Hildlo Honorio do Couto CDU 800.88 : 806.09 Universidade de Brasilia O CRIOULO GUINEENSE EM RELA~AO AO PORTUGUES E AS LiNGUAS NATIVES 1 -Quando se pergunta guineese sobre a realidade lingiiistica de seu pais, em geral a resposta vem pronta: "Na Guine-Bissau, temos o crioulo, que e a lingua na­cional, o portugues, que e a lingua oficial, e as linguas nativas, que s_ao faladas pelas diversas etnias". Diante desta resposta poderiamos sair com a falsa impressao de que os dominios do crioulo, do portugues e das linguas nativas estao claramente de­limitados. Nada, porem, mais longe da verdade. Trata-se apenas de um lugar­-comum que se ouve freqiientemente na rua e_ ate entre intelectuais. Outro lugar-comum e o de que "crioulo e portugues mal falado", "crioulo e portugues errado" (M. F.), enfim, "criol i portugis mal papiadu" (o povo). Como ja salientaram ROUGE (1988, p. 5) e SCANTAMBURLO (1981, p. 9), entre outros, trata-se de uma concepcao inaceitavel. Ela e uma das manifestacoes da ideologia co­lonialista que, como sabemos, sempre considerou os colonizados como seres de se­gunda categoria. Tudo que lhes era, e e, especifico e despiciendo, como sua cultura, sua lingua, etc. O pior e que essa ideologia foi assimilada pelos pr6prios coloniza­dos, que a reproduzem acriticamente, ate mesmo ap6s o movimento de libertac;ao nacional. Os colonizadores foram muito eficientes na destrui9ao das culturas nativas e ao impingirem a ideia de que tudo que vem da Europa, isto e, do colonizador, e me­lhor, o que implica que tudo que tenha cor local e inferior. A ideologia da inferiori­dade do que e local em rela9ao ao que e europeu esta tao arraigada que ate alguns in­telectuais a aceitam. Um dirigente do primeriro escalao do governo me disse textual­mente o seguinte: "O crioulo nao e uma lingua. Ele nao tem uma gramatica, nao tem um dicionario nem uma escrita. Eapenas o meio de comunica9ao (sic;!) de gran­de parte dos guineenses". Mesmo deixando de lado o fato de ele nao saber que "gramatica" e "dicionario" (lexico) de uma lingua nao sao necessariamente livros impressos com estes nomes, nota-se que este dirigente nao esta imune a ideologia co­lonialista. Ate mesmo um membro do P AIGC (Partido Africano para a Indepen­dencia da Guine e Cabo Verde) disse: "O crioulo nao esta codificado, nao tem re­gras, nao tem gramatica". Tudo isso mostra que a ideologia colonialista calou fun­do nos africanos, atingindo ate mesmo os revolucionarios. Sera necessario um longo processo de reeducac;ao a fim de reverter tal situac;ao. A crenca na inferiodidade do crioulo em relac;ao ao portugues e apenas uma das manifestac;oes da ideologia colonialista, que se mostra com mais forc;a ainda em ou­tros setores. Entre os europeus que encontrei na Guine-Bissau, e corrente a ideia de que o africano e indolente, irresponsavel e de pouca inteligencia. Dizem que nunca faz as coisas como eles lhe ensinam. Eu nao vou me alongar mais sobre este tema porque ele foge dos objetivos que aqui me propus. No entanto, gostaria de algum dia fazer uma analise da situa9ao politico-econ6mica atual do pais. Quando analisamos o dominio /pidžu/. Quando Domingos perguntou a um individuo desta etnia se podia fazer algumas gravac;oes para n6s, ele retrucou: "Pa passi ke?" (para fazer o que?). No crioulo abalantado, /p/ vira /b/: /poti/ -> /boti/ (pote). Em fula nao ha /ti, portanto, no crioulo afulado temos formas como /kantša/ em vez de /kanta/ (canta). O crioulo apapelado substitui /tš/ por /s/. As~ sim, /tšabi/ -> /sabi/ (chave), /tšiga/ -> /siga/ (chegar), etc. Alias, falantes de qua­se todas as etnias da Guine-Bissau tendem a substituir /š/ por /s/ e /ž/ por /z/. Alem dessas marcas segmentais impostas pelas diversas etnias ao crioulo, temos