarve, da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Universidade da Califórnia, Santa Bárbara. Os dois primeiros blocos (3G e 3H) são uma continuação dos capítulos constituintes da parte 3 «Sintaxe e Semântica», abordados nos dois primeiros volumes. O bloco 3G («Concordância») dedica-se à concordância verbal (por Eduardo Buzaglo Paiva Raposo) e nominal (por Eduardo Buzaglo Paiva Raposo e Ana Maria Brito). «Sintaxe, Pragmática e Discurso» é o título do bloco 3H, com seis capítulos. Os tipos da frase e a força ilocutória são temas tratados pelos autores Pilar Barbosa, Pedro Santos e Rita Veloso. O discurso relatado direto, indireto e indireto livre, os verbos introdutores de relato de discurso e as formas difusas de relato são analisados por Margarida Duarte. Ana Maria Martins e Maria Lobo examinam as estratégias de marcação de foco, a ordem dos constituintes frásicos e as estruturas clivadas, enquanto Ana Cristina Macário Lopes e Ernestina Carrilho ocupam-se do discurso e marcadores discursivos, atos de fala, valores ilocutórios e a organização linguística do discurso. As formas de tratamento pronominais, nominais e verbais são tópicos de investigação da autora Maria Fernanda Bacelar do Nascimento. O último capítulo desta parte foi escrito por Maria Eugênia Lammoglia Duarte e aborda os aspetos contrastivos entre o português do Brasil e o português europeu. A parte seguinte apresenta o quarto tema da gramática: «Morfologia 4». As autoras Maria Antónia Mota, Graça Rio-Torto e Alina Villalva examinam os aspetos morfológicos da língua portuguesa (introdução à morfologia, morfologia do nome, do adjetivo e do verbo, derivação, composição e conversão). A última parte deste volume – o número 5 – é dedicada à «Fonologia e Fonética». Amália Andrade examina o vocalismo do português e Celeste Rodrigues, o consonantismo. O capítulo sobre a sílaba foi escrito por Amália Andrade e Ernesto d’Andrade; Isabel Pereira (o acento de palavra) e Isabel Falé (a entoação) terminam o presente volume. A Gramática do Português é uma obra coletiva, exaustiva, de 3.522 páginas em total, porém homogénea tanto no seu conteúdo como na sua organização interna. A numeração dos capítulos começa com o capítulo número 1 do volume I e termina com o capítulo 64 do volume III. O volume III começa com o capítulo 46 («Concordância verbal») do bloco 3G e conclui com o capítulo 64 («Entonação») da parte 5 («Fonologia e Fonética»). Os três volumes formam um todo e apresentam uma coerência entre os diferentes capítulos desta obra monumental. O volume III tem um índice detalhado de 12 páginas que permite ao leitor conhecer os conteúdos abordados e facilitar a procura dos temas desejados. Depois do índice, seguem três páginas com os nomes e as funções dos 20 autores do presente volume. As referências bibliográficas mencionadas no volume ocupam 39 páginas ao final do livro, seguidas do índice remissivo para os três volumes. A última página é dedicada à ficha técnica. Todos os capítulos das partes do volume III articulam-se em subcapítulos com as questões da gramática expostas nitidamente e com abundantes exemplos claros que sustentam a descrição dos factos gramaticais em questão. Alguns exemplos são construídos pelos autores, outros são extraídos de fontes textuais orais, formais e informais, e de fontes textuais escritas (obras literárias, técnicas, científicas, jornalísticas, textos publicitários) incluindo corpora eletrônicos («Introdução», p. XXVIII). Os exemplos são acompanhados da indicação da sua fonte e, no fim de cada capítulo, indica-se a sua referência completa. Os temas relevantes para o tópico em discussão figuram em caixas tipograficamente diferenciadas, figuras e quadros. Por exemplo, o capítulo 36 sobre a morfologia do verbo apresenta abundantes quadros sobre a estrutura dos verbos e um apêndice que exemplifica em quadros a conjugação do verbo português. Nos capítulos da parte 5, «Fonologia e Fonética», os tópicos tratados exemplificam-se com quadros e figuras (espectrogramas, representações esquemáticas, melodias de tipos frásicos, etc.). Todos os capítulos têm abundantes notas de rodapé com explicações adicionas e remissões para outros capítulos da gramática ou para outros autores. A Gramática do Português tem principalmente como objeto de estudo o português-padrão contemporâneo, ou seja, a variante culta do