tamben as supra-segmentais. Tanto a entoac;ao quanto o ritmo do crioulo sao forte­mente influenciados pelas lfnguas africanas. O ritmo africano e tao marcante que chega a afetar o crioulo tradicional, o crioulo aportuguesado e ate mesmo o portu­gues acrioulado. O mesmo fenomeno se nota no frances falado em Dakar (Senegal), cujo ritmo e visivelmente o do wolof (e o-"franc;ais wolofise"). No dominio da categorizac;ao semantica tambem notamos diferenc;as. Por exempio, no crioulo abalantado em geral se cumprimenta fazendo uma pergunta re­lativa aposi<;:ao em que a pessoa se encontra. Em vez de se dizer apenas "kuma?" (como vai?) ou "kuma di korpu?" (como esta?), diz-se: a) bO sinta?" (voce esta sen­tado?), b) "bo dita?" (voce esta deitado?), c) "bo na mesa?" (voce esta amesa?), d) "bo firma?" (voce esta de pe?) e assim por diante. Jean Luis Rouge nos da centenas de exemplos de influencias lexicais, morfol6gicas, semanticas e outras das linguas nati'vas sobre o crioulo (ROUGE 1986, 1988). BARUFFALDI (1984, p. 16-21) apresenta uma longa lista de radicais de linguas nativas no crioulo, embora com uma serie de equivocos. WILSON (1962) e uma outra fante de consulta para este as­sunto. 3. Crioulo tradicional Por crioulo tradicional entendo o crioulo "puro". E o crioulo dos velhos, o crioulo "bem falado". Em suma, e o "crioulo fundo" (kiriol fundu), por oposi<;:ao ao "crioulo leve" (kiriol lebi), que seria o crioulo aportuguesado. Freqiientemente, este crioulo e tamb~m chamado de "crioulo de Cacheu" e de „crioulo dos velhos". De um ponto de vista negativa podemos dizer que esta modalidade do crioulo gui­neense e aquela que nao tem marca visivel nem das linguas nativas nem do portu­gues. E "o espaco-sintese das culturas que povoam a Guine-Bissau". "Lugar de diallo­go e encontro, o crioulo e tambem um fenomena de acultura<;:ao e esta um indice se­guro de autenticidade", tomando~se esta no sentido de sua "distancia aortodoxia gramatical da lingua portuguesa" (MONTENEGRO/MORAIS 1979, "lntroducao"). De um modo geral e o crioul9 de falantes que o tem como lingua materna, sobretudo da segunda gera<;:ao de falantes em diante, e quando sao analfa­betos. J. L. Rouge chamou-o de "desenvolvimento autonomo": "Le developpement autonome qui est le fait des enfants, en particulier de ceux dont les familles n'utilisent le kriol que comme langue vehiculaire alors que pour eux il est langue pre­miere" (ROUGE 1988, p. 8). O crioulo tradicional se distingue do crioulo aportuguesado praticamente em todos os niveis. No nivel fonetico-fonol6gico, ha uma serie de especificidades. Em primeiro lugar, notamos uma repugnancia pelos fonemas /A, ž/, como em /fidžu/ (filho), /bedžu/ (velho), /džugu/ Uogo), /bedžu/ (beijo), etc. O fonema /š/ tende a /tš/. Como exemplos podemos citar, entre outros, /tšikeru/ (chiqueiro), /tšuba/ (chuva) e /matšu/ (macho). O fonema /v/, por seu turno, em geral vira /b/. Como exempio citemos /baka/ (vaca), /koba/ (cova) e /kubi/ (couve). A oposicao exis­tente em portugues entre a vibrante simples /r/ (caro) e a multipla (carro) se desfaz. Em crioulo tradicional s6 existe a vibrante multipla apical /r/. Notamos tambem uma tendencia ao ensurdecimento (dessonoriza<;:ao) do Iz/ portugues, como em /kasa/ (casa), /kusa/ (coisa), /mesa/ (mesa), /fasi/ (fazer) e /sagaya/ (zagaia). Uma caracteristica marcante do crioulo e a presern;:a da velar nasal /11/, inexis­tente em portugues. E um dos poucos fonemas que padem ocorrer em qualquer po­si<;:ao: no inicio de palavra, antes de vogal como em /11oroto/ (foice); antes de con­soante como em /TJdžasoTJ/ (inje<;:ao); em posic;ao intervocalica como em /lu11a/ (lua) e em posi<;ao fina!. O equivalente crioulo das vogais nasais portuguesas e uma vogal oral seguida de !ril. Sua presen<;a e tao marcante que muitos estudiosos che­garam a interpretar as seqiiencias /11/ mais obstruinte como un fonema pre­nasalizado. Com isso teriamos /mb, mp, nt, nd, etc/, como se ve em ROUGE (1988, p. 12). No caso das vogais, notamos a ausencia das nasais, ja mencionada, que sempre se submetem aregta diacr6nica V ---> Vri. Outra especificidade do crioulo e a ausen­cia da distirn;ao entre Iel e le/, bem como en tre I o/ e /o/. O som que substitui am­bos parece ser algo intermediario, aproximando-se ligeiramente da vogal aberta. No caso da estrutura silabica, ha uma tendencia asimplifi<;ao, ja exemplificada na propria palavra que designa a lingua, ou seja, /kiriol/ em vez de /kriol/ (crioulo), como se diz no crioulo aportuguesado. Casos semelhantes sao, entre ou­tros, /gararidi/ (grande), /tarbadžu/ (trabalho), /sukuru/ ("escuro", pronunciado "šcuro" pelos portugueses), etc. Estruturas complexas como CCVC (plastico) inexis­tem. E bem verdade que o fonema !ril pode constituir sozinho uma silaba, como em /ridžasori/ (inje<;ao), /rimisti/ (eu quero), etc. Trata-se de mais uma faceta da ri­queza distribucional deste fonema. No piano morfossintatico, apresenta o crioulo tradicional muitas caracteristicas proprias relativamente ao crioulo aportuguesado. Em primeiro lugar, nao ~ comum a constru<;ao passiva. Frases do tipo "Amilcar Cabral matadu par protugis" (Amilcar Cabral foi assassinado pelos portugueses) sao mais tipicas do crioulo apor­tuguesado. Em geral o crioulo tradicional prefere ligar as ora<;oes com os conectivos coordenativos em vez dos subordinativos" (SCANTAMBURLO 1981, p. 69), como em "i padi kil pekadur e tchomadu Djon" (Ela gerou aquele homen o qual foi cha­mado Joao). A reflexividade e indicada da uma forma toda especial. Vejamos como o equi­valente de "suicidar-se" eexpresso: (a mi) n mata nha cabe<;a = eu me mato (a bo) bu mata bu cabe<;a = tu te matas (el) i mata si cabe<;a = ele se mata (a nos) no mata no cabe<;a = nos nos matamos (a bos) bo mata bo cabe<;a = vos vos matais (elis) e mata se cabe<;:a = eles se matam E assim temos os pronomes pessoais em sua forma t6nica (isolada), clitica e posses­siva. Constru<;oes como "n tene constipa\:On" ou "n sta constipadu" (estou resfriado) s6 ocorrem no crioulo aportuguesando. O crioulo tradicional prefere dizer: catarru tenen = lit. "o catarro me tem" catarru teneu = lit. "o catarro te tem" catarru tene/ = lit. "o catarro o tem" etc. No que tange aflexao es abeira-mar. Apanha muitos e amedida que os apanha enfia-os numa corda. A certa altura surge a mulher de um saltao que, ao ver o seu homem na corda, corre aos gritos para o meio do tarrafe. O saltao fala para a mulher: -Nao chores. Quando me sentires o cheiro a assado podes chorar avontade, mas enquanto nao te cheirar a queimado tem calma. A mulher que estava a pescar estende a corda no chao para ir tomar.banho. O saltao aproveita para se escapar e enfia-se na sua cova. E diz amulher: -Eu nao te disse? Enquanto nao sentires o meu cheiro no fogo, podes estar certa de que nao morri. 4. Crioulo aportuguesaso "Criol i lingua mas facil di continenti africanu" (Mario, popular nas ruas de Bissau) Como o pr6prio nome ja diz, o crioulo aportuguesado e uma modalidade de crioulo fortemente influenciada pelo portugues. Meu informante sempre se referia a ele como "crioulo dos estudantes" ou "crioulo dos jovens". Etambem o que se cha­ma de "kriol lebi" (crioulo leve), por oposi<;ao ao "kriol fundu" (crioulo fundo). Co­mo acabamos de ver, este equivale ao que chamei de crioulo tradicional. Naspala­vras de Domingos, "O crioulo falado pelos jovens e bem diferente do crioulo falado pelos velhos. Esta mais pr6ximo do portugues". Ou, como disse