português, falada nas zonas urbanas do litoral-centro, entre Lisboa e Coimbra. Contudo, a primeira parte do volume I inclui capítulos sobre a origem e a evolução da língua no âmbito da história social e cultural. A Gramática dedica também especial atenção às variantes regionais de Portugal e às variantes do português falado no Brasil e do português falado em África (especialmente as variedades de Angola e Moçambique) («Introdução», pp. XXV - XXVI). O volume III, por exemplo, proporciona, no âmbito do bloco 3H sobre «Sintaxe, Pragmática e Discurso», um longo capítulo intitulado «Aspetos contrastivos entre o português do Brasil e o português europeu», que aborda alguns aspetos da sintaxe do português do Brasil, particularmente o sistema pronominal, e investiga as diferenças entre as duas variantes, a europeia e a brasileira, em registos da fala e da escrita. A Gramática Gulbenkian é, no nosso entender, a gramática mais exaustiva jamais escrita sobre a língua portuguesa. Tem quatro caraterísticas fundamentais: é uma obra coletiva, um estudo descritivo da língua, uma obra de acesso múltiplo e uma obra que incorpora novos tópicos na gramática do português. Embora seja coletiva, não é uma compilação de ensaios sobrepostos ou monografias independentes. Os membros da comissão organizadora esforçaram-se por conseguir um tom expositivo relativamente homogéneo, um vocabulário descritivo comum nos aspetos essenciais da análise, uma uniformização concetual e terminológica e a coerência entre os capítulos. Não se trata de uma gramática normativa, mas de uma descrição da língua na multiplicidade dos seus usos. Trata-se de uma obra de referência e de informação tanto para não especialistas como para especialistas e outros utilizadores da língua (professores, tradutores, jornalistas, comunicadores, estudantes e alunos luso falantes e estrangeiros). É uma obra científica completa que se apoia em resultados da linguística contemporânea, da filosofia da linguagem e outras disciplinas científicas. Jasmina Markic Universidade de Ljubljana Os unicórnios e a linguística Coutinho, Antónia Texto e(m) Linguística. Lisboa: Colibri (2019), pp. 182. ISBN: 978996899172 Falar a alguém de um livro novo traz uma responsabilidade acrescida: por um lado é importante que se tenha a capacidade de convencimento sobre a bondade (ou não bondade) da obra de que se vai falar; por outro lado, sabe-se que tudo o que se vai escrever é apenas e somente um ponto de vista – uma perspetiva de leitura –, correndo-se o risco de se deixar muitas coisas importantes por dizer. Como é normal, num primeiro momento, um livro é só um livro. Mas, quando lhe está associada a etiqueta «livro de linguística», só por si, esta acarreta, à partida, o peso da formalidade, o peso do rigor e o peso do peso de alguma hipótese de aborrecimento. Por isso, assumi como primeira missão desconstruir aquilo que se pode pensar de um livro de linguística. Quando me propus realizar esta tarefa, pensei que, de uma forma ou de outra, independentemente do livro em si, pode sempre falar-se de livros: livros-objetos que se admiram e se guardam, se perdem e se reencontram; livros que nos ensinam e onde nos apoiamos, muitas vezes com algum tédio, outras com imenso entusiasmo; livros que nos provocam curiosidade, que desvendam mistérios... Em suma: um livro permite sempre falar do prazer de se ter um livro para ler. E pensei: que livro é este, afinal? O facto de conhecer muito bem a autora há muitos anos, de trabalharmos muitas vezes em conjunto, de sermos amigas, não ajuda à imparcialidade de uma leitura que se quer distante e inócua. Esta leitura é, por isso, uma leitura comprometida e, em certo sentido, conivente. Por muito estranho que pareça, esta proximidade (afetiva) gera também um grande desconforto, pairando sempre a possibilidade de não se gostar do livro que nos propusemos analisar. Mas era preciso ler o livro. E, sem olhar para o índice, li tudo. Tomei notas. Inseri pontos de exclamação e de interrogação. Sublinhei. E voltei atrás. Experimentei o prazer de reencontrar ecos de muitos autores que eu li, ou que vagamente encontrei citados algures, a quem nunca dei muita importância, ou achei mesmo que nada daquilo fazia muito sentido. Ao fim de algumas horas, tinha o livro lido! Pensei que, no momento em que acabei de ler «este livro», se tivesse de falar sobre ele, talvez falasse de leitura e de leitores. De sábios e de menos sábios. Da Grécia antiga e de Quintiliano. De poesia e de Mallarmé. Aproveitaria para citar nomes que todos reconhecemos quando um dia, por acaso ou por obrigação, descobrimos que as referências bibliográficas tinham corpo e rosto (para além do nome) – Bronckart, Maingueneau, Adam... Falaria de linguagem, textos, discursos, planos de texto. Falaria de linguística e de teorias linguísticas. De práticas textuais (recensões, comentários, resumos...), falaria de «pirâmides (necessariamente) invertidas». A lista seria infindável. Assustadoramente infindável. Porque, como alguém diria, neste livro «cruzam-se saberes», «convocam-se conhecimentos». Por onde começar, então? Um livro começa-se pelo princípio. E, logo no preâmbulo, encontramos a sua razão de ser pela voz da autora: «Na origem deste projeto esteve a vontade de disponibilizar alguns materiais dispersos que, convergindo no tratamento de questões sobre texto em Linguística, pudessem ser úteis a diferentes públicos – nomeadamente, a estudantes de diferentes ciclos, em Ciências da Linguagem, Linguística ou afins, e a docentes de Português, do Ensino Secundário e do Ensino Básico. Comecei por imaginar um livro que se pudesse ler de trás para a frente ou de frente para trás, consoante o interesse pelos tópicos abordados, o respetivo grau de dificuldade, o carácter mais teórico ou mais prático.» E quando chegamos ao fim, mesmo no último parágrafo, ouvimos (?), lemos: «[...] Por aqui passou o nosso percurso: preocupado com a natureza verbal do objeto literário, ocupou-se em articular contributos e categorias da área da literatura e da área da linguística (do texto e do discurso). Esperamos ter contribuído para este diálogo sempre desafiador e, sempre, talvez, a retomar e a desenvolver.» É assim que começa e acaba o livro de Antónia Coutinho, professora de Linguística do Texto na Universidade Nova de Lisboa. Para nos provocar, a autora escolheu um título que são dois: Texto EM Linguística ou Texto E Linguística. E quer num caso, quer no outro, poderemos fazer um debate – ou mesmo um congresso. De certeza que poderemos fazer várias teses de doutoramento: sobre texto enquanto área da linguística, e sobre novas perspetivas de olhar para a linguística em que o texto é o centro organizador; sobre o «e» e todos os valores que foram descritos em várias gramáticas, e sobre o «em», relator (dizem alguns) e conetor (dizem outros), marca desencadeadora de espaço e de tempo (digo eu). E afinal qual é o título que devemos usar para referir este livro? A resposta pode ser rápida: depende do que se procura e do modo como se procura: «de trás para a frente, ou da frente para trás». Por isso, logo no título, somos nós, os seus leitores, que nos apropriamos do que quisermos. Temos espaço para discutir quando discordamos, temos suporte para podermos citar quando precisarmos encontrar uma «autoridade» nestes domínios. De forma algo superficial, poderei dizer que, acima de tudo, temos um LIVRO, objeto que admiramos enquanto tal. E essa admiração começa também pela capa excelente que parte de uma fotografia magnífica, porta de entrada para uma sucessividade de páginas e espaços (em branco) em que vamos descobrindo como bem ler um bom livro escrito em português. Formalmente, está organizado em quatro partes: Introduções (é assim mesmo!), Práticas textuais em contexto académico-científico; Teoria do texto; Cruzamentos: linguística, literatura e didática. Estas estão subdivididas em capítulos que se ligam entre si, mas que podem afirmar-se autonomamente. Possivelmente é esta inter-relação entre interdependência e autonomia que permite que haja uma leitura que se desenvolve ao ritmo da respiração: a sucessividade de capítulos é definida por momentos de abertura e de fechamento, permitindo ao leitor ganhar fôlego para chegar ao fim do que se propôs ler, ou voltar ao princípio, por outro caminho, para encontrar outra coisa (ou a mesma, mas vista de outra perspetiva). É, talvez, graças a este duplo movimento de abertura e de fechamento que a autora nos propõe que o livro de que vos falo é um livro que se sente, no verdadeiro significado do termo. E tudo isto está escrito com rigor, precisão e saber. O livro de Antónia Coutinho é um livro técnica e cientificamente sólido, um livro muito bem escrito, um livro