um administrador de hotel, de forma<;ao superior: "O crioulo bem fa.lado e parecido com o portugues". E o que Rouge chamou de "lusitaniza<;ao', ou seja, "la lusitanisation dont le developpement est surtout du a la scolarisation en Portugais" (ROUGE 1988, p. 8). Com a devida cautela, talvez possamos afirmar que em referencia ao crioulo aportuguesado sao verdadeiras aquelas "defini<;oes" de crioulo legadas pela ideolo­gia colonialista. Pelo menos parece ser o que tem em vista. Diante de enunciados co­mo "Camaradas trabadjaduris, camaradas di no tera, camaradas trabadjaduris di Guine!" (SCANTAMBURLO 1981, p. 109), somos tentados a aceitar firma<;oes co­mo "o crioulo e portugues errado" (M. F:), "o crioulo e portugues mal falado" (o povo) ou simplesmente "criol i portugis mal papiadu" (o povo). Toda e qualquer mudarn;a e encarada pelo status quo como deforma<;ao. A ide­ologia colonialista nao poderia fugir a esta regra. Segundo Rouge (1981, p. 5), "a l'origine du kriol il y a vraisemblablement du Portugais mal parle, de meme qu'a l'origine du Portugais, du Fran<;ais ou de l'Espagnol il y a du Latin mal parle". E is­so ninguem aceitaria nos dias de hoje. Por que, entao, os pr6prios falantes de criou­lo aceitam a ideia de que o crioulo e portugues mal falado? Simplesmente devido aos quase cinco seculos de domina<;ao colonial. O colonizador europeu foi tao eficiente em sua politica glotofagica que conseguiu impingir nos pr6prios nativos a ideia de que a lingua europeia e um bem para eles. Ate mesmo o lider revoludonario Amilcar Cabral estava de acordo com ela. E o que se ve rio tantas vezes citado texto "O portugues (lingua) e uma das melhores coisas que os tugas nos deixaram" (No Pintcha 2112176, p. 9). O portugues e hoje praticamente a unica fonte de neologis­mos para o crioulo. Virtualmente toda e qualquer palavra portuguesa pode ser usa­da em crioulo, com pequenas adaptacoes, do que da uma palida ideia o enunciado transcrito acima. Sempre que nao se conhece (ou nao se lembra de) alguma palavra em· crioulo, usa-se o equivalente portugues. Ninguem o acha estranho. Aqui devo me reportar ao que foi dito a prop6sito dio crioulo tradicional. Ou seja, no crioulo aportuguesado usa-se com muita freqtiencia a passiva do verbo, pode ocorrer flexao em genero e numero (' luta politica", "trabadjaduris", etc. "), inuitos neologismos como "elicopter", "discordja", etc. (SCANTAMBURLO 1981, p. 85). Com isso, to­da o fonologia crioula se aproxima da portuguesa. Aqui ja ocorrem os fonemas /z, A., š, žl. A estrutura silabica tambem se complica, sempre na direcao do portugues. Ate as artificiais e superficiais formas de polidez europeias ja estao sendo adap­tadas para o crioulo (aportuguesado). Por exemplo, hoje nao e raro ouvir-se "fassin fabur!" (fai;:a-me o favor!), "obrigadu!", etc. Para se interpelar um descon­hecido na rua se diz "amigo!", "primo!", "ermon!" (irmao!), etc. Na Guine-Bissau nao e comum ouvir-se "patron!" ou "chef!", como no Senegal ena Costa do Mar­fim, por exemplo. Os dois unicos meios de comunicac;:ao de massa do pais sao ojornal No Pinte ha e a Radio Emissora Nacional. O primeiro e impresso inteiramente em portugues. As vezes ele ate faza apologia do crioulo, mas sempre em portugues. De vezem quando ele puhlica alguns poemas crioulos, e isso e tudo. AREN tem programas em crioulo mas nao apenas em crioulo. Ha-os tamhem em halanta, manjaco, mandinga, fula, felupe, hijag6, heafada, sosso e frances, alem do portugues (a maioria). O fato e que ha programas em crioulo. Como nao poderia deixar de ser, e o melhor exemplo de crioulo aportuguesado. O enunciado acima transcrito e o inicio de um destes textos, que esta reproduzido em SCAN­TAMBURLO (1981, p. 109-112). Nas paginas 85 