em que houve o cuidado de inserir traduções em português de muitas citações, para que o livro possa ser lido pelo leitor-modelo (no sentido de Umberto Eco) que a autora escolheu, mas sobretudo para garantir uma fluência de leitura. Acima de tudo, este é um livro que cumpre o prometido: é um livro de linguística. Diria, talvez, que é um livro necessário para quem trabalha em linguística, em qualquer área – mas, sobretudo, quando se tem como objeto o texto, garantindo-se como se pode falar com segurança, rigor e precisão deste objeto. Sobre isto poderão sempre ler (com imenso prazer) o prefácio de Jean-Paul Bronckart. Este prefácio conduz-nos com mestria pela discussão teórica que importa. Ensina-nos também a ler este livro. Este prefácio é o primeiro passo para que possamos pensar como podemos estudar linguística de uma forma diferente. Voltando ao princípio: se calhar, não apresentei o livro «Texto e(m) Linguística» de forma esperada e tradicional, mas apresentei apenas a minha leitura (ou leituras) que fui fazendo em diferentes momentos. Se calhar, mais não fiz do que encontrar o que procurava. Manguel, num dos seus livros publicado em Portugal, intitulado «Monstros Fabulosos – Drácula, Alice, Super-Homem e outros amigos literários» (Lisboa, Tinta da China), abre o livro com uma citação da «Alice no País das Maravilhas»: «– Sabes, eu também pensava que os unicórnios eram monstros fabulosos! Nunca tinha visto um vivo! – Bem agora já nos vimos um ao outro. Se acreditares em mim, eu acredito em ti. De acordo? ...]» Isto é mais ou menos o que me acontece sempre que leio de novo o livro de Antónia Coutinho. Continuo, claro, a não acreditar em unicórnios. Mas acredito que se podem fazer excelentes livros de / em linguística. E, por fim, permitam-me a ousadia em contrariar Fernando Pessoa: ler este livro, acreditem, é um verdadeiro prazer. Clara Nunes Correia CLUNL | NOVA FCSH _ Lisboa Paulo Freire Pedagogika zatiranih (Pedagogia do Oprimido), tradução Blažka Müller. Texto de introdução: Tomaž Grušovnik. Ljubljana: Krtina, 2009. Pp.194. ISBN 978-961-260-126-3 Pedagogia do Oprimido é a obra mais conhecida do pedagogo e andragogista brasileiro Paulo Freire. O livro foi publicado pela primeira vez em 1968, em português, mas logo passou por uma série de traduções para vários idiomas do mundo. Em 2019 obtivemos, por fim, a tradução para o público esloveno, pela tradutora Blažka Müller – acontecimento importante, sabendo que, pouco mais de 50 anos após a sua publicação, a obra ainda está no centro das atenções de especialistas e do público em geral, que se inspiram tanto em teorias, reflexões pedagógicas e andragógicas como também nos desafios práticos de uma educação de orientação crítica. Paulo Freire propõe nesse livro uma explicação da importância e necessidade de uma pedagogia dialógica emancipatória do oprimido – em oposição à pedagogia da classe dominante – que contribua para a sua libertação e a sua transformação em sujeito cognoscente. Nesta pedagogia, o educador, por meio de uma educação dialógica problematizante e participante – baseada na confiança no povo, na fé na humanidade e na criação de um mundo onde cada indivíduo seja valorizado pelo que é, e onde a liberdade do povo deve atender à perspetiva do oprimido e não do opressor –, procura conscientizar e capacitar o povo para uma transição da consciência ingénua à consciência crítica. Assim, caracteriza-se por um movimento de liberdade que surge a partir dos oprimidos, sendo a pedagogia realizada e concretizada com o povo na luta pela sua humanidade. A obra estrutura-se em quatro partes, quatro capítulos que são precedidos de uma breve introdução. Nesta, Paulo Freire chama a atenção para o medo da liberdade ou o perigo da conscientização enquanto processo de evolução de uma consciência ingénua ou mítica para uma consciência crítica, recorrendo à radicalização crítica, criadora e consequentemente libertadora enquanto unidade dialética entre subjetividade e objetividade, a qual gera um atuar e pensar certos na e sobre a realidade, para transformá-la – o que se transforma em ameaça à classe dominadora que, pelos obstáculos à emancipação dos homens, transforma o futuro em algo preestabelecido. Esta obra de Paulo Freire é, sobretudo, um manual pratico, um trabalho de conscientização, recomendado a todos os homens e mulheres que se preocupam