a 108 deste livro temos mais tres exemplares de textos do crioulo aportuguesado. Desse tipa de crioulo disse um diretor de liceu: "O crioulo falado no radio e portugues mal falado. Eles metem um termo crioulo aqui outro ali, mas a maior parte das palavras sao portuguesas". Depois ele acrescentou: "O crioulo hem fala­do, do radio, so as pessoas que estudaram entendem. Emuito parecido com o por­tugues". Por outras palavras, "crioulo bem falado" = "portugues mal falado", se­gundo esta ideologia. Como ja foi dito acima, o crioulo aportuguesado e tambem a linguagem usada nas reparti<;:oes ptihlicas, na reda<;ao do No Pintcha, nas reunioes do partido, no pa­tio e no setor administrativo das escolas, etc. No contexto da sala de aula, no entan­to, ele e proihido, havendo inclusivo puni<;ao para quem o usar. O usodo portugues e ohrigat6rio. Por fim, e neste crioulo que se fazem as campanhas de satide puhlica. Por exemplo, afixam-se cartazes contra a SIDA (AIDS), ensinando o usode escovas de dentes, campanhas de vacina<;ao, etc. Eu fui informado oficiosamente em diversas oportunidades que Portugal oh­teve a concessao para instalar a televisao na Guine-Bissau. Se isto efetivamente ocorrer, teremos mais um meio de propaga<;ao do crioulo aportuguesado, ao lado do portugues. Sumariando, poderianios afirmar que num futuro nao muito distante o crioulo tradicional desaparecera, cedendo o lugar ao crioulo aportuguesado. O progn6stico lingi.iistico, ou seja, a antecipa<;ao do que podera eventualmente ocorrer com uma lingua, nao s6 funcionalmente mas tamhem estruturalmente, e perfeitamente possi­vel. Para tanto hasta dispormos de certos dados concretos de carater "sociologico­lingi.iisticos" (NIKOL'SKIJ 1971, p. 233). Assim sendo, ao escrevermos qualquer ensaio sohre o crioulo da Guine-Bissau, devemos levar em conta o crioulo tradicio­nal. No entanto, maior enfase deve ser dada ao crioulo aportuguesado, que e o cri­oulo moderno, o crioulo dos nossos dias. Aqui, como em qualquer lugar onde se aja cientificamente, nao cahe saudosismos. O dia em que nao houver mais crioulo tradi­cional a distirn;:ao entre ele e o crioulo aportuguesado tampouco existira. Poderemos dizer pura e simplesmente "crioulo". Alem dos textos ja mencionados, os que sao produzidos por missionarios com finalidades catequeticas tambem sao 6timos exemplares de crioulo aportuguesado. Alias; eles constituem a maioria dos textos escritos em crioulo em geral. Feitos pela igreja cat6lica, posso citar, alem de catecismos e textos menores, os seguintes: a) Missal Ferial na Criol. Bissau: Diocese de Bissau, 1987. 348 pags. b) Missa! Dominical na Crio/. Bissau: Diocese de Bissau, 1987. 319 pags. c) Nobu Testamentu. Paskua di Jesus Kristu (em quadrinhos). Bissau: Komi­ son Diosesanu di Katekesa, 1988. Para uma longa lista de outras obras do genero, cf. BIASUTTI (1982, p. XHI -XIV). Ha tambem textos de outras religioes, como Bom Nova de Fidjo Deus. 1979. Soc. Unido (sic!) de Biblia, sem indicar;:ao de local de publicar;:ao. Como se ve pelos titulos, nao ha uma escrita uniformizada do crioulo. Cada um o escreve como bem entende. Um fato curioso a ser notado tambem e que grande parte do que se escre­veu sobre o crioulo em geral foi feito por religfosos. A seguir, reproduzo dois excertos desses textos religiosos e um dos textos politicos da REN, tirados de SCANTAMBURLO (1981). 5. Leitura di carta que S. Paulo scribi pa cristons di Col6sse: (3,1-4) Nha ermons, manera que bO lanta di morte cu Cristo, bo disidja caussas di ceu, nunde que Cristo sta n'el, sintado na mon direita di Deus. BO pensa na cussas di ceu, ca bO pensa na cussas di terra. Pabia bO muri dja; i b6 bida sta sucundido cu Cristo, na Deus. Ora que Cristo, qui b6 bida, i na bim manifesta, enton ab6s tambe bo na bim manifesta cu El na gl6ria. (Missa/ Dominical, p. 142). 