com a sua existência, e a todos os educadores em particular, pois tem um carácter político na medida em que, fazendo uma abordagem emancipatória da educação enquanto instrumento de libertação de consciência e da necessidade da atuação do homem na sua própria existência, afirma que não é suficiente que o oprimido tenha consciência crítica da opressão, mas sim que se disponha a transformar a realidade. Assim, a Pedagogia do Oprimido implica uma atitude radical baseada no encontro com o povo através do diálogo enquanto instrumento metodológico que permite a leitura crítica da realidade, partindo da linguagem popular, dos seus valores e da sua conceção do mundo, transformando-se numa luta pela libertação dos oprimidos. A edição eslovena tem o grande valor de ser dotada com o texto de introdução ao pensamento de Paulo Freire escrito por Tomaž Grušovnik. O autor, filósofo da educação, no texto intitulado Paulo Freire e a pedagogia da liberação que acompanha a publicação eslovena, resume a ideia que os principais princípios da Pedagogia do Oprimido incluem a autorrealização como o objetivo da vida humana, e que são as elites opressoras que atrapalham esse objetivo para milhões de pessoas oprimidas, à parte que expõe a ideia de que o modus operandi das escolas modernas reforça a opressão ao tornar os alunos passivos. O autor reflete também sobre as novas formas de economia de mercado que desafiam infelizmente esta suposição, uma vez que os novos modos de produção capitalista de mais-valia dependem precisamente da autorrealização dos indivíduos. Além disso, como termina sublinhando o autor desta reflexão, muitas vezes parece que o que é necessário nas sociedades desenvolvidas não é uma pedagogia dos oprimidos, mas uma pedagogia para os opressores. Outro detalhe exposto nesse texto que chama atenção é a importante influência das ideias de Paulo Freire – entre os investigadores e teóricos que se inspiram nas suas teorias, Grušovnik menciona vários proeminentes investigadores da segunda metade do século XX e sublinha que, entre os académicos eslovenos que foram fortemente influenciados pelo trabalho de Freire, está em destaque especial a professora Ana Krajnc da Universidade de Ljubljana, que conheceu pessoalmente esse educador brasileiro e que, durante sua carreira académica, promoveu as ideias de Freire na Eslovénia. Mojca Medvedšek Universidade de Ljubljana 3 Na parte que descreve o alfabeto português e o compara com outros alfabetos, menciona-se o bósnio que usa dois alfabetos, o latino e o cirílico. RESENHAS INFORMACIONES PARA AUTORES/AS Los editores invitan a enviar artículos, ensayos y reseñas inéditos para su publicación en la revista que a partir de 2018 se publica en números temáticos. Las aportaciones se publican en español, portugués, catalán, gallego e ingles. Los trabajos serán evaluados por el sistema de revisión de pares (sistema de selección de artículos de doble ciego) y analizados por el consejo de redacción. Los originales deberán corresponder a las normas de edición de la revista que se encuentran en la página web: https://journals.uni-lj.si/verbahispanica y al tema del número temático correspondiente. Los que no se adapten a estas normas se devolverán a su autor para que los modifique. Las colaboraciones en la revista no serán remuneradas. Envíe su artículo hasta el 31 de mayo del corriente a través de la página web. https://journals.uni-lj.si/VerbaHispanica INFORMAÇÕES PARA AUTORES Os editores convidam à apresentação de artigos inéditos, ensaios e recensões para publicação na revista, que a partir de 2018 é publicada em números temáticos. As contribuições são publicadas em espanhol, português, catalão, galego e inglês. Os artigos serão avaliados pelo sistema de revisão por pares (sistema de seleção de artigos em dupla ocultação) e analisados pelo conselho editorial. Os textos originais devem seguir as normas de edição da revista que podem ser consultadas na página Web: https://journals.uni-lj.si/verbahispanica, e o tema do número temático correspondente. Os que não estiverem em conformidade com estas normas serão devolvidos ao autor para serem modificados. As contribuições para a revista não serão remuneradas. Envie o seu artigo até 31 de maio do ano corrente ano através da página Web: https://journals.uni-lj.si/VerbaHispanica VERBA HISPANICA XXXI • INFORMAÇÕES PARA AUTORES