3. Leitura di livro di profeta Miqueias: (5,1-4) Ali que que Sinhor fala: "AbO, Betem-Efrata, embora bu mas piquinino di ter­ras di Juda, ·na b6 i na bim sai quil qui na bim guia Israel na nha nome. Si cum9ada i di tempo antigo, di dias que ca pudi lembrado mas!" El cu manda, Deus na bim abandona si povo, te na tempo que um mame na bim padi um fidjo. Enton resto di Israel na bim riba pa si terra. El i na bim lanta, i na bim guia si povo cu for9a i na presen9a glorioso di nome di Sinhor, si Deus. Enton povo na bim vivi na sussego, pabia si grande9a na bim tchiga te na ca­bantada di terra, i El i na bim spadja si paz na tudo lado. (Missal Dominica/, p. 280) 1 bai pa tudu parti pa tchoma tuga pa e odja realidadi ke di facto no nesesitaba dja nan no independensia, ma tuga pa resposta k'e ta daba Cabral i iera barcu k'e na saiba di Lisboa, avion k'e na bimba di Portugal caregadu di bomba, caregadu di ba­la i caregadu di tropa pa pudi ocupa tudu cantus i sentru di no tera ... . . . 1 na momentu dja ke tudu mobilizason staba dja feitu ku tuga sibiba dja cu­ma tudu povu staba preparadu pa guera i tuga cunsa cu se represon na tabanca, manda panha mindjeris, panha orni, manda mara, suta conta conta. Foi para todos os lados parafazer ver aos Portugueses que realmente precisava­mos da independencia, masa resposta que eles davam a Cabral, eram os barcos que saiam de Lisboa, avi6es que vinham de Portugal carregados de bombas, de balas e de tropas para poderem ocupar todos os cantos e o interior da nossa terra. Eno mo­menta em que toda a mobilizar;iio ja estava feita, em que os Portugueses ja sabiam que o povo estava preparado para a guerra, os Portugueses comerr;am com a repressiio nas tabancas: entravam nas tabancas, mandavam prender mulheres, ho­mens, amarravam-nos e batiam sem conta. SCANTAMBURLO (1981, p. 86) 5. Portugues acrioulado Em varias ocasiOes houve falta de comunicac;ao entre mim e meu informante, Domingos. Certo dia ele chegou edisse: "Eu estou doente hoje". Quando lhe per­guntei de que, ele me respondeu que havia jogado muito futebol no fim-de-semana anterior, portanto, estava "doente". SO depois de muito tempo vim a descobrir que ele queria dizer que estava cansado. A expressao crioula "a mi n duensi'' significa tambein "eu estou cansado". O portugues acrioulado adapta a cultura e os esque­mas de raciocinio crioulos aexpressao portuguesa. Num outro encontro, eu lhe dis­se qualquer coisa, mas ele nao entendeu. Em seguida acrescentou: "O portugues do Brasi! nos cansa" (portugis di Brasi! i ta cansanu", traduziu ele a meu pedido). Mais tarde descobri que "amin cansa" quer dizer tambem "e dificil para mim", em criou­lo. Outra vez o esquema de pensamento crioulo foi transposto para o vocabulario e a sintaxe protuguesa. E o portugues acrioulado. Apesar da forte influencia do frances, sobretudo do Senegal, todas as pessoas com um minimo de informac;ao falam portugues, freqiientemente com dificuldade e com visivel marca do crioulo, ou seja, falam o portugues acrioulado. Os falantes de crioulo entendem este portugues, mesmo que nao o falem, como ja vimos. Tem um dominio passivo do portugues acrioulado. Se falarmos pausadainente o nosso por­tugues a maioria deles nos entendem, mesmo aqueles que so se expressam em criou­lo tradicional, isto e, os velhos. Eo caso do velho vigia de uma pensao com o qual mantive ligeiro dialogo, eu falando pausadamente em portugues e ele me responden­do em crioulo. Na cidade balnearea de Babuque, no arquipelago de Bijagos, vi dois jovens conversando em portugues acrioulado sobre como conseguir uma casa segu­ra para mor ar. O· fato me chamou a atenc;ao porque normalmente este diaJ.ogo seria em crioulo, ou entao na lingua nativa (bijag6). Ha uma serie de peculiaridades fonetico-fonol6gicas que se notam com facili­dade desde a primeira vez que se ouvem os guineenses falando portugues. Em pri­meiro lugar, pode-se dizer que do portugues lusitano para o portugues acrioulado vige a seguinte regra livre de contexto: [!J [~] Assim, "jardim" tende a /zardi11/ e "chave" tende a /sabi/. E claro que ha excecoes, mas a tendencia geral permanece. Em segundo lugar, notam os uma tendencia adesnasalizacao das vogais nasais. A re­gra ja mencionada (V--> V11) tende a ser aplicada tambem no portugues acrioulado. Em terceiro lugar, a confluencia da vibrante simples /r/ e da multipla /f/ em um unico som, tambem vibrante multiplo, nao e rara. Finalmente, tende a desaparecer a distirn;ao entre le/ e le!, por um lado, e entre /o/ e /O!, por outro. Quando dizem "ele" e "senhor", p. ex., ouvimos algo como /'Eli/ e /si'nor/. Expressoes como "homen grande" e "mulher grande" para "velho" (subst.) e "velha" (subst.), respectivamente, sao muito comuns. Trata-se da transposi<;ao de expressoes crioulas. No livro do soci6logo Carlos Lopes podemos respigar algumas ocorencias de expressoes acriouladas (LOPES 1987). Melhores exemplos sao, po­rem, as emissoes radiofOnicas em portugues e o jornal No Pintcha. No entanto, eno lexico que a influencia do crioulo se mostra de modo mais facilmente palpavel. Per­tencem ao vocabulario do portugues acrioulado as seguintes palavras, dentre cente­nas de outras: candonga = micro-onibus interurbano poilon = arvore tipica, muito grande tabanca = agrupamento de casas, col?ertas de palha, tipicas bolanha = alagados onde se planta arroz chebeu = 6leo tipico, pr6ximo do dende brasiliero Para mais-exemplos, pode-se co:µsultar ROUGE (1986, 1988) e WILSON (1962, p. 6). Portugues acrioulado e, assim, o portugues guineense. Assim como ha o portu­gues lusitano, o brasileiro, o angolano e o mocambicano, ha tambem o portugues guineense. E bem verdade que ele tem um numero infimo de falantes (cerca de 300, como vimos), mas e portugues. E o portugues enegreddo pelo sol escaladante do noroeste africano. 6. Portugues e outras linguas Alem do portugues acrioulado, ha pelo menos m;:tis uma modalidade de portu­gues que tem uma relativa importancia na sociedade guineense. Eo portugues lusi­ tano. Isso tem suas causas historicas. Jano seculo XV os portugueses chegavam a costa ocidental africana, embora so no seculo XIX tenham comec;ado a colonizac;ao , propriamente dita. O fato e que bem ou mal, os portugueses estao na Guine-Bissau ha cerca de cinco seculas (LOPES 1987, p. 15-18). Com movimento de libertac;ao nacional, houve uma natura! lusofobia. Mas is­so ja passou e os portugueses estao retornando ao pais para retomar algumas pro­priedades, para estabelecer algum tipo de empresa e ate para implantar uma rede de televisao. Nas "lojas francas" ou "interlojas", grande parte dos produtos sao impor­tandos de Portugal. Enfim, Portugal voltou a ser uma referencia para a Guine­Bissau. Um fato curioso e que grande parte dos jovens desejam estudar em Portugal. Alguns inclusive gostariam de se mudar para este pais. Muitos dos que para la fo­ram nao regressaram. Por outras palavras, Portugal tem uma grande forc;a de atrac;ao sobre os guineenses. Conseqiientemente, o portugues lusitano e um ponto de referencia. Tanto que ha uma consciencia de que o portugues guineense e mais proximo do lusitano do que do brasiliero, p. exemplo. Um funcionario do Ministe­rio da Educacao disse: "Os brasileiros falam diferente de n6s. N6s falamos como os portugueses"' o que, alias, nao e inteiramente verdadeiro. o portugues guineense e o portugues acrioulado. O Brasi! so agora esta se fazendo presente culturalmente. Varias bolsas de estu­do tem sido concedidas a jovens guineenses. No comec;o deste ano (1988) foi inaugu­rado o Centro de Estudos Brasileiros, dentro da embaixada, o que vem despertando grande interesse na populac;ao de Bissau. Depois do portugues, a Iingua mais presente na Guine-Bissau e o frances. Alias, ela e uma ilha de lingua crioulo-portuguesa numa ragiao de lingua francesa. A Guine-Bissau so tem fronteiras com o Senegal, do qual depende economicamente, e com a Guine-Conacri, ambos de lingua francesa. Nos hoteis, nas repartic;oes a ate no mercado, pode-se encontrar gente que entende e/ou fala frances. A expressao 'voila' e outras sao muito freqiientes. Quando os guineenses se dirigem a um estran­geiro cuja nacionalidade ignoram, fazerri-no em frances. O Centro Cultural Frances foi dos primeiros ase instalarem em Bissau. Alem disso, ha o programa em frances na radio, ja mencionado. Nao obsfante tudo isso, o portugues, ou melhor, o portu­gues acrioulado, ou melhor ainda, o crioulo aportuguesado nao esta ameac;ado (cf. MACEDO, a sair). Devido a grande dependencia da economia guineense em relac;ao a senegalesa, a lingua wolof tambem pode ser ouvida de vezem quando no mercado de Bissau. Ha inclusive alguns raros guineenses que o entendem. o ingles s6 esentido a nivel do fraco turismo. o espanhol e praticamente aus­ente, fato que nao e atenuado nem pela forte presenc;a dos cooperantes cubanos. IV -A seguir, apresento um quadro sin6tico em que se pode visualizar a com­plexa realidade lingtiistica guineense, do ponto-devista diastratico. Eclaro que nao ha uma descontinuidade entre, p. ex., (3) crioulo tradicional e (4) crioulo aportugue-. sado. Na realidade trata-se de um continuu,rn. Os pontos (1) a (6) sao balizas a que podemos nos referir a fim de entendermo'sit' Guine-Bissau do ponto de vista lingui­stico. Como ja foi dito, a criac;ao do estado guineense, bem como de praticamente todos os estados da Africa e do mundo em geral, significou a imposic;ao de uma li­ (b) (c) Jr (a) jl 11 11 (a) lr (6) portugues e outras linguas (francees, wolof, etc.) (5) portugues acrioulado "criolo" (4) crioulo aportuguesado "kriol" (criol) (3) crioulo tradicional "kiriol" (2) crioulo nativizado ? (1) linguas nativas: fula, balanta, mandin­ga, manjaco, etc. (b) (c) Visao diastratica da realidade linguistica da Guine-Bissau Quadro 1 miti9ao territorial que violentou a realidade etnica local. Assim sendo, se quisermos entender a situa<;iio sociolinguistica desses paises, temos que partir de um esquema tambem artificial (alias, seria possivel um esquema natural?). Sendo a transi9ao de um nivel para o outro gradual, continua, e natural que ha­ja muita interinfluencia, como mostram as setas (a)-(c'). De um modo geral, de (6) ate (3) as influencias preponderam na dire9ao das setas (a), (b) e (c). Com efeito, ja vimos que o portugues lusitanb (6) e sempre um pontb de referencia para o guineen­se, sua influencia sobre o portugues acrioulado (5) e maci<;:a. A ideologia colonialis­ta incutiu na mente dos guineenses, cultos e analfabetos, que o portugues lusitano e a melhor linguagem, a mais correta, a mais perfeita (cf. a passagem de Amilcar Ca­bral acima transcrita!). A influencia "descendente" vai ate as linguas nativas (1), passando por (4), (3) e (2). No mancanha, por exemplo, podemos citat' os seguintes exemplos vindos do crioulo, que por sua vez os adaptou do portugues: /prata/ (prato), /ukaru/ (carro), /ubifiu/ (vinho), etc. (para mais exemplos, cf. WILSON 1962, p. 7-9). No sentido "ascendente", ou seja, das setas (a') a (c'), tambem ha inUmeras influencias. Varias delas ja foram referidas acima. ROUGE (1988) nos da centenas de exemplos (cf. o que foi